O inferno é aqui mesmo!
O Brasil tem sido o país que mais utiliza agrotóxico há cinco anos
Para aqueles que adoram bater no peito, bem ufanista, a cada anúncio
de novo recorde tupiniquim, eis aqui uma notícia que devemos analisar
com muita cautela antes de qualquer comemoração precipitada. Isso porque
o Brasil obteve o
pentacampeonato mundial no quesito utilização
intensiva de agrotóxicos em território nacional. Não, você não se
enganou aqui na leitura, não! É isso mesmo: pelo quinto ano consecutivo,
de 2008 a 2012, nosso País esteve à frente de todos os demais do
planeta quanto ao volume de substâncias venenosas utilizadas nas
atividades agropecuárias e correlatas.
Apesar de todos nós termos algum grau de avaliação subjetiva a
respeito da gravidade da situação, a observação dos números torna o
quadro realmente impressionante. O Brasil consome o equivalente a quase
1/5 do total de agrotóxicos produzidos no mundo: mais precisamente 19%. A
título de comparação, os Estados Unidos surgem logo atrás com 17%. Isso
significa que, não obstante termos um total de área agrícola cultivada
muito menor que os norte-americanos, utilizamos muito mais agrotóxicos
do que eles. Portanto, se existe alguma racionalidade nessa
desproporção, ela só se explica pela ganância de lucro, a qualquer preço
e sem a menor responsabilidade social ou ambiental, por parte das
empresas produtores dessas substâncias causadoras de tantos malefícios
ao ser humano e ao meio ambiente.
Brasil é recordista mundial no uso de agrotóxicos
Ao longo da primeira década desse milênio, a produção das 8 principais
commodities
em nosso País cresceu 97%, enquanto a área plantada aumentou em 30%.
Porém, o total de vendas de agrotóxicos elevou-se em um patamar muito
acima: subiu em 200%. Em 2010, foram vendidas 936 mil toneladas de
agrotóxicos, um negócio que movimentou o equivalente a US$ 7,3 bilhões.
Cálculos desenvolvidos por pesquisadores falam de um consumo médio anual
superior a 5 kg por habitante. A importância das cifras negociais da
atividade dá a medida de sua capacidade de fazer pressão sobre os órgãos
governamentais encarregados de estabelecer as políticas públicas para o
setor.
Por se tratar de substâncias especiais, os agrotóxicos são passíveis
de regulação e regulamentação por parte da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), assim como ocorre com os medicamentos,
alimentos e demais produtos que possam comprometer a saúde. No entanto,
ao contrário dos procedimentos adotados para os remédios e assemelhados
(revisões periódicas das licenças e autorizações concedidas), os
agrotóxicos podem ser fabricados livremente, sem tal reavaliação
obrigatória. Os registros dos agrotóxicos junto ao setor público têm seu
prazo de validade por tempo indeterminado, enquanto nos países
desenvolvidos o período médio é de 10 anos.
Além disso, há uma circunstância agravante: boa parte dos agrotóxicos
ainda produzidos aqui em nosso território já teve sua comercialização
proibida nos países das matrizes das multinacionais, como Estados
Unidos, Canadá e União Européia. No entanto, a exemplo do que ocorre com
os demais mercados oligopolizados em escala global, no setor há 13
empresas que dominam quase 90% da oferta mundial de agrotóxicos. No
Brasil, as 10 maiores respondem por 75% das vendas. O uso intensivo e
continuado dos mesmos produtos acaba por gerar uma resistência e sua
própria “eficiência” fica comprometida. Assim, o ciclo econômico e
produtivo continua por meio da elevação das doses aplicadas na
agricultura e também pela adoção dos novos produtos considerados mais
eficazes, uma vez que são ainda desconhecidos do mundo vegetal onde
passarão a atuar.
Modelo baseado no agronegócio e os hortifruti: risco crescente
Boa parte desse volume todo está associado ao modelo econômico aqui
reinante, ancorado no agronegócio a todo custo. Ao contrário do que
imagina o senso comum, as culturas transgênicas acabam por demandar uma
quantidade maior de agrotóxicos e que estão sendo cada vez mais
proibidos nos países desenvolvidos. A tendência, portanto, é que os
requisitos para as importações nesses países sejam ainda mais rigorosos –
e isso pode comprometer nossa performance exportadora desse tipo de
produto agrícola a médio e longo prazo. A esse respeito, por exemplo, a
própria China já inicia um processo de convergência de seus padrões de
produção e consumo de produtos agrícolas, sendo mais exigente que as
normas frouxas brasileiras.
Outro aspecto significativo é a concessão de estímulo tributário para
as empresas produtoras de tais mercadorias. Do ponto de vista do
governo federal, elas contam com isenção do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) – ou seja, a incidência de alíquota zero desse
tributo. Já com relação aos impostos estaduais, a regra atual prevê uma
redução de até 60% na incidência do ICMS. Com isso, o que se verifica é
que o próprio Estado brasileiro termina por favorecer e incentivar um
tipo de produto que é sabidamente prejudicial à saúde da população e
comprometedor da qualidade do meio ambiente.
Essa situação cria uma espécie de esquizofrenia na relação de tal
atividade com o poder estatal. De um lado, estimula-se a produção de
tais venenos em escala gigantesca e o resultado é a perda de receita
tributária em função das isenções de impostos. . Por outro lado, o
resultado da utilização desses mesmos produtos na atividade agropecuária
compromete, em sentido amplo, as condições sanitárias do País. Ou seja,
o Estado é – e será cada vez mais – chamado a realizar despesas com a
prevenção e o tratamento das tragédias (individuais e sociais) derivadas
do uso de agrotóxicos. E aqui os estudos de técnicos envolvidos com a
matéria apontam para o elevado custo social associado ao uso desses
produtos. Para cada dólar gasto em consumo de
agrotóxico, pode
estar embutido uma despesa futura de US$ 1,28 em despesas sociais pelo
governo. E são cálculos ainda subestimados, envolvendo apenas as doenças
agudas e conhecidas até o presente. Os custos indiretos no futuro
apontam para somas muito maiores.
Prejuízos para a saúde e para o meio ambiente
As conseqüências maléficas derivadas desse tipo de opção para a
atividade agrícola são inúmeras. Em primeiro lugar estão os próprios
trabalhadores envolvidos na produção dos venenos e na sua utilização nas
plantações. Em seguida, vêm os consumidores dos alimentos cuja
plantação esteve submetida ao uso de pesticidas prejudiciais à saúde
humana. E finalmente há um conjunto enorme de efeitos indiretos,
derivados da contaminação de solos e águas, cuja quantificação ainda
está por ser feita de forma ampla e abrangente. Atualmente, por exemplo,
estima-se que por volta de 20% do total de fungicidas seja utilizado
pela atividade de hortaliças, normalmente realizada nos cinturões verdes
próximos aos grandes espaços metropolitanos, de alta densidade
populacional. O uso intensivo desse tipo de agrotóxicos contamina de
forma radical os terrenos e os fluxos de água próximos ao habitat
urbano.
Os riscos já verificados para a saúde são muitos. As doenças
comprovadas vão desde diversos tipos de câncer, passando por um conjunto
de distúrbios neurológicos, psiquiátricos, má formação do feto, entre
outros. Além disso, as substâncias nocivas terminam por serem
transmitidas pelo aleitamento materno, podendo comprometer diretamente
as condições de saúde da geração seguinte, mesmo que o contato mais
direto com o
agrotóxico deixe de existir.
Do ponto de vista empresarial, a lógica que prevalece é a busca
incessante de maximização de seus lucros. E ponto final! Assim foi o que
ocorreu a partir da década de 1950, com a chamada “revolução verde”. Em
nome da elevação da produtividade da produção agrícola, entulhou-se o
planeta com essa primeira geração de pesticidas e herbicidas
artificiais, que vieram depois a serem proibidos em razão de seu
comprovado comprometimento da saúde. O entusiasmo com as possibilidades
de ganhos com a produção agrícola foi imediato, mas durou pouco. O
famoso e triste caso do DDT talvez seja o exemplo mais simbólico de tal
aventura irresponsável. Com a proibição dos produtos dessa fase mais
selvagem, a inovação tecnológica foi, aos poucos, incorporando novas
fórmulas de aparência mais suave, mas que continuavam a comprometer o
ser humano e o meio ambiente. Mas para as empresas, o importante é nunca
parar de produzir e de acumular sempre mais. Promove-se a reorganização
da produção e as plantas industriais de países com menor rigor de
controle passam a produzir os venenos que venham a ser proibidos nos
países de origem.
Necessidade de maior fiscalização e a busca de um novo modelo
Ora, para assegurar o bem estar coletivo da geração atual e das
futuras contamos apenas com a ação preventiva, reguladora e punitiva do
Estado. A visão liberal, de deixar a solução por conta apenas pelo
equilíbrio das forças de oferta e demanda, revela-se como uma insanidade
completa. E no caso brasileiro, tal presença do poder público deve ir
para além de um rigor maior na cassação de licenças reconhecidamente
danosas. É essencial a repressão ao contrabando de agrotóxicos que
entram ilegalmente pelas fronteiras de países vizinhos, somando-se às
toneladas acima mencionadas.
Mas talvez uma das ações mais importantes, do ponto de vista
estratégico e de longo prazo, seja mesmo a mudança cultural. O Estado
deve utilizar instrumentos de política econômica, de pesquisa
científica, de padrões de educação e de campanhas de esclarecimento para
mudar a forma como a sociedade encara o agrotóxico. Na contabilidade
empresarial, o uso de agrotóxico deve surgir como um fator de produção
mais caro, mais custoso do que os métodos agrícolas não agressivos. Do
ponto de vista do consumidor, deve haver uma maior conscientização para
que sejam mais demandados os produtos orgânicos e que não contenham
esses venenos em sua cadeia produtiva. Do ponto de vista dos produtores
rurais, devem ser estimuladas e apresentadas as formas alternativas de
atividade agropecuária, com recursos da biotecnologia e da tecnologia
social, de tal forma que façam chegar à mesa das famílias produtos
livres da transgenia e dos agrotóxicos.
Assim como ocorreu com a chamada “revolução verde” de meio século
atrás, já é passada a hora do Brasil intervir de forma mais protagonista
nessa nova transformação da forma de produção agropecuária. Trata-se de
incorporar elementos de sustentabilidade sócio-ambiental, para promover
a transição de modelo, rumo a produção de alimentos mais saudáveis para
o ser humano e para o futuro de nosso planeta.
1/11/2012 13:42,
Por Paulo Kliass - de Brasília
Paulo Kliass é Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em
Economia pela Universidade de Paris 10.