segunda-feira, 22 de setembro de 2014

SANEAMENTO




Os efluentes como recurso

Há cerca de 3,5 bilhões de anos, surgiu a vida na Terra. Ou melhor, na água. E quando aparentemente dela se emancipou, em verdade, a vida carregou consigo sua própria água. Nela se desenvolvem todos os processos químicos internos de um ser vivo. É a responsável pelo transporte de nutrientes e comunicação interna no organismo multicelular. A rigor, a vida, tal como a conhecemos, só é possível em meio aquoso.


Por Cesar Roberto Scheffler


Há cerca de 3,5 bilhões de anos, surgiu a vida na Terra. Ou melhor, na água. E quando aparentemente dela se emancipou, em verdade, a vida carregou consigo sua própria água. Nela se desenvolvem todos os processos químicos internos de um ser vivo. É a responsável pelo transporte de nutrientes e comunicação interna no organismo multicelular. A rigor, a vida, tal como a conhecemos, só é possível em meio aquoso.
Dentre todos os recursos naturais, renováveis ou não, a água é o que apresenta a relação mais íntima e direta com a vida. Como recurso renovável, apresenta um ciclo pelo qual retorna a suas condições primordiais; por sua ampla participação na esfera da vida, boa parte desse ciclo é operada por agentes biológicos. Não seria de se esperar que nossos mecanismos de tratamento da água fossem mais similares e integrados com os processos naturais?
 Vivemos num período histórico no qual se busca popularizar a consciência da necessidade de reutilização e reciclagem de todos os resíduos. A reciclagem revela-se um negócio lucrativo, em função do menor dispêndio energético envolvido em seus processos, se comparados à obtenção de matéria prima. Não é notável que os efluentes, carregados de nutrientes e matéria orgânica sejam vistos como problema, ao invés de oportunidade?
Mesmo com sistema de tratamento  centralizado, a figura representa a possibilidade de reaproveitamento de esgoto tratado na indústria e agricultura. Em certos casos o tratamento pode ser apenas parcial, reduzindo os custos do processo e aumentando a oferta de nutrientes no efluente destinado à irrigação.
Uma abordagem conceitual equívoca encontra-se na base do modelo convencional de coleta, tratamento e lançamento de efluentes em corpos receptores. Este modelo tende à centralização, pois ignorando as vantagens implícitas e as distinções entre as águas residuais, pauta-se pela economia resultante de processos uniformes e em grande escala. Apresenta também um viés capcioso: afinal, quem se beneficia da execução desses grandes sistemas de tratamento?


Sistema convencional (à direita) e sistema integrado de gestão do esgoto

    Alguns problemas são típicos das abordagens convencionais no tratamento de esgotos, pondo em questão a noção de que possam ser universal e invariavelmente aplicadas, e, principalmente a sua sustentabilidade. A mistura e consequente diluição de diversos tipos de efluentes, exigem métodos que geralmente são mais onerosos e menos eficientes. Além disso, em tais sistemas a diluição não ocorre apenas em função da mescla dos resíduos líquidos, tratando-se de uma imposição relativa ao transporte destes. Em virtude do que o consumo de água torna-se desnecessariamente elevado (aproximadamente um terço do consumo domiciliar). 
Apresentam, também, muitos riscos de poluição em virtude de vazamentos na rede, de difícil detecção. Ainda como riscos ambientais podemos apontar a sobrecarga a que se vêem submetidos os corpos hídricos em que se dá o lançamento do efluente tratado.
Possuem elevados custos de implantação, manutenção e operação além de exigirem elevado aporte de energia.Tratam-se de soluções padronizadas que nem sempre são capazes de responder ao rápido crescimento da demanda e condições caóticas em que esse se dá no seio de certos núcleos urbanos. E, talvez o mais relevante para o desenvolvimento sustentável, desperdiça valiosos recursos por não compreendê-los como tal.  


“Uma abordagem alternativa para o manejo dos esgotos domésticos é enxergá-los não como um problema que precisa ser afastado, mas como um recurso que, se gerido corretamente, pode ser reutilizado.”

            A frase acima, bem como os diagramas, são excertos de uma publicação do SWITCH (Sustainable Water Management Improves Tomorrow's Cities' Health), uma parceria para pesquisa e desenvolvimento que envolve 15 países e 32 parceiros sob a direção da UNESCO-IHE (institute for water education), trabalhando com recursos da Comissão Européia. O SWITCH tem estimulado o surgimento de abordagens baseadas na separação das componentes do esgoto e na utilização local, inserido os efluentes nos ciclos relacionados ao consumo de alimentos, água e energia dentro das cidades.
            Porque não descentralizar, permitindo um crescimento modular da infraestrutura de saneamento, que possa acompanhar o crescimento da cidade? Que possa promover a agricultura urbana, e o surgimento de pequenas áreas verdes distribuídas pelo espaço urbano? Que possa participar do quadro mais amplo da gestão dos recursos hídricos por bacias hidrográficas?

     Estes e outros questionamentos parecem cristalizar-se nas propostas do MOSAL (http://mosal-movimentosaneamentoalternat.blogspot.com.br/, http://mosal-saneamentodescentralizado-mosal.blogspot.com), na cidade de Florianópolis-SC. Contrapondo-se à proposta da CASAN (Companhia Catarinense de Água e Saneamento), o movimento tem realizado manifestações, palestras e debates com o intuito de conscientizar a população a respeito dos riscos e desvantagens do modelo oficial, centralizado e com o emprego de emissário submarino para lançamento do esgoto tratado. De acordo com Gert Schinke (foto ao lado), Coordenador Geral da FEEC (Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses) e membro do MOSAL, deve-se evitar “a construção dos antiecológicos ‘emissários submarinos’, com os quais se pratica um ‘duplo crime ambiental’ ao jogar fora água doce no mar e, ao mesmo tempo, poluir nossa costa afetando o turismo, a saúde e a pesca”.


O modelo alternativo defendido por seus integrantes baseia-se na descentralização, utilização da gravidade no transporte dos efluentes e emprego de zonas úmidas artificiais para o tratamento de efluentes. Entre os argumentos, a facilidade de ampliação e financiamento, o baixo custo por habitante, a flexibilidade e a adaptabilidade às condições locais, baixa interferência com outros sistemas de infraestrutura, facilidade de controle social... uma lista que se prolonga quase tanto quanto a Ilha de Santa Catarina.

Outros benefícios podem ser decisivos na opção por um sistema descentralizado. Em regiões que dependam dos lençóis freáticos para o abastecimento, o esgoto, depois de tratado, pode representar um importante papel na recarga dos aquíferos. É o caso de Lima, no Peru, que tem utilizado os esgotos domésticos para irrigação na agricultura urbana e periurbana, além de outras áreas verdes urbanas, obtendo resultados econômicos e equilibrando o ciclo hidrológico, pela recarga dos mananciais. Em virtude da experiência bem sucedida da capital, em novembro de 2010, com a aprovação do Ministério da Construção, Habitação e Saneamento, o governo adotou diretrizes que estimulam, em nível nacional, o reconhecimento dos efluentes domésticos como recursos.

Reutilização

As propostas descentralizadas favorecem o reuso da água. Permitem o tratamento por zona de raízes e áreas úmidas artificiais, que podem constituir belos jardins; facilitam a ferti-irrigação de áreas públicas ou o fornecimento a produtores agrícolas nas imediações da cidade. Possibilitam o aproveitamento energético do efluente pela comunidade e o emprego de biossólidos para adubação. Distribuem os impactos de acordo com a capacidade de assimilação do ambiente natural.                                                                                                     
 Küllon, Suécia (foto Ron Sawyer)
Banheiro com separação de urina. Küllon Suécia.
De modo que um bom sistema de gestão dos efluentes urbanos começa pelas unidades geradoras, os usuários da água potável, com a separação de efluentes de acordo com a natureza dos resíduos (tal como no caso dos resíduos sólidos). Isso aumenta as probabilidades de seleção dos métodos menos onerosos, que oferecem melhor retorno econômico, melhores resultados ambientais e sociais. Embora represente um aumento nos custos da construção, a coleta seletiva de efluentes representa uma economia considerável a médio e longo prazo.
Bombeamento da urina para irrigação. Suécia (foto Mats Johannsson)
 Habilita o usuário dos recursos hídricos a fazer o reuso das águas cinza em seu próprio espaço. E expande o conjunto de opções para a aplicação econômica dos resíduos em todas as escalas. O que equivale a dizer que potencializa o planejamento e gestão do ciclo hidrológico, no intuito de integrar perspectivas econômicas, sociais e ambientais. A satisfação das populações locais pode ser considerada, suas expectativas podem ser levadas em conta. E a transparência aumenta em todas as etapas do processo. São soluções mais participativas e sustentáveis.

A separação dos efluentes, tratamentos alternativos e o reuso da água que propiciam, podem representar a diferença entre ter ou não ter água para beber. Uma pesquisa realizada em 2012 pela empresa Maplecroft, especializada em análises de risco, resultou no mapeamento do estresse hídrico ao redor do globo. A conclusão é de que boa parte dos países industrializados ou em desenvolvimento enfrentam situações de alto e extremo risco em função de desperdício e consumo insustentável. Os piores índices, em função das características climáticas globais, encontram-se justamente em torno dos paralelos 30 a norte e sul do equador, regiões em que se encontram as grandes zonas áridas e desérticas do mundo.
Mapa do estresse hídrico mundial






Tratamento de água cinza em rua comerial, Tel Aviv.
Tratamento de água cinza em conjunto habitacional, Ganei Tikva, Israel (foto de Ralph Philip)

É dentro desse cenário que devemos destacar a proficiência de Israel no consumo racional e reuso das águas. Além das técnicas de irrigação extremamente precisas, o país conta com vários exemplos de sistemas urbanos de reaproveitamento de águas cinza, dentre os quais os exemplos mais conhecidos são de um conjunto de prédios em uma rua no centro de Tel-aviv e de um conjunto habitacional em Ganei Tikva, ambos desenvolvidos como jardins lineares com plantas aquáticas e espelhos d’água.





 Encontram-se também sistemas instalados em indústrias e em comunidades rurais, como é o caso do Kibutz Neot-smadar, com tratamento diferenciado de todos os tipos de efluente, por intermédio de zonas pantanosas artificiais especializadas, e consequente reuso da água.   
Sistema de tratamento por zonas pantanosas artificiais, Kibutz Neot Smadar, Israel. Imagem extraída de uma apresentação da empresa idealizadora, Ayala.
Frente ao atual estágio de desenvolvimento técnico no tratamento dos efluentes, a crescente demanda e a alarmante escassez, Israel tem repensado sua legislação, que proibia a reutilização da água por questões sanitárias.
O ideal é que o sistema de tratamento nunca perca de vista o fornecimento de água, pois sua influência mútua é inevitável. Para tanto, é importante conhecer várias alternativas de tratamento e reuso em suas relações com o ciclo hidrológico, além de suas implicações na esfera social, no domínio ambiental e seus impactos econômicos:

Separação da urina

Influências positivas diretas do uso de privadas com separação de urina.
  A urina é uma substância rica em nutrientes e isenta de patógenos. Ou melhor, os patógenos contidos na urina não apresentam risco de transmissão ambiental, especialmente quando a excreta permanece em repouso por alguns dias antes da aplicação, o que permite a sua aplicação direta na agricultura, sem necessidade de tratamento, diluída ou não. Sua separação na fonte reduz o consumo de energia, é uma excelente alternativa para o reuso de nitrogênio e fósforo, que desta forma não são lançados nos corpos hídricos. Resulta em economia energética nos sistemas de tratamento, contribui para a agricultura urbana e a manutenção de parques e praças.
Equipamento de aplicação de urina em larga escala.










Tratamento por infiltração no aquífero

benefícios diretos do tratamento por infiltração no aquífero
           O esgoto, após tratamento secundário é infiltrado por uma zona de percolação. Contaminantes microbiológicos e químicos são removidos por processos físicos, químicos e biológicos no solo e no próprio aquífero. Pode representar um incremento significativo para o potencial hídrico de uma cidade, já que a água pode ser reutilizada através de poços de extração situados fora da zona de tratamento. Possui baixo dispêndio de energia e boa performance econômica.
Corte esquemático da área de percolação, com seus poços de inspeção, num sistema de tratamento por infiltração no aquífero.

Zonas úmidas artificiais

  
         Possuem capacidade de remoção de um amplo espectro de contaminantes: sólidos em suspenção, matéria orgânica, metais, patógenos, nitrogênio e fósforo, entre outros. Isso ocorre em função dos múltiplos mecanismos que podem ser combinados nelas. Filtração pelo substrato, reações químicas com o mesmo, processos biológicos promovidos pelas plantas empregadas ou pelos micro-organismos que se fixam no meio de filtragem e no solo, ou se associam às raízes, são os principais fundamentos do tratamento efetuado, variando em seu potencial conforme a configuração de fluxos e substratos, conforme se vê à esquerda. Estabelecem micro ecossistemas que dão suporte ao aumento da biodiversidade local, geram biomassa para adubação verde, propiciam o reuso da água, com baixos custos de instalação e operação; dispêndio energético mínimo.


Biodigestores

Benefícios diretos do uso do lodo estabilizado (biossólidos).
Podem ser utilizados para a degradação, de subprodutos do tratamento primário e secundário (lodo), ou como sistema primário. Baseiam se em processos biológicos anaeróbios e oferecem como subprodutos o biofertiliante líquido (reuso da água e nutrientes) e biossólios para adubação (lodo estabilizado), praticamente isentos de patógenos. Evita a perda do biogás resultante da digestão anaeróbia, que pode ser usado para aquecer ambientes, cocção de alimentos, iluminação, combustível automotivo e geração de energia.

 Influências positivas diretas do emprego de tratamento por biodigestores.





Influências benéficas diretas do uso de lagoas de estabilização.
Lagoas de tratamento

São reservatórios construídos que concentram bactérias e algas para o tratamento de efluentes. Normalmente dispostas em sequência de profundidade decrescente: anaeróbias (5-2,5m), facultativas (2,5-1,5m) e aeróbias (máx 1,5m). Sistema bastante robusto, resiste bem a impactos externos, como variação de temperatura, aporte de água precipitada sobre e flutuações na qualidade e quantidade do esgoto. Apresentam baixo custo econômico e energético para operação, ótima redução dos patógenos, e possibilidade de aproveitamento da última lagoa para aquicultura e como fonte para irrigação.


 Adaptação de sistemas já existentes

Os sistemas decentralizados prometem uma série de vantagens a médio e longo prazo. Mas o que fazer quando já se tem um sistema centralizado? É necessário colocar na balança os custos e o benefício, pois uma vez que a estação de tratamento já esteja construída, resta apenas a construção da rede. Grandes estações de tratamento são projetadas para suportar demandas que pressupõem o crescimento populacional de décadas, o que implica em que estejam subutilizadas no começo. Basta então estender a rede de coleta conforme o crescimento urbano, o que por vezes exige bombeamento. Adaptar sistemas já existentes, no entanto, costuma ser muito mais oneroso.
Existe também a possibilidade de utilizar sistemas complementares. Porém, mesmo que a construção de pequenos sistemas adicionais com micro redes seja aparentemente mais barata, ainda é necessário questionar sua viabilidade, pois as soluções não são universais: dependem do tipo de solo, clima, disponibilidade de materiais. Estudos de caso são sempre indispensáveis.
É por um processo semelhante de tomada de decisões que passa a cidade de Marechal Cândido Rondon-PR. O município conta com um complexo de lagoas de tratamento que comportariam o total do esgoto gerado no perímetro urbano, mas que recebem apenas 40% deste. Para os restantes 60% bastaria a construção da rede, que implicaria o emprego de bombas e elevatórios. Levantou-se a possibilidade de construir, para a o sul e o leste da cidade, pequenas estações conforme as bacias hidrográficas, estações compactas ou tratamentos alternativos.
Segundo o diretor executivo do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto), Luiz Carlos Grillo Lírio, a cidade foi contemplada com um estudo da FUNASA, para avaliar o modelo de tratamento mais adequado para a cidade. O resultado ainda está por vir. E embora um sistema de tratamento por infiltração fosse altamente recomendável, uma vez que o abastecimento de água é servido principalmente por extração de água de minas e poços, requerendo recarga do aquífero, seria necessário encontrar zonas de percolação adequadas, caso o solo permita. 
O fato é que cada caso requer consideração para com suas peculiaridades, exigindo estudo aprofundados. Não obstante, pode-se dizer que uma regra geral deve conduzir as novas abordagens para o tratamento de efluentes: a valorização dos generosos recursos que se podem aproveitar neste processo.


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