quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre o Enem: 11 argumentos para (ainda) não adotá-lo *



À luz de discussões sobre as eleições, por exemplo, alguns temas não têm recebido a atenção devida por parte da comunidade acadêmica da Unioeste como um todo: a hipótese de o Enem substituir o vestibular é um deles. Os corredores já consideram a hipótese como fato consumado. Contra a promessa de aportes financeiros para a Universidade caso a adoção seja aceita, algumas inquietações precisam ser expressas.

A primeira (e mais contundente): o Enem continua sendo caso de Ministério Público. Depois que se tornou forma de acesso à universidade e não verificação da qualidade do ensino médio, a cada nova edição, o exame é caso de denúncia de vazamento de questões. Veja-se o caso recente do Ceará. Não importa se foram “apenas” 13 questões e em “um” colégio (será que realmente foi “só” isso?). A questão é que o Enem continua pouco confiável e caso para que o Ministério Público seja acionado todo ano. A própria Unioeste já teve que mudar data de etapa de vestibular por causa dos “descuidos” do MEC/Inep.

A segunda: quem presta o Enem não sabe que conteúdos programáticos farão parte das provas. Frise-se que cabe ao elaborador de questões julgar o que é adequado que o aluno saiba ao final do ensino médio. Como ele pode ser de qualquer lugar do País e não é onisciente para saber se o que vai propor é estudado pelos alunos do País inteiro, é óbvio que pode haver surpresas às quais nenhum aluno pode se antecipar. Considere-se, ainda, a massificação que a atividade produz, evitando que idiossincrasias regionais possam ser trabalhadas. Ou, se são, o resultado é a transformação do particular em universal: pior para aquele que não partilha deste universal: melhor para quem faz parte deste particular.

A terceira: não é de conhecimento público nem quem elabora a prova de redação, nem quem corrige os textos produzidos e, muito menos, quais são os critérios de avaliação usados. No caso da Unioeste, são professores da área de Letras que elaboram a prova e que corrigem os textos e os critérios usados são públicos e conhecidos. Inclusive, são feitos encontros com os docentes do ensino médio para que eles conheçam os tipos de textos que serão cobrados e compreendam os critérios usados. Se as outras IES paranaenses não agem assim, que façam a autocrítica. Considere-se que a banca existe há, pelo menos, 15 anos, durante os quais foram feitos estudos teóricos e exercícios de correção, além de correções efetivas em, no mínimo, 15 vestibulares. A adoção do Enem significa a morte dessa história e de aportes financeiros, mas, sobretudo, do esforço institucional e, principalmente, pessoal para “profissionalizar” uma atividade que, se não for executada com qualidade, compromete a seleção de quem adentra à vida acadêmica. O Enem tem muito a caminhar para atingir este patamar.

A quarta: a argumentação tecida acima se aplica aos elaboradores de prova. Desde que a Unioeste começou a fazer seu próprio vestibular, ela tratou, também, de prepará-los para fazer o trabalho com qualidade. E são quinze anos de atividade continuada. No caso do Enem, que preparo foi dado aos elaboradores de questão, que, aliás, ninguém sabe quem são? Não é possível imaginar que um grupo de elaboradores formado por quem quer que seja tenha maior aproximação com a educação regional do que aquele formado por professores pertencentes ao contexto imediato da universidade. De novo: são anos de trabalho, investimentos financeiros, institucionais e pessoais que são apagados em nome de um exame pouco consolidado e obtuso pedagogicamente. Que esteja apto a medir o conhecimento ao final do nível médio, talvez se deva concordar. Que seja melhor do que o vestibular da própria universidade (e da Unioeste, em especial) para definir quem entrará na vida acadêmica é polêmico: ele tem, no mínimo, uma bela estrada a sua frente.

A quinta: quem está bem informado poderá dizer: mas a Unioeste (e outras IES) não foi chamada para compor o quadro de elaboradores e revisores de questões do Enem? Não é um paradoxo entrar num projeto deste tipo e ser contrária a este exame? Primeiro: o paradoxo está, sim, em afirmar que ela não tem um processo seletivo ajustado, quando é chamada pelo Inep para participar do Enem. Se o seu processo seletivo fosse defeituoso, é de se crer que ela não teria sido selecionada. E quem já recebeu treinamento foi unânime em afirmar que não presenciou nada de novo em relação à metodologia usada pela Unioeste. Segundo: apesar de os contatos terem começado em maio, até hoje, nenhuma IES estadual assinou o termo de convênio com o Inep, por falta de ajuste legal para a parceria acontecer. De fato e de direito, não há parceria formalizada. O paradoxo está, pois, em abrir um edital de chamamento de IES para auxiliar no Enem (o que demonstra que elas são competentes quando se comprometem) e não poder firmar convênio com nenhuma.

A sexta: a forma de chegar ao escore total do aluno, apesar de defensável do ponto de vista matemático ou estatístico, não permite que o próprio candidato possa chegar ao cômputo de pontos atingido. Se ele acertar uma questão que todos acertam, pontua menos; se acertar uma questão que todos erram, pontua mais, desde que acerte as questões menos difíceis, pois, se isto acontecer, considera-se que “chutou” a resposta. Mas ele não tem acesso a este tipo de informação: ele recebe uma pontuação fechada e, para ele, incompreensível. A TRI (Teoria de Resposta ao Item), portanto, mais do que auxiliar a tornar o exame mais transparente, é um elemento complicador que não permite que o candidato saiba se a pontuação recebida está correta. Na Unioeste, com cada questão tendo um valor absoluto e não relativo ou calculado por um “desvio padrão” (critério que já foi usado e abolido pela pouca transparência da sua aplicação), cada candidato sabe a pontuação que fez e pode, com dados concretos, reclamar, se julgar que a universidade se equivocou no cálculo de seu escore.

A sétima: na Unioeste, no dia em que se aplicam as provas, publicam-se os gabaritos provisórios para que o candidato saiba que respostas eram esperadas. O Enem também o faz, mas, no caso da Universidade, a publicação se dá para que o candidato tenha direito a recurso, se julgar que alguma questão ou resposta foram indevidamente produzidas: o princípio não se aplica ao exame do Inep. O princípio em uso, portanto, é o de que o elaborador de questões é infalível e o aluno sempre está equivocado. Sabe-se que o elaborador não é capaz de prever todas as possibilidades de leitura da questão que está propondo e que o aluno, às vezes, tem razão na reclamação: mas esta é silenciada, no caso do Enem. O dogma da justiça do direito de contraditório, simplesmente, não é respeitado pelo Enem.

A oitava: o Enem permite que o aluno se inscreva para cursos distintos de diferentes universidades, permitindo que, em face das suas condições materiais, tenha mobilidade. Ora, entre alguém com pouca condição financeira e alguém com muita, não é difícil perceber que terá uma mobilidade maior aquele com mais estrutura. Trocando por miúdos: o exame parece (sem pretender que esteja em jogo uma teoria da conspiração) ter como resultado o benefício daqueles que podem se deslocar do Sul para o Norte ou vice-versa, em detrimento daqueles que ficam obrigados a fazer a “opção” apenas pela instituição que está perto de si. No limite, parece possível afirmar que se está permitindo que as universidades públicas sejam postas a serviço dos que têm maior poder de mobilidade (financeira) do que outros.

A nona: a Unioeste acumulou, ao longo de quinze anos ou mais, um know-how sobre a realização do vestibular que, há muito tempo, permite que se faça, se precisar, uma devassa na condução dos trabalhos e do processamento dos resultados, tendo atingido um patamar de lisura, transparência e seriedade inegáveis, além de uma infraestrutura material que exigiu investimentos financeiros de monta considerável ao longo do tempo. Inclua-se, sobretudo, o saber técnico e humano adquirido, que permitiu, inclusive, que, há dois anos, a Universidade passasse a fazer concursos externos, tendo realizado, em dois anos, 14 concursos, todos com resultados homologados pelas instituições contratantes. É mais uma parte da história que se apagaria com a adoção do Enem, desconsiderando-se o potencial construído laboriosamente.

A décima: mais do que uma proposta de caráter pedagógico e de melhoria do ensino superior, o Enem (até pela sua natureza – ele não foi feito para isso) parece se destinar muito à legitimação de um exame de avaliação do ensino do médio. Parece óbvio que estas duas ordens de problemas não podem ser misturadas. Uma coisa é avaliar o que se sabe ao final do ensino médio; outra é selecionar as pessoas que entrarão na universidade, com tudo que isso implica. Enfatize-se: o Enem não é o melhor processo de seleção para o ensino superior. Se o MEC tem como objetivo melhorar a qualidade do ensino médio, ele deveria fazê-lo por meio das medidas necessárias para saneá-lo: e não à custa de um pacto da universidade com uma política de governo e não de estado. Considere-se, ainda, o custo astronômico da aplicação do exame, com investimentos pesadíssimos de recursos públicos: da ordem de milhões. Contam, neste caso, inclusive, os valores nada desprezíveis de destinação de aportes financeiros para as IES que adotarem o Enem (e só para elas). Apenas isto deveria bastar para que a Unioeste fosse contra a proposta. Por que não se destina estes recursos às IES, mesmo que elas não adotem o Enem? Esta, acredito, é uma boa questão.

A décima primeira: apesar da reticência com relação à reserva de vagas como política compensatória, hoje, entendo e defendo que ela se mantenha. Foi por meio dela que filhos de pobres passaram a fazer Medicina, por exemplo, na Unioeste. Se o Inep tiver ao seu encargo distinguir quem são os 40% de cotistas que entrariam na Unioeste, tem-se um problema, dado que outras IES não têm a mesma política: e a falta de lógica poderia emperrar o processo. O Inep ainda não lida bem com dados absolutos: que dirá com quantidades relativas. Se ficar ao encargo da própria universidade fazer esta seleção, então, que fique ao seu encargo efetuar a seleção toda: em todos os seus momentos e etapas.

Este texto é de responsabilidade individual, embora, na sua argumentação, constem não só posicionamentos e pontos de vista pessoais. Se a Unioeste entender que deve adotar o Enem em lugar do vestibular que o faça, mas que esta decisão seja tomada após debates amplos de todos os segmentos acadêmicos. Se a alteração de resolução de um tema qualquer é assunto partilhado com todos os colegiados, este tema não deveria ser tão somente para a decisão de um conselho que, parece, não ter, no momento (haja vista o silêncio que imperou na última reunião do COU), os elementos necessários para representar a vontade da Unioeste. A sugestão é de que o encaminhamento se dê no sentido de um debate com a magnitude e a amplitude que o tema exige e que, inclusive, tome-se a decisão após uma consulta acadêmica (votação). O bom senso manda que, entre o certo e o duvidoso, fique-se com o certo.

Penso poder sugerir algumas alternativas para que o Enem seja contemplado, caso seja benéfico para a instituição a sua adoção. O Enem poderia ser usado como bonificação, com a adição de pontos ao escore do candidato. Poderia, ainda, ser usado, como acontece hoje, para o preenchimento das vagas ociosas que remanescem após o encerramento das chamadas de matrícula. Poderia, por fim, substituir a primeira etapa do vestibular, ficando a Unioeste com a segunda etapa, porque ela corresponde às provas de conhecimentos específicos e de redação. Esta última forma seria, no limite, a que menos prejuízo traria (porém, mais do que as outras duas) para a história institucional, financeira e pessoal que cerca o vestibular da Unioeste. Como substituição global do vestibular da Unioeste, acho que a adoção do Enem é uma iniciativa apressada e pouco refletida pela comunidade acadêmica (como um todo).

* João Carlos Cattelan
Professor de Letras – Graduação/Rondon – Mestrado/Cascavel
Diretor de Vestibular de 2006 a 2011
Coordenador Geral de Concursos e Processos Seletivos



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