CONTOS E CRÔNICAS



CARTINHA DE BOAS VINDAS AOS QUE ESTÃO CHEGANDO

Valdemir José Sonda*

Não muito longe do hospital, sob um céu mais ou menos azul, com estrelas que ainda piscam e um sol que quase nasce, mais uma criança, com olhos escuros, pele clara e cabelos negramente ralos, vem ao mundo, com um choro intensamente esperançoso.
Um pouco mais longe, ainda existe um riacho, com águas que ainda correm em meio a todos os tipos de lixos humanos: fraldas descartáveis, pneus, baterias, sofás, garrafas de plástico, esgoto doméstico e industrial, meia dúzia de frascos de agrotóxicos e um peixe raquítico borbulhando impropérios.
Há alguns anos, seu avô pescava neste riacho. Dele tirava parte do alimento que alimentava toda a família. Vovó, entre outros panos, lavava as ceroulas do vovô. Já no tempo dos seus pais, mamãe ainda tomava banho, mas sem a presença dos peixes. Papai também tomava banho, mas sem a presença dos peixes e com a ausência de mamãe: eles ainda não se conheciam; só conheciam o riacho, alguns pés de mato e os roncos das motos serras.
Nos últimos tempos, enquanto papai e mamãe prosperava econômica e socialmente, o rio, tadinho, empobrecia, ou melhor, estava cada vez mais rico de porcarias: a cidade cresce, a mata desaparece e os rios escurecem. A esse fenômeno damos o nome de progresso, desenvolvimento, crescimento...
A primeira papinha que receber no hospital, será de batatinha, pulverizada com agrotóxico, que, em bom português, significa uma dentre tantas espécies de veneno usada na agricultura. Além da batatinha, terá caldo de galinha, que poderá ter um tantinho de hormônio. A primeira mamadeira com água que tomar, também terá um pouquinho de veneno, adicionada com um tiquinho de coliformes fecais (o mesmo que pedacinhos microscópicos de merda), além de moléculas de determinados tipos de ácidos despejados criminosamente nas bocas de lobo ou largados vergonhosamente em esgotos clandestinos. Não se preocupe, é assim mesmo. Todos estamos acostumados! Mas quem quiser e puder, pode comprar produtos orgânicos, reciclar o que for possível, economizar na torneira, que já é um bom começo. Se tiver um pouco mais de amor corajoso, pode-se denunciar aos órgãos competentes.
Ao sair do hospital, respirarará um gás chamado de oxigênio. Também estará misturado com monóxido de carbono, talvez com fumaça oriunda da queima de pneus, expelida pelas chaminés de alguma indústria inescrupulosa. Dependendo do lugar em que você morar, também terá o cheirinho das lagoas de tratamento de algumas agroindústrias. Não se preocupe, milhares de crianças já passaram por isso. Quase todas sobreviveram. Com os pulmões machucados, mas sobreviveram...
Todos os dias, querido bebezinho, papai e mamãe utilizarão seus automóveis, que possuem uma tal de bateria, que algumas vezes será jogada em algum lixão-a-céu-aberto ou n’outro lugar impróprio. Dentro dela tem cádmio, mercúrio, chumbo e outras cositas más. Não se preocupe, algumas crianças e adultos já tomaram água com estes produtos, e sobreviveram. Estropiados, mas sobreviveram. Ah, o resto de combustível do motor pode ser jogado em algum rio, num dia de chuva, a partir de alguma boca-de-lobo estrategicamente existente...
Não chore bebezinho. A vida destrutiva deste planeta é assim mesmo. Você tem que agüentar firme. Sabe o lixo hospitalar (fralda descartável, resto de sangue, pedaço de carne, pus, seringa, vômitos, bactérias, vírus, catarros) tudo misturado em sacolas plásticas, durante muitos anos foi jogado num buraco bem grande sem maiores cuidados. Assim, criou um tal de chorume, que pode ter contaminado o lençol freático, de onde poderá vir à água de sua primeira mamadeira, do seu primeiro chá, da sopa da vovó ou mesmo da irrigação da horta de onde sairão suas primeiras papinhas, e primeiras saladas. Não se preocupe, no lixo hospitalar também se pode encontrar substâncias perigosas como acetona, metanol, xileno e, até mesmo, metais tóxicos provenientes de baterias retiradas de equipamentos eletrônicos. Alguns metais pesados são extremamente tóxicos para o ser humano e exigem tratamento especial. Fique tranqüilo, existem leis para o tratamento sério e responsável. Mas elas não caminham sozinhas, precisam ser conhecidas e exigidas que sejam cumpridas.
Sabe bebezinho, a casa onde você for morar, poderá ter um encanamento clandestino. Todo o coco e o xixi produzido pela família poderão ser despejados a uma boca-de-lobo, depois correr até algum riacho, onde vovô pescava, vovó lavava ceroulas e mamãe e papai nadavam, - quando ainda não se conheciam -, e onde você um dia poderá ir fazer um piquenique com uma máscara nas narinas, caso não ajudarmos a reviver...
Ainda brilha o sol, ainda temos um ar mais ou menos respirável, o solo ainda é generoso e ainda restam flores, matas e bichos nas redondezas. Apesar da espécie humana, ainda temos certa chance. Assim, querido bebê, seja bem vindo a este mundo. Você vai encontrar um monte de lixo, produzido pelo nosso sistema, por pessoas de carne e osso, por nós... Por indústrias, por pessoas próximas e distantes. Desejamos sinceramente que você cresça num lar-terreal onde o ser valha mais que o ter. Que você cresça numa sociedade que acorde enquanto ainda há tempo. Que você se desenvolva em meio à generosidade, em meio à simplicidade, em meio à ética do cuidado, em meio à tolerância, à bondade e à justiça social e ecológica. Que você seja um ser humano bacana e integro se alimentando de bons livros, de boas músicas, de boas amizades, sem deixar-se moldar pelo consumismo barato (na verdade, muito caro) e por todos os tipos de violência cotidiana. Você merece um mundo mais lindo, mas papai e mamãe, titio e titia e todas as pessoas em sã consciência, inclusive os padrinhos, e também os professores, precisam refletir no espelho enquanto ainda há tempo, colocar a mão na massa e exercitar as pequenas e grandes mudanças necessárias, de dentro para fora de nosso ser, sem esquecer de cobrar corajosa e permanentemente que as autoridades e os órgãos competentes cumpram com seus deveres de zeladores (no sentido de zelar a legislação e os meios naturais) neste pedaço de planeta que é o nosso município, antes que seja tarde em demasia...

*
Valdemir José Sonda
– graduado em Língua Portuguesa e História pela UNIOESTE com mestrado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) do Rio de Janeiro. Ambientalista, educador ambiental e ativista sócio-ambiental formado pelo programa Formação de Educadores Ambientais (FEA) da Bacia do Paraná III e Área de Entorno do Parque Nacional do Iguaçu do Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Educação. Permacultor e praticante de agricultura urbana. Tenho um caso de amor por bicicleta, flores, árvores e muitos outros seres vegetais ou animais. Amante da terra, água, fogo e ar, volta e meia faço uma fogueirinha pra honrar essa vida...Faço poesias e de vez em quando pinta uma crônica..



---------------------------------------------


O leitão curioso e a festa do porco no rolete


Luiz Alberto Martins da Costa*

Os tempos modernos mudam até a vida dos bichos. Inclusive a de porcos. Ou melhor, de suínos.
A época em que porcas criadeiras pariam leitões em ninhos fofos de palha de milho em cercados espaçosos, dentro de enormes e bem arejados galpões, já vai longe.
Hoje as ditas matrizes não têm mais o direito de cuidar e muito menos repassar conhecimentos à sua prole ou ninhada, como deveria ser sagrado à qualquer genitora.
Não bastasse esta restrição cruel, não podem mais sequer conhecer, cheirar e namorar os atraentes e atrevidos cachaços ou reprodutores, pais de seus filhos.
Nas tais Unidades Produtoras de Leitões (UPLs), as porcas, depois de prenhes, através de inseminação artificial, são mantidas em espaços exíguos, trancados com grades de ferro, sem poder andar, para poupar energias, leia-se ração caríssima.
Assim os leitões nascem e logo são transferidos para um recanto próprio, chamado de “creche”, ao lado do cercado da mãe, com acesso livre às tetas dela e piso aquecido.
Para passar o tempo e se manterem dóceis, os filhotes, sempre de barriga cheia, ouvem música suave, às vezes clássica, de uma caixa de som pendurada no alto do chiqueiro.
As bondades dos criadores ficam por aí, pois com poucos dias de vida os leitões são submetidos às torturas do corte de dentes caninos e da aplicação de diversas vacinas, com enormes e dolorosas agulhas.
Com quatro semanas são desmamados, para que a mãe seja inseminada de novo, gerando filhos em escala industrial. A criadeira só sai desta rotina quando é descartada como matriz e segue o destino comum de sua descendência, rumo ao abatedouro mais próximo.
Os leitões, por sua vez, são transferidos para as propriedades dos tais terminadores, como são chamados os criadores especializados na engorda ou crescimento físico dos suínos.
Hoje, como ninguém mais quer saber de banha ou carne gorda, os suinocultores só fazem a terminação dos animais, para entregá-los prontos para o abate, com peso vivo de 100 quilos ou pouco mais.
Mas voltando às UPLs, entre as peculiaridades de uma delas, do distrito de Concórdia do Oeste, em Toledo, estava a tradição de manter um rádio de pilha ligado o dia inteiro, lá no teto da pocilga, para entreter os porcos da granja, onde havia animais de todas as idades e gostos musicais.
O aparelho substituía toca - CDs mais modernos e mais potentes, utilizados na audição de músicas eruditas em outras criações, inclusive vizinhas, atendendo, com certeza, muito mais a preferência de criadores escolarizados e cultos, do que a opção sonora de ouvintes compulsórios.
O rádio era sintonizado numa emissora de rádio AM da cidade, no volume máximo, para passar o dia reproduzindo música popular, incluindo canções bregas e chatas.
As exceções eram intervalos comerciais e rápidos noticiários, com informações nacionais e internacionais, todas “chupadas” da internet. As notícias locais, invariavelmente se resumiam aos registros de ocorrências policiais, envolvendo tragédias humanas.
Lá de vez em quando, no meio da programação, eram citados eventos da cidade e comunidades do interior, desde festas gastronômicas tradicionais e reuniões de associações de moradores, até cultos religiosos, casamentos, notas de falecimento e matinés - dançantes de grupos de idosos.
O áudio não era dos mais interessantes para a maioria do plantel, mas lá de vez em quando alguma porca mais atenta ou algum leitão mais curioso, prestava um pouco de atenção aos sons vindos do rádio.
Era início de agosto e sabe-se lá porque, numa determinada manhã, uma informação despertou a curiosidade de um porquinho de poucos dias de vida.
Foi o anúncio da aproximação de mais uma edição da Festa Nacional do Porco no Rolete, prevista para o final do mês de setembro, num tal de Clube de Caça e Pesca, na cidade de Toledo.
Como anúncio de festa sempre representa atração especial para indivíduos de todas as idades, incluindo os da espécie suína, a notícia do evento mexeu com a imaginação do leitão.
Afinal era festa de porco, o que, em princípio, parecia muito interessante, até porque o leitão desconhecia o verdadeiro significado da informação, no contexto amplo do evento.
- Mãe, você ouviu? Tem festa de porco aí por perto. É festa de porco, mãe! De porco no rolete! O que é mesmo rolete? Onde fica o rolete? Será que leitão pode entrar? Onde fica Toledo? E o Clube de Caça e Pesca?
- Esquece filho. Acho que nem é bem festa de porco. Isso é coisa de humanos... Não é coisa para seu focinho.
O porquinho, no entanto, não tirava mais a dita festa da cabeça. Passava noites e dias pensando em como ir à festa do porco. Queria porque queria saber mais a respeito.
Perguntava para o restante da ninhada, os leitões de mais idade e as porcas vizinhas, mas ninguém sabia de nada, o que alimentava e aumentava ainda mais a sua curiosidade.
Numa certa noite, jurou para si mesmo, entre um suspiro e um grunhido, que ainda desvendaria o mistério. Acharia um jeito de descobrir onde seria a festança e descobriria um jeito de chegar lá.
Para seu desespero, no entanto, na manhã seguinte corria boato na UPL de que a transferência do lote de leitões desmamados seguiria naquela tarde para a unidade de terminação pré-estabelecida.
Não sabia direito do que se tratava e de quem seria a nova morada, mas algo lhe dizia que poderia ser um caminho sem volta. Seria um destino desconhecido, sem distância e sem desfecho definidos.
O pavor começou a tomar conta do leitão. O instinto lhe dizia que precisava fazer algo radical e urgente. Do contrário perderia a única chance da vida de conhecer uma verdadeira festa de porco. Um evento especial da espécie, porque no rolete, fosse o que fosse o detalhe.
A cidade da festa, pelo que tinha ouvido falar, se tratava de aglomeração semelhante a de um chiqueirão imenso, quase sem fim, com a diferença de que lá moravam humanos e não suínos.
De tanto pensar numa saída, a cabecinha do leitão já estava quase fumaçando. Para piorar sua aflição, não surgia nada que significasse uma esperança de solução concreta para a insegurança vivida, naquela situação inusitada.
Até que um humano veio inspecionar a “creche” do porquinho, para ver se estava tudo certo para o carregamento dos leitões, algumas horas, mais tarde. O empregado entrou no cercado e deixou o portão entreaberto, por uns instantes. Era tudo o que o leitão precisava.
O porquinho viu a saída livre, arrancou em disparada, cruzou pela fresta entre a grade e o muro de tijolos e roncando o mais baixo que podia, seguiu correndo por espaços estreitos, até chegar a um portão maior, que dava acesso ao pátio externo da pocilga.
Sem olhar para trás, cruzou o terreno limpo e entrou num arvoredo que separava o chiqueiro da mata próxima e do riacho que corria em leito pedregoso, no sombrio de copas de árvores enormes.
Não por acaso, as porcas sempre aconselhavam os filhos mais afoitos a jamais se aventurarem na floresta, mesmo que tivessem essa chance, sob o argumento de que era habitada por predadores famintos e ferozes, como onças, gatos do mato e cães selvagens, todos carnívoros e fanáticos por lombo, costela e pernil de leitão.
Sem tempo para recordar os alertas da mãe, o porquinho seguiu correndo pela margem do curso d’água, sem saber como atravessá-lo. Seu objetivo inicial era ir até o mais longe possível, para não ser encontrado, capturado e levado para a terminação, junto com o restante da ninhada.
Assim, correu até não conseguir mais sequer andar, pois de roncar havia parado há muito tempo, sem forças para mais esse esforço. A corrida desesperada virou trote e depois passos lentos, até que exausto, deitou-se no chão, à beira do riacho e á sombra, para descansar um pouco.
O silêncio da mata fechada, só era quebrado pelo eco distante dos gritos do peão chamando o porquinho perdido, pelo ruído da água correndo entre as pedras do leito do riacho e o canto de pássaros. Depois que conseguiu respirar novamente com normalidade, o temor novamente tomou conta do animalzinho.
Sentiu uma vontade quase incontrolável de voltar para o chiqueiro e a proteção do cercado, mas se deu conta que não saberia o caminho. Afinal, correu sem rumo por mais de uma hora, até não ver e não ouvir mais nada de familiar. Além disso, lembrou que sua meta maior, o seu projeto de vida, era participar de uma legítima festa de porco.
Sem alternativa, como por instinto de sobrevivência, procurou um cantinho abrigado, pois começava a escurecer na floresta e era preciso se proteger. Cansado, deitou, enfiou a cabeça entre as pernas traseiras e depois de tremer um pouco e chamar a mãe, ainda que mentalmente, dormiu.
Acordou ainda assustado na manhã seguinte, pois além de continuar sem saber onde estava, a fome começava a fazer doer a barriga. Água limpa, por sorte, estava à disposição ao lado. Apesar de tudo, concluiu que o importante é que estava vivo e inteiro.
Assim, depois de experimentar algumas folhas e frutas caídas no chão, comeu as menos amargas, renovou as forças e sem outra opção, retomou a fuga, embora sem a correria da véspera.
Sem saída melhor, resolveu seguir o rio e os dias seguintes repetiam a rotina e a paisagem da véspera, com muitas árvores, muita sombra e muitos ruídos desconhecidos, mas, felizmente, sem a experiência da surpresa de alguma ameaça real e concreta à sua frente.
Até que o riacho virou um rio, com a outra margem bem mais distante. Cada vez com menos opções de caminhos mais seguros, decidiu seguir na direção contrária da corrente de água, pelo tempo que fosse preciso, até encontrar trilha melhor.
Assim passaram-se os dias e algumas semanas, com o porquinho vivendo o cotidiano de se alimentar de folhas e frutas, beber água sempre que sentisse sede e andar com cuidado, mas o mais rápido possível, por entre árvores, pedras e arbustos, dos mais variados tamanhos e densidades dos galhos.
Numa determinada manhã, comemorou o fato de voltar a ouvir vozes humanas e os conhecidos barulhos de martelos, machados e outras ferramentas familiares, bem como ruídos de carros passando à uma certa distância. Como tudo isso fizesse parte de sua memória, de início achou que tinha retornado à UPL de nascença.
A possibilidade, ao mesmo tempo em que representava um alívio, pois voltaria a se sentir em segurança no meio da ninhada, também era tudo contrário ao que ambicionara nos últimos tempos, enfrentando todo o tipo de riscos e sacrifícios possíveis para um ser de sua espécie, na busca de um objetivo bem definido, a participação de uma festa de porco.
Nesse dilema, decidiu parar um pouco e aguardar os acontecimentos, ouvindo todos os sons que lhe chegavam, tentando filtrar alguma informação importante que ajudasse a escolher o passo seguinte.
Como a barulheira persistisse dia e noite e até aumentasse em volume, sem que nada lhe ameaçasse objetivamente, resolveu sair de onde estava e tentar se aproximar da origem dos ruídos, incluindo o vozerio dos humanos.
Com todo o cuidado possível foi avançando, até que escureceu. Procurou abrigo e dormiu, pensando em acordar mais cedo na manhã seguinte. Era tal a fixação, que esqueceu de comer. Acordou de madrugada, com fome e sede.
Satisfez a ambas as urgências do jeito que pôde e seguiu, devagar e atento, rumo ao barulho de muita gente reunida, com gritos, gargalhadas, música e ruído de carros e caminhões passando cada vez mais perto. Até, que, de repetente, sentiu um cheiro diferente e penetrante a lhe invadir o focinho.
Jamais tinha sentido odor igual e lhe parecia ser de algo queimando sobre fogo aceso. Olhou para o alto e viu muita fumaça cruzando o céu, levada pelo vento norte. Mesmo temendo não conseguia ser maior que a curiosidade, seguiu na direção do cheiro forte e estranho.
Quando se deu conta, seguindo pela margem do rio, saiu da vegetação e se viu no meio de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, todos conversando animados e andando apressados numa mesma direção.
Por maior que fosse sua imaginação, jamais se daria conta que naquele momento havia concretizado o seu grande sonho e talvez o maior desafio já enfrentado por um leitão.
Era difícil acreditar, mas finalmente e quase sem querer havia chegado à sede do famoso Clube de Caça e Pesca, em Toledo, e quase por milagre estava no recinto da grandiosa Festa do Porco no Rolete
Depois de ser chamado de “porquinho bonitinho, gracinha e fofinho” por algumas pessoas, julgou-se em relativa segurança e resolveu seguir o grupo de humanos.
Enquanto isso, o cheiro estranho só aumentava, até que, de surpresa, sentiu calor intenso, vindo de num muro de tijolos não muito alto e bem próximo, cercado de pessoas vestidas de branco.
Resolveu se aproximar. A visão que teve jamais sairá de sua mente suína. Eram carcaças de porcos jovens, membros de sua espécie, talvez até amigos ou parentes, todos abatidos, recheados e costurados, já dourados, girando e torrando sobre o braseiro.
Não conhecia cinema e muito menos efeitos especiais, mas a cena inusitada que presenciou, ao contrário do sabor delicioso e inconfundível do prato típico aos narizes e olhares humanos, lhe pareceu um filme de terror, assustador e inimaginável para a mais fértil das mentes animais.
Mesmo que ignorado pelos humanos que o cercavam, quase desmaiou. Trêmulo, aflito e desesperado, deu um gemido e arrancou em disparada em direção à vegetação mais próxima. Entrou na mata e só foi parar, quase sem conseguir respirar, na margem do Rio São Francisco.
Depois de recuperar o fôlego, voltou a correr, até deparar com um cercado de tela, que se estendia até dentro do rio.
Sem conseguir ultrapassar o obstáculo, tratou de encontrar um meio de contorná-lo e seguir fugindo. Andou um pouco, até que foi cercado e capturado por dois homens desconhecidos.
Sem nenhuma explicação, eles o levaram para um chiqueiro de aparência, cheiro e ambiente familiar, dentro de um enorme galpão, a algumas centenas de metros da festa.
Era uma construção parecida com a polcilga onde nasceu, embora com divisões diferentes das UPLs. Naquela propriedade, a suinocultura era a tradicional e os leitões permaneciam com as mães ou criadeiras por um bom tempo.
As porcas os alimentavam, protegiam, afagavam e treinavam durante meses. Por isso, havia muitos suínos de todas as idades nos cercados vizinhos.
Apesar de recém chegado e ainda não totalmente recuperado dos sustos recentes, gostou do ambiente e das companhias. Como parecia não haver a possibilidade de fugir novamente, logo estava adaptado à nova vida.
Ali cresceu, bem cuidado, alimentado e regularmente vacinado. Como era de raça valorizada, não foi castrado com os leitões de sua idade e logo virou reprodutor.
A única coisa que lhe atrapalhou a felicidade completa pelo resto da vida, foram as gozações intermináveis de animais da sua e outras espécies, devido à fama de mentiroso que carregou entre a bicharada mais próxima.
Foi o preço pago pelas histórias que logo se espalharam na vizinhança, das aventuras de primeiro suíno a entrar voluntariamente e sair ileso de uma verdadeira e grande festa de porco no rolete.

* O autor é jornalista e escritor

----------------------------------

UM CONTO CONTADO

No dia/noite/tarde/manhã de 03 de abril de 1962, de acordo com o calendário gregoriano, Marcos saia de sua guarida mais preciosa (o ventre de sua mãe, sua celestial protetora, Conceição) e enfrentava o mundo, já sendo chamado de ‘’ lindinho’’, ‘’ fofinho’’ e rotulações deste gênero às quais respondia com ensurdecedores berros de rebeldia aos ‘’tapinhas’’ que recebera logo na chegada.
Neste mesmo dia, o ainda presidente João Goulart era recebido na Casa Branca por John Kenedy, que mais tarde viria a ser nome de importantes vias públicas brasileiras. Já, coincidentemente, neste mesmo ano, ‘’O Pagador de promessas’’ seria o primeiro filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, a seleção brasileira de futebol sagra-se bicampeã mundial, Goulart institui o 13 salário, Fidel Castro é excomungado por João XXIII, é criado o Comando Geral dos Trabalhadores, desarticulado pelo gole de 64, surge o PC do B, primeiro partido comunista que se insurge contra Krushev, estudante param por 3 meses quase 40 universidades do país, greve geral nacional, morre Marylin Monroe, a Bossa Nova conquista a América no Carnaggie Hall. Tudo isso em meio aos choros, mãnhas, e manhãs tendo que ouvir diuturnamente os toques de cornetas do exército, visto que morava em frente ao 13 BIB, Batalhão De infantaria Blindada na cidade de Ponta Grossa.
Em 64, talvez por não estar presente ao nascimento de “marquinhos”, como era chamado por sua mãe, João Goulart foi deposto, sendo este o primeiro GOLPE sofrido, por Marcos, BLACK, o que, certamente, o marcaria elo resto de sua vida.
Aprendeu a ler e escrever precocemente por intermédio de ‘’Ceicinha’’ (SUA MÃE) que mesmo com dificuldades já preconizava um futuro difícil para o já diagnosticado sofrente de bronquite asmático e crônico. As noites intermitentes de asma e crises de tosses causavam danos e Preocupações a todos, fazendo com que noites de insônia se perpetuassem até se transformarem EM uma patologia característica daquele que se tornaria um admirador da noite e das estrelas, das chuvas e tempestades, dos calores e frios inerentes ao lusco-fusco, ao por e nascer do sol, momentos de tênues luminosidades, transformadas em verdadeiras fogueiras de luz ao cair da noite e ao breu imanente das nuvens que cobriam, invariavelmente, o espectro solar.
Assim, o "Toninho" (mais uma forma carinhosa com que era chamado pela genitora) ascende a um aprendizado autodidata, vira "rato de biblioteca", "devorador de livros’’, viciado em leituras, fossem científicas ou meras curiosidades literárias, onde se misturavam clássicos, textos populares, dicionários de idiomas estrangeiros, leis e bulas de remédios, muitos daqueles que, imprescindivelmente, viria a usar. As noites de insônia permitiam ver a origem dos ovos de Páscoa, os presentes de natal, o verdadeiro Papai Noel, ou Mamãe Noel, as roupas novas, que, na calada das noites, ELA se esmerava em manter a fantasia de seus primogênitos, todas elaboradas, costuradas, produzidas e presenteadas por Ceiça, que nem imaginava que era observada pelo insone.
Ditadura militar. Carros do Esquadrão da morte nas rodovias de São Paulo. Assassinatos políticos. Torturas. Uma infância compartilhada com dois irmãos. Com uma Mãe/Pai faz tudo. Lava passa costura cozinha escola corre corre cuida lava passa cozinha ensina educa retruca e eis. Eis a milagrosa cena. Noite tenebrosa. Pede para morrer. Ceicinha sai e encontra o remédio. Nunca mais tosses. Nunca mais crises de asmas. Nunca mais inalações. Nunca mais chorar por não poder jogar futebol. A morte não quis aceitar o pedido. A vida aceitou o pedido da mãe. O cosmos, as energias todas, os orixás, os xamãs, os anjos, os deuses o colocariam às provas.
Ditadura. Médice. Mortes. Brasil. Ame-o ou deixe-o. Dom e Ravel. Transamazônica. Milagre Brasileiro. Aí vem o esporte. A necessidade de ir em busca do tempo perdido. As viagens de carona. Os acampamentos. As aventuras. A materialização do até irrealizável. As conquistas. A práxis. A consciência existencial. A crença. A descrença. O ideal. O utópico. Os amores. A sexualidade. O teatro. A música. A política. O direito. O errado. O DIREITO. O direito de todos. O Partido dos Trabalhadores. Os prêmios. Os cursos. Os concursos. As reprovações e aprovações. Os vestibulares. A farmácia e Bioquímica. Direito. Odonto. Os amores iniciados e acabados. O FETECA. FENATA. FUC-UEPG. UEPG. PUC. UFPR.
CUT. PT. DIRETAS JÁ. TANCREDO. SARNEY. DCE. UEPG. SINDICATOS. ASSESSORIA. JORNALISMO. FHC. LULA. DILMA.
GOLPE. GOLPE. GOLPE. TEMER. TEMER. RESISTÊNCIA
POESIA. SANGUE. SUOR. LÁGRIMAS. POESIA.
ELIANE (ser divino) Mãe da Maria e do Thiago
Amélia (ser cósmico) Mãe de Shivan
Um futuro presente repleto de passado.
A luta continua. Eu, ela e a vida também. Continuaremos lado a lado.
Nasceu em Ponta Grossa. Poeta. Escritor. Diretor de Teatro. Estudou Na Universidade Estadual de Ponta Grossa, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e na Universidade Federal do Paraná.
Militante do Partido dos Trabalhadores. Lobo solitário. Equilibrista das noites de verão, outono, primavera, inverno. Amante do perigo de viver. Autor dos livros “Censurado” de 1983 e “Manobras Incompletas” de 2014. Participação em dezenas de antologias de poesias, contos e resenhas. Tradutor de Inglês e espanhol. Assessor Sindical. Assessor Parlamentar. Fala francês, inglês, espanhol e um pouquinho de português. Deve morrer em breve. De morte matada. Causada por si mesmo.

  -----------------------------------------

Walmir Assunção*

 Recentemente em Portugal pelas eliminatórias da Uefa, a torcida do Porto em massa, espinafrou um por um  os jogadores negros do Manchester. É claro que isto não ficaria assim. Por puro revanchismo, na partida de volta, os torcedores do Manchester não poderiam deixar de espinafrar os jogadores negros do Porto.  Como a Polícia não pode prender um estádio inteiro, ninguém foi preso. Assim trocaram xingamentos racistas e acusações de racismo.

      É  vantajoso; através dessas tradicionais camisas de times, o Velho Mundo, saturado de conflitos, enfim arrumou uma solução para que portugueses,  ingleses e  demais vizinhos se odeiem e desprezem  sem risco algum ou mútuas  ofensas. Podem mesmo ser muito úteis esses negros. Além da limpeza do lugar, com as vassouras, são os responsáveis pelo filtro do ambiente.

            Eu sugestiono que deixem o negro no tablado, deve ser o mesmo crioulo, é mais econômico e a Europa está em crise financeira, além de consciência. Ele que sirva de cobaia para o histerismo  e as leis. O pagamento pode ser em bananas. Que seja estipulada a banana como moeda oficial dos xingamentos. Uma caturra equivale a três palavrões, como uma libra. A nanica equivale a uma módica ofensa à mãe, quase um escape, como uma rúpia vegetariana. É o que esperamos do primeiro mundo. Nem todos podem entender ofensas verbais nessa Babilônia. Assim Roberto Carlos, por exemplo, se recebesse determinada banana, decodificada, potencialmente simiesca, naturalmente não saberia se defender, por sua retórica simiesca. Não seria em vão a chula banana que recebeu na Rússia. Para que tanto desperdício? Penso que o macaco tem uma péssima reputação nas terras do Norte.

             Sem vigiar os seus mortos, a Europa agora quer vigiar os seus meninos. Estes não fazem por mal; xingam negros e espancam por má influência. Também não nos esqueçamos do excesso de hormônio, ainda que muitos estejam velhos . Basta cerca-los com policiais e cachorros, vigia-los por câmeras, satélites e advogados que os contenham; notemos como são evoluídos. Todos estão  muito bem orientados, saturados por campanhas e mais campanhas.

            Campanhas nas  escolas, no trem, nos asilos, nos cruzeiros, com escafandristas. São enormes cartazes com uma simples frase: “não xingue um negro”. É de causar inveja tanta evolução.

            E cá entre nós, com aqueles museus, arte de todos os cantos; arte sua, saqueada ou não, é de muito bom tom a Europa gostar tanto assim de futebol, dessa maneira incontida, com fanatismo tão singelo. É  sinal de renovação.

        Parece que vai muito bem o Velho Mundo, obrigado, a nossa velha Madrasta, no tocante aos filhos e afilhados. Eu os saúdo daqui, por um grunhido tranquilo e sereno. E desde já espero que me digam o significado.

 * Crônista e contista curitibano