sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

HISTÓRIA

 

Por que o Brasil continuou um só enquanto a América espanhola se dividiu em vários países?

  • Luis Barrucho - @luisbarrucho*
  • Da BBC News Brasil em Londres

  • Quase dois séculos atrás, em 7 de setembro de 1822, o Brasil ganhava sua independência de Portugal.

    Mas por que a América portuguesa se tornou um único país, enquanto a América espanhola se fragmentou em outros tantos?

    Não há apenas uma única razão, mas várias, segundo historiadores com quem a BBC News Brasil conversou. E, para quem busca respostas fáceis, um alerta. Não há unanimidade nas conclusões.



  • Maiores distâncias, diferentes estilos de administração

    Uma das causas tem a ver com a distância geográfica entre as cidades das antigas colônias e a forma como as duas possessões eram administradas por suas respectivas metrópoles.

  • Ainda que a colônia portuguesa tivesse dimensões continentais, a maior parte da população se concentrava em cidades costeiras, enquanto o interior permanecia praticamente inexplorado, lembra à BBC News Brasil o historiador mexicano Alfredo Ávila Rueda, da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).

  • "É verdade que, hoje, o Brasil é um país enorme, com mais de 8 milhões de km². Mas, na prática, na época da independência, as principais cidades se concentravam no litoral. As distâncias entre as cidades eram, assim, menores do que na América Espanhola. O interior era praticamente território que não era controlado pela Coroa portuguesa", diz.

    Já a América Espanhola era formada por quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Peru, Rio da Prata e Nova Granada, com poucos vínculos - senão comerciais - entre si. Cada um deles respondia à Coroa e tinha vida própria.

    Ou seja, eram administrados localmente. Além disso, foram criadas capitanias que tinham governos independentes desses vice-reinados, como as da Venezuela, Guatemala, Chile e Quito, acrescenta Ávila Rueda.

    "A administração espanhola se deu em torno de duas 'sub-metrópoles': México e Peru. Isso não aconteceu no Brasil, onde a administração era muito mais centralizada", explica o historiador mexicano.



  • Diferenças entre as elites

    Outra causa está relacionada à formação e à representatividade das elites nas duas colônias, na opinião do historiador brasileiro José Murilo de Carvalho.

    No Brasil, a elite era muito mais homogênea ideologicamente do que a espanhola, diz ele.

    Carvalho argumenta que isso se deveu à tradição burocrática portuguesa. Portugal nunca permitiu a criação de universidades em sua colônia. Escolas superiores só foram criadas após a chegada da corte, em 1808. Assim, os brasileiros que quisessem e pudessem ter formação universitária tinham que viajar a Portugal, sobretudo à cidade de Coimbra.

    "Diante de um pedido para se criar uma escola de Medicina em Minas Gerais, no século 18, a resposta da Corte foi: agora pedem uma faculdade de Medicina, daqui a pouco vão pedir uma faculdade de Direito e, em seguida, vão querer a independência", exemplifica o historiador brasileiro.

    Quando se formavam, esses ex-alunos voltavam ao Brasil e acabavam ocupando cargos importantes na administração da colônia. Ou seja, um desembargador em Pernambuco formado em Coimbra tinha grandes chances de conhecer um desembargador do Rio de Janeiro também diplomado na mesma universidade, ou de ter conhecidos em comum, o que, na opinião de Carvalho, favoreceu um sentimento de unidade na colônia.

    "Esses estudantes luso-brasileiros em Coimbra tinham organização própria. Envolveram-se no mesmo ensino que os portugueses e foram absorvidos pela burocracia da Corte, sendo enviados a todos os pontos do império português - do Brasil à África. Portugal tinha uma população muito pequena à época e não havia gente suficiente para administrar seu império. Acabou dependendo dos brasileiros treinados lá", diz.

    "Eles formaram grande parte da elite política brasileira até cerca de 1850, como ministros, conselheiros de Estado, deputados e senadores", acrescenta.

    Segundo Murilo de Carvalho, essa formação da elite brasileira em Portugal acabou por favorecer a obediência à figura real e a crença nas virtudes do poder centralizado.

    Entre 1772 e 1872, passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros.

    Por outro lado, na América Espanhola, durante esse mesmo período, 150 mil estudantes se formaram em universidades locais, diz Carvalho. Havia pelo menos 23 universidades na colônia, três delas apenas no México. Só a Universidade do México formou quase 40 mil estudantes.

    Dessa forma, argumenta o historiador, quando os movimentos de independência na América Espanhola começaram a ganhar força, no século 19, eles surgiram coincidentemente nos locais onde havia universidades. E praticamente todos esses locais com universidades acabaram dando origem a um país diferente.

    Ávila Rueda contesta, contudo, essa última hipótese. "Essas universidades eram, em sua maioria, reacionárias...aliadas à Coroa espanhola", diz.

    "A Universidade do México, por exemplo, era muito reacionária, a tal ponto que, em 1830 (após a independência do México), o governo mexicano decidiu fechá-la porque acreditava que não seria possível reformá-la", acrescenta.

    Neste sentido, o historiador mexicano diz acreditar que a livre circulação de impressos (jornais, livros e panfletos) na América espanhola, que não era permitida na América portuguesa (a proibição só foi revertida em 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil), teve papel muito mais importante na construção de identidades regionais do que propriamente as universidades.

    "Já na América portuguesa, tudo o que era consumido vinha de Portugal, o que gerava esse vínculo muito forte com a metrópole", lembra.

    Mas fato inconteste era que, na América espanhola, os nascidos na colônia, os chamados criollos, a elite local (grandes proprietários de terras, arrendatários de minas, comerciantes e pecuaristas) eram desprezados em relação aos nascidos na Espanha, os Peninsulares.

    Até 1700, quando a Espanha era governada pela dinastia dos Habsburgo, as colônias tinham bastante autonomia.

    Mas tudo mudou com as reformas borbônicas feitas pelo rei espanhol Carlos 3º. Naquele momento, a Espanha precisava aumentar a extração de riqueza de suas colônias para financiar a manutenção de seu império e guerras nas quais estava envolvido.

    Com isso, a Coroa decidiu expandir os privilégios dos peninsulares - colonos nascidos na Espanha -, que passaram a ocupar os cargos administrativos anteriormente destinados aos criollos.

    Ao mesmo tempo, as reformas realizadas pela Igreja Católica reduziram os papéis e os privilégios do baixo clero, que também era formado em sua maioria por criollos.

  • Napoleão invade Portugal...e a família real portuguesa foge para o Brasil

    Outro motivo que explica a manutenção da unidade do Brasil, senão o mais importante, foi a fuga da família real portuguesa para sua então maior colônia, de acordo com os historiadores.

    Em 1808, com a invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, o príncipe regente João fugiu para o Rio de Janeiro, transferindo não somente a corte, mas toda a burocracia do governo: arquivos, biblioteca real, tesouro público e cerca de 15 mil pessoas. O Rio de Janeiro virou, então, a sede político-administrativa do império. A presença do rei em território brasileiro serviu como fonte de legitimidade para que a colônia se mantivesse unida.

    "O rei era um herdeiro legítimo do poder. Temos dificuldade de entender a importância disso hoje, mas naquela época a figura de Dom João 6º como monarca tinha muita força", diz à BBC News Brasil o historiador americano Richard Graham, professor emérito da Universidade do Texas e considerado um dos maiores especialistas em história da América Latina nos Estados Unidos.

    Carvalho explica que a "transferência trouxe para o Brasil toda a burocracia portuguesa. Portugal passou a ser uma dependência. Desenvolveu-se, portanto, um foco de legitimidade política no país".

    "Se Dom João não tivesse vindo para o Brasil, o país teria se dividido em cinco ou seis países. Os lugares de maior desenvolvimento econômico, como Pernambuco e Rio de Janeiro, teriam conseguido sua independência", assinala.

  • Enquanto isso, o rei espanhol é forçado a abdicar do trono...

    Na Espanha, contudo, essa fonte de legitimidade foi questionada após a invasão de Napoleão. Ele forçou o rei espanhol, Carlos 4º e seu filho, Fernando 7º, a abdicar do trono a favor de seu irmão, José Bonaparte (mais tarde José 1º da Espanha).

    Na colônia, a notícia caiu como uma bomba. Aqueles que viviam na América Espanhola já não sabiam mais a quem obedecer. Surgiram juntas administrativas, muitas das quais no começo governavam em nome de Fernando 7º, recusando-se a receber ordens de juntas semelhantes formadas na Espanha (após a invasão de Napoleão, o governo espanhol foi dividido em inúmeras juntas administrativas).

    Quando Napoleão foi derrotado, esses líderes locais já tinham experiência de autogoverno. Reconduzido ao trono em 1814, Fernando 7º não garantiu a autonomia deles e tentou usar a força para restabelecer a submissão das colônias.

    Esse fato aliado à política discriminatória por parte da Coroa Espanhola em relação aos nascidos nas Américas fez com que eles se rebelassem, inspirados pelos ideais iluministas espalhados pelas revoluções americana e francesa.

  • Com o apoio de outras castas, eles travaram lutas sangrentas contra a Espanha por independência, entre 1809 a 1826.

    Por outro lado, quando Napoleão foi derrotado, Dom João 6º elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal. Também permaneceu no Rio de Janeiro até que as cortes exigissem seu retorno a Lisboa, em 1820, e aceitasse uma constituição liberal.

    Dom João 6º deixou seu filho, Pedro, como príncipe regente no Brasil, e em 1822, Pedro tornou o Brasil independente, coroando a si mesmo como Dom Pedro 1º. O Brasil ganhou então a independência como uma monarquia constitucional.

  • Temor social

    Preocupações econômicas e sociais também contribuíram fortemente para assegurar a unidade do Brasil.

    Segundo Graham, fazendeiros e homens ricos das cidades acabaram aceitando uma autoridade central por dois motivos: a ameaça de desordem social e o apelo de uma monarquia legítima.

    Um possível desmembramento do Brasil em diferentes países poderia colocar em xeque o firme controle social desejado pelos proprietários de terras e escravocratas. Inicialmente, eles achavam que conseguiriam manter o respeito e a obediência, mas revoltas populares provaram o contrário, na prática. No Haiti, por exemplo, a independência significou o fim da escravidão.

    Embora o Brasil tenha conseguido sua independência de Portugal sem recorrer à luta militar generalizada, os líderes regionais procuravam maior liberdade em relação à capital, o Rio de Janeiro, diz Graham.

    Mas, com o tempo, eles perceberam que essa vontade de reivindicar um autogoverno regional ou a independência completa do governo centralizado poderia enfraquecer sua autoridade, não somente sobre os escravos, mas também sobre as classes inferiores em geral. Ou seja, temiam a desordem social.

    "É importante lembrar que o Brasil era um país de escravos. Eles compunham grande parte da população. Era muito perigoso que as classes dominantes começassem a brigar entre si e colocassem em risco sua legitimidade", destaca Graham.

    "Essa classe dominante temia que esses escravos pudessem aproveitar-se de suas divisões internas para se rebelar", acrescenta.

    Na América Espanhola, por outro lado, diz o historiador americano, "as elites (...) aprenderam que poderiam lidar muito bem com uma população irrequieta. Todos os países hispano-americanos tomaram medidas que objetivavam terminar com a escravidão, possivelmente para diminuir o perigo da revolta escrava. Mestiços (e alguns mulatos, como na Venezuela), tinham o comando de forças militares e eram frequentemente recompensados com posse de terras tomadas dos monarquistas", diz.

    Estatísticas sobre o comércio de escravos embasam tal hipótese.



  • Entre 1500 e 1866, a América Espanhola recebeu 1,3 milhão de escravos trazidos da África. No mesmo período, desembarcaram no Brasil 4,9 milhões, segundo dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esforço internacional de catalogação de dados sobre o tráfico de escravos - que inclui, entre outros, a Universidade de Harvard.

    O levantamento foi possível porque os escravos eram uma mercadoria, registrada na entrada e saída dos portos, sobre a qual incidia cobrança de impostos. Nenhum outro lugar do mundo recebeu tantos escravos.

  • Fragmentação em vários países

    Mas por que as fronteiras dos países recém-independentes na América Espanhola não se mantiveram as mesmas das dos quatro vice-reinados? Ou seja, por que houve tanta fragmentação?

    Explica Ávila Rueda: "Na época colonial, o conceito de fronteira era distinto do dos Estados modernos. O que havia era um sistema de jurisdição, não de fronteiras. E as diferentes jurisdições às vezes se sobrepunham umas às outras".

    Ele cita o caso do vice-reinado de Nova Espanha (território que compreende parte dos Estados Unidos, México e América Central).

    "Em termos de governo, o vice-rei tinha controle sobre praticamente todo o território, salvo as regiões mais ao norte, que eram independentes neste sentido. Mas, a nível fiscal, o governo do México tinha controle sobre essas regiões. Já em relação a questões jurídicas, a gestão era totalmente diferente".

    "Assim, houve conflitos bélicos muito fortes para delimitar essas fronteiras no século 19, inclusive após a independência", acrescenta.

    Ávila Rueda lembra que, com a abdicação de Fernando 7º, ocorre um processo em que os territórios provinciais passam a lutar por "mais autonomia".

    "Julgamos o passado a partir do nosso ponto de vista atual. Achamos que o vice-reinado de Nova Espanha se manteve como um país unido, que é o México atual. Mas nos esquecemos que depois da independência, surgiu o império mexicano, que incluía a atual América Central. Posteriormente, com a dissolução do império mexicano, se estabeleceram a federação mexicana e a federação centro-americana, que mais tarde se desintegraria em outros países", diz.

  • "Houve um processo de fragmentação na América Espanhola. Eventualmente, algumas dessas províncias formam confederações para ter força militar e se defender de outros inimigos. Ou são unidas à força, como fez Simón Bolívar", acrescenta.

    Graham concorda. "Se você vai se tornar independente da Espanha, por que continuaria a se submeter aos mandos e desmandos de Buenos Aires, por exemplo? A divisão por vice-reinos era burocrática. E as fronteiras atuais dos países da América Latina demoraram para ser consolidadas. Não era possível prevê-las antes de 1810, pois resultaram de disputas internas após a independência", explica.

    Mas é importante lembrar que também houve na América Espanhola planos de unificação, que não avançaram.

  • Em 1822, Simón Bolívar e José de San Martín, duas das figuras mais importantes da descolonização da América Espanhola, reuniram-se na cidade de Guayaquil, no Equador, para discutir o futuro da América Espanhola.

    Enquanto Bolívar era partidário da unidade das ex-colônias (ele forçou a unificação da Colômbia e da Venezuela) e a formação de uma federação de repúblicas, San Martín defendia a restauração da monarquia, sob a forma de governos liderados por príncipes europeus. A ideia de Bolívar voltou a ser discutida no Congresso do Panamá, em 1826, mas acabou rejeitada.

    E se Fernando 7º tivesse feito o mesmo que D. João 6º e transferido a corte às Américas, o mapa da América Latina seria diferente do que é hoje?

    Em um artigo, o historiador americano William Spence Robertson, já falecido, cita a frase de um observador espanhol em 1821: "O México não aceitaria as leis que fossem sancionadas em Lima; nem Lima aceitaria as leis que fossem sancionadas no México".

  • "A principal pergunta, portanto, é onde ele escolheria se estabelecer. Não acredito que o México permaneceria leal a um rei estabelecido em Lima e não em Madri", diz Graham.

  • "Mas certamente (se Fernando 7º tivesse se transferido às Américas) haveria menos divisões do que, na verdade, ocorreu", acrescenta.

    Isso porque os reis oferecem legitimidade.

    Tanto é que, na Argentina, quando um congresso em 1816 declarou a independência das "Províncias Unidas", Juan Martin de Pueryrredón, nomeado diretor dessa entidade, tentou, nos três anos seguintes, em vão buscar alguém na Europa com vínculo real para se tornar rei das Províncias Unidades do Rio da Prata.

  • "A própria mulher de Dom João, Dona Carlota Joaquina, tinha vontade de se tornar rainha do Prata", lembra Murilo de Carvalho.

    Já no México, quando as cortes espanholas se recusaram a reconhecer a independência mexicana e a permitir que um membro da realeza aceitasse o trono do império mexicano, Agustín Iturbide, um dos mentores da independência, forjou uma eleição ao fim da qual foi coroado imperador, como Agustín 1º.

    No Peru, também foi aventada a possibilidade de um príncipe espanhol liderar uma monarquia independente.

  • Rebeliões no Brasil

    Mas o processo de unificação territorial no Brasil tampouco foi totalmente pacífico. Houve movimentos de caráter emancipacionista em Minas Gerais (1789), na Bahia (1798), em Pernambuco (1817).

    No entanto, essas revoltas foram mais fomentadas por um sentimento de autonomia do que propriamente por um desejo de ruptura entre a colônia e a metrópole.

  • Um exemplo emblemático disso foi a chamada Inconfidência Mineira, liderada por Tiradentes em Minas Gerais (1789). Não havia nessa conspiração antimetropolitana nenhum desejo de libertação de todo o território.

    Quando Dom Pedro 1º declarou a Independência do Brasil, em 1822, por exemplo, a maior parte das províncias do norte foram contra e permaneceram leais a Portugal, até defrontarem-se com uma força vinda do Rio de Janeiro.

    Ainda assim, como lembra Graham, "mesmos os grupos do sul que declaram sua aliança a D. Pedro 1º, em meados de 1822, não significavam o triunfo do nacionalismo. Ao contrário, eles simplesmente preferiam o domínio dele, com a promessa de autonomia local, ao domínio das cortes portuguesas, que ameaçava essa autonomia".

    Ávila Rueda acrescenta ainda que, "como na América portuguesa não houve uma guerra de independência e sim uma continuidade com a transferência da corte, o governo do Rio de Janeiro tinha mais força para suprimir essas rebeliões".

    "Em contrapartida, o governo do México não tinha força suficiente para evitar o desmembramento da América Central. Tampouco o governo de Buenos Aires em relação a Uruguai ou Paraguai", acrescenta.

    'Acordo de interesses'

    Segundo a historiadora brasileira Lilia Schwarcz, "a independência do Brasil foi uma solução de compromisso entre as elites, no sentido de primeiro evitar uma mudança estrutural na então colônia que se tornaria um país e evitar grandes conturbações sociais", diz.

    "Houve um ajuste entre as várias elites locais no sentido de preservar a escravidão, evitar o formato de uma revolução, inclusive sabendo do que havia ocorrido na América Espanhola e conseguir manter o país unificado", acrescenta.

    Graham concorda. "O governo central não foi imposto às pessoas influentes ou até mesmo "vendido" a eles. Eles (a elite brasileira) o escolheram", assinala.

    "Eles procuravam legitimidade porque, sem ela, sua autoridade local permanecia relativamente fraca. Eles desejavam fortalecer a hierarquia porque ela validaria a sua própria posição local predominante. Para alcançar esses objetivos, eles construíram um estado central, simbolizado no imperador. A monarquia tinha sua utilidade".

  • "A presença do imperador foi fundamental. As elites pretendiam que o imperador fosse uma espécie de símbolo a unificar as diferentes províncias e que, de alguma maneira, ele fizesse uma passagem não tão convulsionada como no restante da América Espanhola. Sabemos que a história não foi bem assim, mas foi o que aconteceu no momento da independência", diz Schwarcz.

    Por fim, a opção por um governo central, além de afastar o espectro de uma anarquia social, também favorecia estender o poder dessas elites, uma vez que cabia a elas as indicações aos cargos públicos, como oficiais da Guarda Nacional, delegados de polícia e juízes.

    "Eles vieram a considerar o governo central como apropriado e útil para fins pessoais", diz Graham.

    Já no fim do século, com a unidade do Brasil já assegurada e a escravidão abolida, as elites já não precisavam mais "de um símbolo vivo do estado" para estabelecer sua legitimidade.

    O império acabou destronado pelo Exército, que proclamou a república quase sem disparar um único tiro.

    *Com ilustrações de Cecilia Tombesi e Kako Abraham

  • Fonte: 

    • Luis Barrucho - @luisbarrucho*
    • Da BBC News Brasil em Londres

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

BRASIL

Um raio X da posse de terra por estrangeiros no Brasil 

São 3,9 milhões de hectares – duas vezes a área de Israel – abertamente controlados por capital externo. Deputados tentam facilitar ainda mais aquisições, aumentar demanda externa, o que elevará preço da terra e dos alimentos.


Por Daniel Giovanaz
Publicado 20/01/2021 às 14:03





Cerca de 3,94 milhões de hectares de terras no Brasil são controlados formalmente por pessoas físicas nascidas no exterior, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras equiparadas, com sócios estrangeiros.

O número foi obtido pelo Brasil de Fato junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em dezembro de 2020, por meio da Lei de Acesso à Informação.

Do total registrado oficialmente pelo órgão, 2,2 milhões de hectares estão nas mãos de pessoas físicas e 1,72 milhões são controlados por pessoas jurídicas.

Subnotificação

Os dados que constam nesta matéria não contemplam as terras adquiridas por meio de fraudes ou artimanhas jurídicas como as que permitiram, por exemplo, a compra de 750 mil hectares por um fundo de pensão privado de professores dos Estados Unidos (TIAA-CREF, na sigla em inglês) e pelo fundo de investimentos da Universidade de Harvard.

Para burlar a legislação, desde 2008 os dois fundos usaram o nome de empresas brasileiras, como a Radar Propriedades Agrícolas, para efetivar a compra de terrenos. Práticas como essa, à margem da lei, dificultam o controle dos dados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Se fossem contabilizadas, só as terras do fundo de Harvard e do TIAA-CREF já significariam um aumento de quase 20% na área total controlada oficialmente por estrangeiros no Brasil.

Legislação vigente

A aquisição de terras por estrangeiros é regulada pela Lei nº 5.709, de 1971, que pode ser modificada em breve. Em dezembro de 2020, o Senado aprovou o PL 2.963/2019, que flexibiliza as regras e diminui as restrições. Entre outras medidas, a proposta que segue para votação na Câmara dos Deputados autoriza que estrangeiros comprem até 25% da área dos municípios brasileiros.

O autor do PL é o senador Irajá Abreu (PSD-TO), que integra a bancada ruralista e é filho da senadora e ex-ministra Katia Abreu (PDT-TO).

A legislação atual só permite a aquisição de terras por estrangeiros residentes no Brasil, empresas já autorizadas a funcionar no país ou pessoas jurídicas brasileiras cuja maior parte do capital social pertença a estrangeiros. O texto aprovado no Senado propõe incluir pessoas físicas e empresas estabelecidas fora do território nacional, mesmo sem sede no Brasil.

Um dos principais argumentos contra o PL diz respeito à dinâmica de preços. Mais investimentos estrangeiros significa aumento da demanda por áreas no Brasil, o que puxaria os preços das terras – e dos alimentos – para cima. Ou seja, essa elevação do custo de produção seria repassada, em grande medida, aos consumidores.

Setores críticos à proposta, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), avaliam que a flexibilização traz riscos não só para a soberania nacional, mas para a segurança alimentar dos brasileiros. Hoje, o país tem 100 milhões de hectares de terras agriculturáveis e 4,5 milhões de sem-terra.

Localização e destinação

Portugueses e japoneses lideram a lista de estrangeiros detentores de terras no Brasil. Confira no mapa abaixo a distribuição regional dessas áreas:


Distribuição geográfica das terras / Arte: Michele Gonçalves/Brasil de Fato


O Sudeste encabeça a lista puxado por Minas Gerais, que concentra quase 25% da área controlada formalmente por pessoas físicas nascidas no exterior, empresas estrangeiras ou empresas brasileiras equiparadas.

Mato Grosso, São Paulo, Bahia, Paraná, Pará e Goiás aparecem na sequência do ranking. As demais unidades da federação possuem menos de 100 mil hectares sob controle estrangeiro. Alagoas, com 724 hectares, é a última da lista.

Considerando apenas os imóveis controlados por pessoa jurídica estrangeira ou empresa nacional equiparada, a destinação mais comum das terras, segundo o Incra, é reflorestamento (771 imóveis). Pecuária e agricultura, permanente ou temporária, somam 401 propriedades. Na sequência, aparece a mineração, com 49 áreas.

Veja a lista completa:



Reflorestamento é a destinação mais comum informada ao Incra / Arte: Michele Gonçalves/Brasil de Fato


Quinta colocada no ranking, a mineração, sob controle de capital estrangeiro, foi responsável por três dos maiores crimes socioambientais da última década: os vazamentos da Samarco, em 2015, em Mariana (MG), da Hydro Alunorte, em 2018, em Barcarena (PA), e da Vale, em Brumadinho (MG), em 2019. Esta última, por exemplo, explorava naquele ano cerca de 4 milhões de hectares no Brasil, mas nenhuma das três consta na lista de aquisições e arrendamentos porque os contratos têm outra natureza – concessões, licenças e requerimentos para atividades de pesquisa, lavra e exploração.

Os 49 imóveis destinados à exploração mineral oficialmente informados ao Incra estão em nome de onze pessoas jurídicas diferentes, nos estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Paraná e Santa Catarina. São elas:

– Anglo American Níquel Brasil, que controla cinco áreas, totalizando 8.281,26 mil hectares entre Barro Alto (GO), Niquelândia (GO) e Catalão (GO);

– Novelis do Brasil, empresa do grupo indiano Aditya Birla, que controla uma área de 2,3 mil hectares entre Mariana (MG), Alvinópolis (MG) e Santa Bárbara (MG);

– Cia De Ferro Ligas Da Bahia-Ferbasa, que controla quatro áreas, totalizando 951,3 hectares em Campo Formoso (BA) e Antônio Gonçalves (BA);

– Incepa Revestimentos Cerâmicos, que controla oito áreas, totalizando 827 hectares entre Balsa Nova (PR), São José dos Pinhais (PR), Castro (PR), Campo Alegre (SC), São Bento do Sul (SC), Corupá (SC) e Jaraguá do Sul (SC);

– Ecb Ardósias Ltda em Gouvêa (MG) controla duas áreas, totalizando 471,9 hectares em Felixlândia (MG);

– Ferrous Resources do Brasil AS, que controla 15 áreas, totalizando 319,3 hectares entre Congonhas (MG), Jeceaba (MG) e Brumadinho (MG);

– Anglo American Nióbio Brasil Ltda, que controla cinco áreas, totalizando 248,36 mil hectares em Ouvidor (GO);

– Niobras Mineração, empresa do grupo chinês CMOC International, que controla uma área de 209,34 hectares em Catalão (GO);

– Copebras, vinculada ao mesmo grupo chinês, que controla quatro áreas, totalizando 186,4 hectares em Ouvidor (GO);

– Von Roll do Brasil, que controla uma área de 93 hectares em Nova Palmeira (PB);

– Saint-Gobain do Brasil, que controla uma área de 8 hectares em Nazareno (MG).

Serviços ambientais e mercado de carbono

A presença do reflorestamento no topo da lista pode estar relacionada à expansão do mercado de carbono – o que também explica o interesse crescente pela gestão de unidades de conservação.

O Código Florestal já autoriza a possibilidade de comercializar créditos de carbono e biodiversidade, permitindo às empresas “compensar” emissões de poluentes em outras regiões do planeta. Para além dessa brecha, Bolsonaro acaba de sancionar uma lei que pode garantir “acesso indireto” à terra pelo capital estrangeiro.

“Com esse PL [no dia da entrevista, a lei não havia sido sancionada], não será preciso adquirir nem arrendar: com um contrato de pagamento de serviços ambientais [aos brasileiros que hoje detém a terra], uma empresa transnacional teria acesso indireto à terra por um período de 30, até 50 anos, burlando de novo a lei de aquisição de terras por estrangeiros”, alertou a advogada socioambiental Larissa Packer em entrevista recente ao Brasil de Fato.

Maiores áreas

O maior imóvel registrado em nome de pessoa jurídica com participação estrangeira fica no município de São Desidério (BA). A área, descrita como “Fazenda Tabuleiro IV e outras”, está em nome da Agrícola Xingu S/A e tem 54,4 mil hectares.

Destinada à produção de grãos, segundo o Incra, a área é 100% controlada por capital estrangeiro.

A Agrícola Xingu pertence ao conglomerado japonês Mitsui, que produz alimentos, bebidas, biocombustíveis e eletrônicos, mas também atua na área de serviços financeiros e imobiliários.

Em 2018, a empresa foi multada em R$ 189 mil pelo Ministério Público do Estado da Bahia pelo armazenamento de agrotóxicos sem registro na Fazenda Tabuleiro V, também em São Desidério.

Na ocasião, foram interditados mil litros de benzoato de emamectina, produto de uso controlado, que não podia ser aplicado naquela propriedade.

Algumas das marcas mais conhecidas do grupo Mitsui no Brasil são Sharp e Café Brasileiro. O conglomerado também possui ações da mineradora Vale, com a qual planeja formar uma empresa para “fornecer soluções metálicas e siderúrgicas de baixo carbono.”

Entre as pessoas físicas, o maior imóvel unitário está em nome de Joseph Haraoui, investidor de origem libanesa conhecido como Zuza: 78,1 mil hectares em Itaituba (PA), em uma área conhecida como Fazenda Mato Velho, destinada à pecuária. Assim como no caso da Agrícola Xingu, o terreno é 100% controlado por capital estrangeiro.


Joseph Haraoui é acusado de fraude pelo Incra / Arte: Michele Gonçalves/Brasil de Fato


Conforme relatório produzido pelo Incra, que aponta fraudes cometidas por Haraoui, “esse Senhor, segundo narrativas de várias pessoas, se diz dono de boa parte da região do Mato Velho.”

Joseph Haraoui está ligado à maior detenção ilegal de terra encontrada pelo Incra nos 149 mil hectares do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, localizado entre as zonas rurais de Altamira e Novo Progresso.

De acordo com reportagem da Agência Pública, os problemas identificados naquela área vão da prática de garimpo ilegal e indícios de extração ilegal de madeira até desaparecimentos e pelo menos cinco assassinatos relacionados a conflitos agrários desde 2011.

O empresário e seus parentes teriam vendido autorizações para pesquisas minerárias na região para a multinacional de exploração de ouro Chapleau Exploração Mineral. Esta seria responsável por um projeto de mineração em terra pública, com impactos não só para os assentados do PDS Terra Nossa, mas para os indígenas Kayapó que vivem na Terra Indígena (TI) Baú, ao lado.

Ainda segundo a Pública, a área de Zuza é “virtualmente” fracionada em 35 protocolos de regularização fundiária. “Fica evidente a fraude tanto no fracionamento da área, quanto na formalização de processos no Incra para legitimar ‘posses’ inexistentes”, afirma o órgão sobre as terras de Haraoui, que também praticava garimpo ilegal em Área de Preservação Permanente (APP), o que é proibido por lei.

O Brasil de Fato não conseguiu contato com Joseph Haraoui para comentar o caso.

Perspectivas

Antes mesmo da apreciação da Câmara, Jair Bolsonaro (sem partido) já se posicionou contra o PL do senador Irajá Abreu. Por outro lado, o presidente sancionou, sem fazer alarde nas redes sociais, a lei que prevê pagamento por serviços ambientais.

A autorização para que reservas legais, áreas de proteção permanente (APP) e unidades de conservação que já existem gerarem crédito de carbono deve ser um dos temas em debate na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), que será realizada no Reino Unido em novembro.

O Brasil, contrariando a posição histórica do Itamaraty, defende mecanismos de financeirização das florestas como alternativa à destruição do meio ambiente e à escassez de recursos naturais.


Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/um-raio-x-da-posse-de-terra-por-estrangeiros-no-brasil/?fbclid=IwAR3YvXFVqiuRGRUcdQPUjDlwurXN3HYvxvJ299sDKwOozOgoMO7YD_2KAZk