terça-feira, 27 de setembro de 2022


 

DESMATAMENTO NO BRASIL

 

Recorde de desmatamento em terras indígenas tem a ver com desmonte de órgãos de fiscalização



De acordo com Pedro Luiz Côrtes, isso dá brechas para que grileiros e comerciantes de madeira ilegal explorem ao máximo esses territórios



Publicado: 23/09/2022

Arte: Simone Gomes





Levantamento feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) revelou que, nos oito primeiros meses do ano, uma área equivalente a quase sete vezes o município do Rio de Janeiro foi desmatada. O período observado, e que compreende os meses de janeiro a agosto deste ano, revelou que o porcentual foi o maior em 15 anos. 

O Simex, rede desenvolvida pelo Imazon, que conta com entidades como o Imaflora, Idesan, ICV e o próprio Imazon, também apontou que a região de extração de madeira ilegal nos territórios indígenas do Pará aumentou 11 vezes, em um período de 12 meses. A região explorada aumentou de 158 hectares para 1.720 hectares, equivalente a uma taxa de quase 1.000%. 

O desmonte significativo dos órgãos de controle e fiscalização, como o Ministério do Meio Ambiente, Ibama e ICMbio, é um dos pontos-chave que o professor Pedro Luiz Côrtes relaciona ao crescimento de áreas desmatadas no País. Ele também adiciona à discussão a questão envolvendo “a fiscalização muito tênue, que vem sendo cada vez mais reduzida” com as eleições deste ano diante da possibilidade de troca no governo federal. 

Isso dá brechas para que grileiros e comerciantes de madeira ilegal explorem ao máximo esses territórios, que é “combinado com a insistência em manter o mesmo modelo econômico, tendo o desmatamento como base”, explica Côrtes.  E mesmo que, em contrapartida, esses locais representem um potencial de exploração do turismo amazônico, além da produção de fármacos e produtos químicos a partir da flora, o que não gera benefícios no âmbito da geração de empregos, melhorias sociais, além de impactar a fauna e a flora amazônica. 

Como os números repercutem

Côrtes também salienta que a prática não possui nenhum tipo de índice de desenvolvimento econômico atrelado à atividade, já que o problema em questão repercute na comercialização de itens agrícolas brasileiros no mundo. Ele ressalta o caso do Parlamento europeu, que aprovou um projeto de lei que visa à proibição de produtos procedentes de áreas de desmatamento, o que põe o Brasil em uma situação delicada ambiental e economicamente falando, segundo ele: “Os prejuízos já estão sendo observados, e nós teremos ainda prejuízos maiores se seguirmos nessa toada”, adiciona. 



Para Côrtes, é necessário então recompor as estruturas de fiscalização, bem como os órgãos responsáveis por essas áreas. Isso pode ficar custoso para a União, uma vez que demanda recursos e vontade política.


Fonte: https://jornal.usp.br/atualidades/recorde-de-desmatamento-em-terras-indigenas-tem-a-ver-com-desmonte-de-orgaos-de-fiscalizacao/


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

MILTON SANTOS - OS DEFICIENTES CÍVICOS

 

Os deficientes cívicos 

 Milton Santos*


Em tempos de globalização, a discussão sobre os objetivos da educação é fundamental para a definição do modelo de país em que viverão as próximas gerações.



Em cada sociedade, a educação deve ser concebida para atender, ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos. É da combinação desses interesses que emergem os seus princípios fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola com a comunidade e com o mundo.

O interesse social se inspira no papel que a educação deve jogar na manutenção da identidade nacional, na idéia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o indivíduo a uma realização plena e a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia de que a dinâmica social não será excludente.

Em todos os casos a sociedade será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um processo e está sempre mudando, o contexto histórico acaba por ser determinante dos conteúdos da educação e da ênfase a atribuir aos seus diversos aspectos, mesmo se os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do tempo. Foi dessa forma que se deu a evolução da idéia e da prática da educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçadas em uma solidariedade social cada vez mais sofisticada.

As modalidades sucessivas da democracia como regime político, social e econômico levaram, no após guerra, à social-democracia. A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais da educação, sempre a partir de uma visão filosófica e abrangente do mundo.

Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir como pilares centrais do sistema educacional: o ensino universal (isto é, concebido para atingir a todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando uma visão de futuro).

Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta última palavra sendo usada como sinônimo de ausência de visões particularistas e segmentadas do mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as bases da educação republicana, na França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e juridicamente estabelecido, às tentações da barbárie.

A globalização, como agora se manifesta em todas as partes do planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções clássicas, como a democracia, a república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como retórica, enquanto são outros os valores da nova ética, fundada num discurso enganoso, mas avassalador.

Em tais circunstâncias, a idéia de emulação é compulsoriamente substituída pela prática da competitividade, o individualismo como regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade.

O mundo do pragmatismo triunfante é o mesmo mundo do “salve-se quem puder”, do “vale-tudo”, justificados pela busca apressada de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos sempre mais estreitos, levando ao amesquinhamento dos objetivos, por meio da pobreza das metas e da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em marcha é tributário dessas lógicas perversas. Para isso, sem dúvida, contribuem: a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira radical que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada.

É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se originam as novas propostas para a educação, as quais poderíamos resumir dizendo que resultam da ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a vida plena, com a busca do saber filosófico, e uma formação para o trabalho, com a busca do saber prático.

Esse equilíbrio, agora rompido, constituía a garantia da renovação das possibilidades de existência de indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que se preparavam as pessoas para o mercado. Hoje, sob o pretexto de que é preciso formar os estudantes para obter um lugar num mercado de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual ou mesmo desnecessário, uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente ao sabor das mudanças rápidas e brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas por uma implacável competitividade.

Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação da formação e à educação oferecida segundo diferentes níveis de qualidade, situação em que a privatização do processo educativo pode constituir um modelo ideal para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de deficientes cívicos.

É a própria realidade da globalização -tal como praticada atualmente- que está no centro desse debate, porque com ela se impuseram idéias sobre o que deve ser o destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os países. As propostas vigentes para a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve ser retomado pela raiz, levando a educação a reassumir aqueles princípios fundamentais com que a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos -os ideais de universalidade, igualdade e progresso-, de modo que ela possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a globalização perversa, tal como agora se verifica, comprometa o processo de formação das novas gerações.

*Originalmente publicado em ‘Folha de São Paulo/ Brasil 500’.

Saiba mais sobre Milton Santos:
Milton Santos – território e sociedade
Milton Santos (entrevista e textos)

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Fonte: https://www.revistaprosaversoearte.com/os-deficientes-civicos-milton-santos/?fbclid=IwAR2d7EldN6P-OInXMNYWhOpA_thdbN30sVuR5z8wJ_886qjxphnXZCPKt5Y Acesso em 26092022