domingo, 12 de outubro de 2014

"SE OS HOMENS PARISSEM..."


Extraído de http://caroldaemon.blogspot.com.br/2014/09/legalizaraborto.html

#LegalizarAborto

Os textos abaixo foram integralmente retirados dos sites linkados, sem edição. Minha posição pessoal sobre o aborto é um assunto de foro íntimo, que só diz respeito a mim e ao pai da criança, fosse o caso. Mas o foco aqui não é esse, o aborto não é uma questão de opinião, aborto não é um tabu e sim um problema de saúde pública. Políticas de saúde pública não podem ser fundamentadas no "achismo" tendencioso enquanto cidadães morrem em clínicas clandestinas. Em tempo, a lei escrita pelos homens, nunca impediu as mulheres de abortar na clandestinidade. O que tem que acabar é essa cultura pavorosa, insalubre e fatal do "cabide", "garrafada" e "quartinho de fundo de quintal". O aborto é legalizado em 75% dos países do mundo, exatamente os desenvolvidos, e o Brasil é um Estado laico a despeito do lobby das bancadas religiosas e do poder das mesmas em decisões que pautam a vida pública. E nunca é demais lembrar que foi justamente esse lobby que atrasou enormemente a política nacional de prevenção da AIDS, o reconhecimento da União Civil Estável para pessoas do mesmo sexo e até a Lei do Divórcio.
Aqui do lado, no Uruguai, desde que o aborto foi legalizado, nunca mais houve um óbito feminino por aborto mal sucedido. Acreditar que a legalização aumentaria as taxas de abortos realizados é mais um mito derrubado abaixo em artigos sérios e chancelados por médicos e instituições como a Anistia Internacional. Na verdade, com a legalização do aborto, o normal é que as políticas de saúde sexual ampliem a discussão (que deixa de ser um tabu) e aumentem a distribuição de preservativos e pílulas, além de facilitar as laqueaduras de trompas, cuja fila de espera atualmente é de 5 longos anos, e, com isso, o número de abortos diminua a longo prazo.
Quem não concorda com a prática, seja por qual motivo for - religioso, dogmático, social, moral, espiritual, familiar, etc - é realmente muito simples: não o faça. Mas a sua opinião pessoal e de cunho íntimo não pode ser a letra da lei, o outro tem o direito de discordar e, se for o caso, ser assistido pelo Sistema Único de Saúde para abortar. A não legalização do aborto criminaliza a vítima e só interessa à indústria de clínicas clandestinas, autoridades subornadas para fazer vista grossa às tais clínicas e instituições religiosas e partidárias, mas não interessa a nenhuma contribuinte grávida em específico. No fundo, ninguém é a favor do aborto, mas quem é a favor da legalização, deve ter seus direitos civis reconhecidos por uma questão de justiça social, sem hipocrisia.
Países onde o aborto é legalizado em verde e onde é proibido, em vermelho:




A foto (abaixo) é de um embrião. Não é um bebê, não é um feto, não é um ser desenvolvido. E não é produto, nem nunca iria resultar em uma gestação, porque é o embrião de uma galinha com 72 horas de existência. Galinhas, como sabemos, não ficam gravidas.
É muito comum termos dúvidas quanto a definição de termos como: aborto, embrião, feto, gestação, etc. Na internet é comum encontrarmos definições confusas ou às vezes até propositadamente incorretas, especialmente em sites de grupos anti-aborto.
O objetivo desse texto é ser simples e informativo, por isso, peço desculpas por ter assumido o risco de ser cisnormativa com o objetivo de ser didática. Portanto, quando falo sobre mulher e feminino ou homem e masculino nesse texto, estou usando como referência pessoas cisgêneras e cissexuais. Se qualquer pessoa trans* tiver uma crítica ou questionamento, ficarei feliz em responder nos comentários.



Fecundação e gravidez
Tudo começa na formação dos gametas, que são os óvulos e espermatozoides. A mulher já nasce com os oócitos, que todo mês a partir da puberdade irão se maturar e dividir dando origem aos óvulos.
O óvulo é lançado na trompa e percorre o caminho até chegar ao útero, que está com a parede interna espessada. Não ocorrendo fecundação e implantação, essa parede vai descamar e ocorre a menstruação normal. Se acontecer de ter espermatozoides nadando por ali no período fértil, eles vão chegar até a trompa e alguns deles encontram o óvulo, em geral só um consegue penetrar na camada externa do óvulo e ocorre a fecundação.

Fecundação é uma série de reações entre duas células até que o material genético de ambos se juntem formando o zigoto.
As células então vão se dividindo e formando um aglomerado, que vai descendo pela trompa até chegar no útero, o que leva 4 dias. A implantação, do que agora é chamado blastocisto, naquela parede uterina espessada vai ocorrer por volta do 6º dia e vai se completando até o 10º dia. É a partir daí que as reações metabólicas farão o corpo produzir o HCG, que é detectado nos testes de gravidez.
Só dá para falar em gravidez ou gestação depois que ocorreu a implantação do blastocisto. Como eu disse no início, galinhas (ou peixes, ou ornitorrincos) não gestam porque o desenvolvimento do blastocisto da galinha vai acontecer dentro do ovo que é externo ao corpo dela. A gestante é parte integrante da gestação, não há potencial de desenvolvimento para fases mais maduras, pelo menos até onde a tecnologia avançou, sem que isso ocorra, e portanto só se fala em gestação depois que ocorre essa interação entre o concepto e a gestante.

Embrião e aborto
Usamos o nome de Embrião para a fase do concepto em que ele começa a se dividir e diferenciar em partes que darão origem aos diferentes órgãos e sistemas, essa fase compreende a 3ª semana até a 8ª semana.
Do terceiro mês até o final da gestação, chamamos de período fetal.
Falei tudo isso pra dizer que, em termos científicos, zigoto é uma coisa, embrião é outra, feto é outra. E nenhuma delas é sinônimo de bebê, da mesma forma que gestação e maternidade também não são sinônimos — tem mulheres que engravidam e não são mães, tem mães que nunca engravidaram…

Aborto é a interrupção da gestação até 20 semanas, ou com feto menor que 500g de peso ou com menos de 25cm de comprimento. 
A definição é determinada pela impossibilidade do concepto sobreviver fora do útero, e se o feto tiver mais de 20 semanas, mais de 500g e mais de 25cm existe teoricamente autonomia biológica suficiente para que ele seja capaz de sobreviver fora do corpo da gestante, e então fala-se em parto prematuro.
Por isso nas legislações frequentemente refere-se a interrupção da gestação — não é um eufemismo, é só um jeito de englobar casos mais precoces e mais tardios. Por exemplo, a lei brasileira permite interrupção da gestação no caso de fetos anencéfalos, e o diagnóstico só pode ser feito através de ultrassonografia após as 12 semanas, então é frequente que a interrupção seja mais tardia.

O aborto como evento natural é extremamente comum: nas gestações até 20 semanas, ocorre em 8 a 20% dos casos clinicamente detectados — ou seja, nos casos em que a mulher fez um teste de sangue ou urina e descobriu estar grávida, o que como vimos só ocorre a partir de cerca de 10 dias após a fecundação, mas geralmente acaba sendo um pouco depois, quando a menstruação atrasa. Isso faz com que um número ainda maior de abortos ocorra antes de a gestação ser sequer detectada, correspondendo de 22 a 26% das gestações. Se levarmos em conta as perdas antes da implantação, cerca de 50% dos óvulos fecundados nunca vai resultar num ser humano vivo.

Ou seja, para quem encara o aborto como equivalente a morte de um ser humano e defende os direitos civis de um suposto “nascituro” a natureza é uma baita genocida; pior ainda quando pensamos nos argumentos contra o uso de células-tronco embrionárias ou fertilização in vitro por conta da ideia de que a vida começa na fecundação.

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Autonomia e escolha da mulher
Não vemos nenhum dos grupos autointitulados “pró-vida” protestando por enterros e atestados de óbito pelos quase 50% de abortos espontâneos ou perdas pré-implantações, mas vemos alguns praticando atentados contra clínicas e profissionais onde o aborto é legalmente praticado, o que me faz pensar que o nome mais apropriado seria “anti-escolha” ao invés de pró-vida. Parece que o aborto só vira uma grande questão que recebe a atenção geral quando é causado pela autonomia e escolha de uma mulher.

A coisa fica ainda mais anacrônica quando consideramos que pelo menos 68 mil mulheres morrem por ano em decorrência do aborto ilegal. O aborto praticado adequadamente no primeiro trimestre, por exemplo, é efetivo em cerca de 98% das gestações, com menos de 3% de complicações, que chegam a ser graves em apenas 0,65% dos casos — contra 25% de complicações graves nos casos de abortos praticados de forma insegura. A morte por aborto realizado de forma insegura é responsável por uma em cada 8 mortes relacionadas à gestação no mundo.

Apesar de todos esses termos e definições, não é a Biologia que determina as leis e o desenvolvimento de políticas. Cada país tem sua legislação específica, mais ou menos restritiva tanto em relação ao motivo do aborto quanto em relação ao período de gestação em que ele é permitido, e não existe na Biologia uma unanimidade para quando surge a vida e até quando pode-se fazer um aborto, porque não é daí que sai o substrato ético, então utilizam-se diversos critérios.

O que me parece ser unânime é que as escolhas sobre o corpo da mulher, que deveriam caber somente a ela, viram uma questão pública e todos acham que podem e devem lhes impor restrições, mantendo-as como cidadãs de segunda classe, com direitos abaixo até de grupos de células que parecem tanto com um ser humano quanto o embrião de galinha do topo desse texto. E o que parece ser critério para manter as mulheres em condições tão precárias, sem atenção ou garantia de direitos por parte do Estado é que sejam pobres – 98% dos abortos sem condições de segurança ocorrem no terceiro mundo.

Dia 28 de setembro é dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina, onde cerca de 1.1 milhão de mulheres pobres se submetem a um aborto inseguro todo ano. Dizer sim para a legalização não é dizer não para os métodos anticoncepcionais, não vai fazer com que seja uma decisão fácil, não vai estimular as mulheres a fazerem um aborto. É dizer sim ao reconhecimento dos direitos e à vida dessas mulheres, é parar pra pensar se realmente acha que todas essas mulheres (incluindo muito provavelmente alguém que você conhece, ou mesmo da sua família) são assassinas e deveriam estar na cadeia.



Dia 28 de setembro é o Dia de Ação Global para o Acesso ao Aborto Seguro e Legalizado. Também é Dia da Campanha pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Por isso, quero falar de alguns mitos sobre as militância das pessoas que são a favor da legalização e descriminalização do aborto.

1. Pessoas que são a favor da legalização do aborto odeiam crianças e não querem ter filhos.
Ser a favor da legalização e descriminalização do aborto não significa odiar crianças ou não querer filhos. Defender a autonomia do corpo da mulher não tem nenhuma relação com odiar crianças ou não querer filhos. Esse mito é parecido com aquele de que comunistas comem criancinhas: só serve para dar risada. A mulher é quem deve decidir se quer ser mãe ou quando será, com total autonomia. Você pode ser mãe ou pai e, ainda assim, ser a favor da legalização do aborto. No texto ‘Sou mãe e apoio a descriminalização do aborto, Ludmila Pizarro diz:
“Como mãe, referendo a decisão do Conselho Federal de Medicina e convido todas as pessoas, com ou sem filhos, que nunca fariam um aborto ou que não pensaram a respeito, a refletir sobre essa questão, lembrando que a criminalização do aborto, além de diminuir a autonomia da mulher, apenas faz com que mais vidas sejam perdidas, independente de crenças e valores morais.”

2. Se o aborto for legalizado quem fará mais aborto são as pessoas pobres.
Esse é um mito que revela um grande preconceito de classe. Normalmente as pessoas que falam isso sempre argumentam que pessoas pobres gostam de ter filhos, são promíscuas, etc. O relatório Aborto e Saúde Pública (.pdf), coordenado pela antropóloga Debora Diniz, traz alguns dados sobre a questão do aborto e a renda familiar:
“Nos anos 2000, um estudo com ampla base populacional analisou os fatores associados ao aborto como desfecho da primeira gestação entre jovens de 18 a 24 anos. A pesquisa mostrou que renda familiar e escolaridade constituem tais fatores: quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez resultar em um aborto.”

É importante destacar que hoje isso já acontece. As mulheres ricas, em sua grande maioria brancas, vão em uma clínica para fazer aborto, para isso é necessário desembolsar um valor considerável em dinheiro. Enquanto isso, mulheres negras e pobres morrem em clínicas clandestinas, em casa ou maltratadas em hospitais. Enquanto o aborto for criminalizado as mulheres continuarão morrendo por racismo e por questões de classe.

3. Pessoas que são a favor da legalização do aborto são assassinas.
Toda vez que uma discussão sobre aborto se inicia, sempre tem alguém para gritar: ASSASSINA! Parece óbvio, mas é preciso dizer que ser a favor da legalização do aborto não significa ser assassina. Aborto é uma questão de saúde pública e não deve ser pautado por uma discussão moral ou pessoal, muito menos podemos divagar sobre quando começa a vida, até porque essa discussão é infinita e sem conclusão, como explicita o médico Drauzio Varella:“Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública, que exige solução urgente.”

4. Se o aborto for legalizado todo mundo vai fazer aborto.
Tá todo mundo sentado? Mesmo? Vamos lá, vou jogar uma bomba: as pessoas já fazem aborto. Sim! Mesmo que você seja contra, mesmo correndo o risco de ser presa, mesmo o corpo da mulher sendo criminalizado. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (.pdf):
A PNA indica que o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Tipicamente, o aborto é feito nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional.

Pois é. O aborto já acontece. O que estamos lutando é para que todas as mulheres tenham acesso ao aborto legal e seguro. Porque, enquanto mulheres ricas tem dinheiro o suficiente para pagar um aborto seguro ou mesmo viajar para outro país, mulheres pobres, e em sua maioria negras, morrem em clinicas clandestinas que usam métodos inseguros.  Portanto, a questão do aborto é de saúde pública, como alerta o relatório ‘Aborto e Saúde Pública’:

Os resultados confiáveis das principais pesquisas sobre aborto no Brasil comprovam a tese de que a ilegalidade traz conseqüências negativas para a saúde das mulheres, pouco coíbe a prática e perpetua a desigualdade social. O risco imposto pela ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro. O que há de sólido no debate brasileiro sobre aborto sustenta a tese de que “o aborto é uma questão de saúde pública”. Enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração moral de mulheres levianas.

Ao legalizar o aborto retiramos a questão da área criminal para incluí-la na área de saúde. A partir dai, políticas públicas mais efetivas são desenvolvidas. Tanto na área de planejamento familiar e prevenção de gravidez, como no atendimento as pessoas que decidem realizar um aborto. O Uruguai descriminalizou e legalizou o aborto em 2012. Este ano foi divulgado que no período de dezembro de 2012 até maio de 2013, nenhuma mulher faleceu vítima do procedimento. No período, 2.550 abortos foram realizados no país.

Segundo o Ministério da Saúde Pública uruguaio, dez em cada mil mulheres entre 15 e 44 anos já fizeram pelo menos um aborto. O subsecretário da Saúde Pública, Leonel Briozzo, informou, ainda, que o dado coloca o país entre os que registram as menores taxas do procedimento ao lado dos países europeus. Referência: Desde a legalização, Uruguai não registra mortes de mulheres por aborto.

5. As pessoas que são a favor da legalização do aborto não seguem religião ou não acreditam em Deus.
Esse mito é bem fácil de ser quebrado, basta acessar esse site: http://www.catolicasonline.org.br/. Há várias pessoas religiosas, ou que acreditam em Deus, que entendem que o aborto não é uma questão pessoal ou moral. Muitas dessas pessoas não fariam um aborto, porém, entendem que essa decisão pessoal não invalida o fato de que outras pessoas podem decidir abortar. Ou seja, opinião pessoal não pode pautar uma decisão que cabe apenas as pessoas que estão grávidas. Vale lembrar que não apenas mulheres engravidam, mas também homens trans*.
Uma opinião pessoal não pode pautar políticas públicas. A Pesquisa Nacional de Aborto e o relatório ‘Aborto e Saúde Pública’ apontam que a maioria das mulheres que fazem aborto são cristãs:
A religião não é um fator importante para a diferenciação das mulheres no que diz respeito à realização do aborto. Refletindo a composição religiosa do país, a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião.

Os poucos estudos analíticos com amostras selecionadas de mulheres indicam que entre 44,9% e 91,6% do total de mulheres com experiência de aborto induzido declaram-se católicas. Entre 4,5% e 19,2% declaram-se espíritas, e entre 2,6% e 12,2% declaram-se protestantes. É possível sugerir algumas tendências regionais, havendo uma maior concentração de mulheres católicas nos estudos da Região Nordeste e de mulheres espíritas nos da Região Sul. Um estudo com 21 mulheres que induziram o aborto identificou que 9,8% delas não tinham religião.


imagem: Pública - Agência de Notícias.



A confirmação das mortes de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, e Elisângela Barbosa, de 32 anos, após a realização de abortos clandestinos mal sucedidos no Rio de Janeiro, reforça a urgência do debate sobre o tema no país, afirmou a Anistia Internacional hoje (24). A organização defende que o aborto não seja tratado como uma questão criminal e sim de saúde pública e direitos humanos.

“O aborto inseguro é a quinta causa de morte materna no Brasil, de acordo com o DataSUS. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 1 milhão de abortos ocorrem por ano no país, ou seja, mesmo sendo proibido, as mulheres não deixam de recorrer ao procedimento, e se expõem a este tipo de situação que vimos acontecer com Jandira e Elisângela. Este é um tema que não pode mais ficar fora da agenda pública nacional”, aponta Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil.

Ao tratar o aborto como uma questão criminal, o país acaba empurrando para a marginalidade e para a insegurança mulheres que precisam recorrer a esta prática, pelas mais diversas causas. “Tanto Jandira como Elisângela eram jovens e tinham filhos, suas mortes desestabilizam a família como um todo, em aspectos que vão do emocional ao econômico. Assim como elas, muitas mulheres morrem todos os anos em decorrência de abortos mal sucedidos no Brasil. E outras milhares sofrem as consequências físicas e psicológicas de abortos realizados em condições precárias e inseguras. Este tema, de relevância central para a saúde das mulheres, não pode estar ausente das discussões do país”, ressalta Roque.

A Anistia Internacional trabalha a campanha internacional Meu Corpo, Meus Direitos, que apela aos governos de todos os países que assegurem os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos universais. No âmbito da campanha, a Anistia defende que toda mulher tem o direito de decidir se e quando quer ter filhos. Para a organização, quando o Estado interfere ativamente (ou permite a interferência de terceiros) nas escolhas relacionadas a sexualidade e reprodução de indivíduos, inclusive através da legislação, ele está controlando ou criminalizando direitos humanos fundamentais.


Direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos universais, indivisíveis e inegáveis. Os governos têm a obrigação de assegurar que todas e todos possam usufruir dos mesmos sem medo, coerção ou discriminação.

Quando um Estado interfere ativamente (ou permite a interferência de terceiros) nas escolhas relacionadas a sexualidade e reprodução de indivíduos, inclusive através da legislação, ele está controlando ou criminalizando direitos humanos fundamentais.

O que são direitos sexuais e reprodutivos?

Todas as pessoas tem o direito de:
  • Tomar decisões sobre sua própria saúde
  • Perguntar e receber informações sobre serviços de saúde sexual e reprodutiva
  • Ter acesso a serviços e políticas de saúde sexual e reprodutiva
  • Decidir quando e se quer ter filhos
  • Escolher quando e se quer casar
  • Decidir que tipo de família quer ter
  • Viver livre da violência sexual



Uruguai: em um ano, 6.676 abortos seguros foram realizados e nenhuma morte registrada

Do total de abortos realizados no marco da nova lei, em apenas 50 casos (0,007%) houve complicações leves.

Um balanço oficial do governo uruguaio informou que, no período de um ano de vigência da Lei de Interrupção da Gravidez (lei de aborto), foram realizados 6.676 abortos seguros – nenhuma mulher faleceu. 
Desde dezembro de 2012, as mulheres uruguaias podem realizar a interrupção da gravidez indesejada em segurança e na legalidade.

Desta data até novembro de 2013, a média foi de 556 abortos por mês, um número próximo a 18 abortos por dia. Do total de abortos realizados no marco da nova lei, em apenas 50 casos (0,007%) houve complicações leves. O único caso de morte foi o de uma mulher que realizou um aborto clandestino, fora de um centro de saúde, aparentemente usando uma agulha de crochê. Ela já teria chegado em estado grave ao hospital.

Segundo o Subsecretário de Saúde Pública, Leonel Briozzo, a tendência é que o número de abortos diminua ao longo do tempo. “O que nos indica é que a prática do aborto é segura, acessível e infrequente. O Uruguai tem uma taxa de nove interrupções da gravidez a cada mil mulheres entre 15 e 44 anos, o que de alguma maneira nos coloca nas posições mais baixas do mundo, inclusive mais baixa que os países da Europa Ocidental, que reportam 12 interrupções a cada mil mulheres”, destacou.

Do total de abortos, 41% foram realizados pelo setor público e 59% pelo setor privado. A maioria dos abortos aconteceu em Montevidéu, ao redor de 64%, enquanto que no interior do país foram registrados 36%.

Para a ex-senadora e atual presidenta da Frente Ampla, Mónica Xavier, os resultados da nova Lei de Interrupção da Gravidez são satisfatórios e não é chamativo o incremento do número de abortos neste primeiro ano de aplicação da lei.

“Quando promovíamos [a criação de] normas legais que regulassem a interrupção da gravidez com algumas condições, entendíamos que ia haver [no longo prazo] uma diminuição dos abortos que não ia ser registrada no início, mas sim com o tempo”, pelo fato de não havia registros oficiais sobre o número de abortos antes.

As mulheres adolescentes foram as que menos realizaram interrupções da gravidez, ao redor 18%, enquanto as mulheres adultas representaram 82% do total. Para Xavier, é necessário dar tempo para que haja confiança e maior respeito entre as mulheres e o sistema de saúde.

“De um dia para o outro, as pessoas não vão ter confiança para não serem estigmatizadas, questionadas em sua decisão, porque há toda uma aprendizagem mútua, desde o reconhecimento do direito até a melhor atenção, de qualidade, que devem fazer as equipes de saúde”, ressaltou Xavier.

Oposição
No entanto, o deputado Pablo Abdala, um dos opositores à nova lei, dúvida que o aborto clandestino tenha sido extinto. “Acredito que a clandestinidade segue ocorrendo livremente. Além disso, o aborto clandestino agora é feito com mais facilidade que antes;  não é necessário ir a uma clínica para ter acesso aos comprimidos”, afirmou Abdala para o jornal El País.

Os resultados oficiais também demonstram que 6,3% das mulheres desistiram da ideia de abortar e continuaram com sua gravidez, após realizar as consultas com as equipes multidisciplinares. O baixo índice sugere que a maioria das mulheres chega aos centros de saúde já com uma decisão tomada.

Lei de aborto
A solicitação para a interrupção voluntária da gravidez pode ser feita até a 12ª semana de gestação. O período se amplia para 14 semanas em caso de estupro e não há restrições nos caso de má-formação do feto ou risco de vida para a mãe.

Antes, as pacientes devem passar por uma equipe multidisciplinar formada por um ginecologista, um psicólogo e um assistente social. Entre outras ações, eles conversam sobre a possibilidade de concluir a gravidez e dar a criança para adoção. Posteriormente, há cinco dias para a reflexão. Depois, caso a vontade permaneça, é feito o aborto, farmacológico e seguindo os critérios recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde).




Com 1 milhão de procedimentos por ano, prática é um problema de saúde pública ligado à criminalização da interrupção da gravidez

Na mesa de madeira em frente à porta de uma sala de audiências no Fórum Criminal de São Paulo, repousa uma lista com os processos a serem julgados naquela tarde. Em alguns minutos, será a vez de Marta* ser absolvida sumariamente ou ir a júri popular e pegar até 4 anos de prisão, como explica a defensora pública Juliana Belloque, que atua a seu favor. A primeira folha do processo diz que Marta "provocou aborto em si mesma" e isso basta para condená-la, já que a prática é crime previsto pelo artigo 124 do Código Penal. 

Mas, quem seguir lendo os autos, saberá que Marta tinha 37 anos, era mãe solteira de três filhos pequenos (com idades entre 1 e 6 anos), vinha de um histórico de abandono por parte dos pais das crianças (inclusive o da gravidez que interrompeu) e estava desempregada quando, em 2010, em um ato de desespero, comprou um remédio abortivo de uma prostituta por R$ 250, tirados de sua única fonte de sobrevivência - a pensão da filha. Descobrirá também que Marta é pobre, só completou o primeiro grau, e que morava com os filhos em um bairro afastado de São Paulo quando, três dias após introduzir o remédio na vagina (de forma incorreta, já que não tinha a quem pedir orientação), ainda não havia parado de sangrar e de sentir fortes dores, e por isso procurou o pronto-atendimento de um hospital público de seu bairro. O leitor ficará surpreso ou aliviado, dependendo de suas convicções, ao saber que a médica que a recebeu, imediatamente fez a denúncia à Policia Militar, explicando que retirou uma "massa amorfa" de seu útero, "provavelmente" uma placenta resultante de um aborto malsucedido.

"Não existe prova da gravidez, a única coisa é o depoimento desta médica dizendo que retirou uma quantidade grande de massa amorfa que ela avalia como placenta do útero dessa mulher, que chegou com um sangramento no hospital. Enquanto a mulher está hospitalizada essa médica chama a Polícia Militar e, enquanto ela está internada, a PM vai até a casa dela, sem mandato, e apreende um lençol sujo de sangue e um balde. Não tinha feto, medicamento, caixa, nada. Apenas um lençol sujo de sangue e um balde, em uma casa muito pobre. Com isso se instaura o inquérito policial. Quando ela é liberada, é levada até uma delegacia e existe uma confissão extrajudicial ao delegado. Essa mulher nunca é ouvida em juízo para confirmar ou não essa confissão", resume a defensora Juliana enquanto esperamos.

Marta aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão condicional do processo - prevista para penas mínimas de até 1 ano, quando o réu é primário e não responde por outro processo criminal, e que suspende o caso por um período de 2 a 4 anos, desde que o acusado cumpra algumas condições como comparecer periodicamente em juízo para atualizar endereço, justificar ocupação lícita, prestar serviços à comunidade, entre outras - mas ela deixou de cumprir essas condições e o processo seguiu o curso. Quando pergunto à defensora se ela acredita que a mulher possa ir realmente a júri popular, ela diz que nunca viu isso acontecer, mas que não é impossível. E explica que pretende mostrar ao juiz que o processo é marcado por violações, como a falta de provas, já que não há feto, o testemunho extraoficial porque ela não chegou a ser ouvida em juízo, a denúncia feita por uma médica que quebrou o sigilo de sua relação com a paciente, as buscas sem mandato, a falta de uma perícia e de um exame de corpo de delito. "As mulheres costumam assinar a confissão porque chegam muito fragilizadas e querem se livrar daquilo o mais rápido possível. Os casos que chegam para nós são bem parecidos: mulheres pobres, sozinhas, com filhos, sem antecedentes criminais, que praticam o aborto inseguro em um momento de desespero e que são denunciadas pelos profissionais que as atendem nos hospitais públicos. Os companheiros não existem, nem aparecem seus nomes nestes processos", diz a defensora. Como Marta está desaparecida, a audiência aconteceria sem sua presença, mas foi adiada porque a médica, única testemunha de acusação, estava de férias. Marta ali é um número, um crime que será julgado em alguns meses.

Mas também é uma em 1 milhão de mulheres que, apesar da lei, da religião e da sua opinião pessoal, buscam o aborto clandestino no Brasil todos os anos. Com sorte, fugiria da pior estatística: a de que a prática insegura mata uma mulher a cada dois dias no país e é a quinta causa de morte materna.

Por ano, País tem 1 milhão de abortos clandestinos

"A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro, não pode ser algo que aconteça de forma rara, tem de acontecer em quantidades que sirvam de alerta. E precisa causar impacto para a saúde da população. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto no Brasil, mas essa é uma ótica nova", explica o ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA) Jefferson Drezett, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no País. "Só para contextualizar, nós temos hoje, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), 20 milhões de abortos inseguros sendo praticados no mundo. Por aborto inseguro, a Organização entende a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene. O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres - são quase 70 mil todos os anos. Acontece que estas 70 mil não estão democraticamente distribuídas pelo mundo; 95% dos abortos inseguros acontecem em países em desenvolvimento, a maioria com leis restritivas. Nos países onde o aborto não é crime como Holanda, Espanha e Alemanha, nós observamos uma taxa muito baixa de mortalidade e uma queda no número de interrupções, porque passa a existir uma política de planejamento reprodutivo efetiva."

O Uruguai, que descriminalizou o aborto em outubro de 2012, também tem experimentado quedas vertiginosas tanto no número de mortes maternas quanto no número de abortos realizados. Segundo números apresentados pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada nenhuma morte materna por consequência de aborto e o número de interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para 4 mil. Isso porque, junto da descriminalização, o governo implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.

Jefferson coloca ainda que atualmente, no Brasil, acontecem cerca de 1 milhão de abortos provocados e 250 mil internações para tratamento de complicações pós abortamento por ano. "É o segundo procedimento mais comum da ginecologia em internações. Por isso eu digo: o aborto pode ser discutido sob outras óticas? Deve. Não existe consenso sobre este tema e nunca existirá porque há um feto. Mas não há como negar que temos aí um problema grave de saúde pública e que a lei proibitiva não tem impedido que as mulheres abortem, mas tem se mostrado muito eficaz para matar essa mulheres."

Mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro 

"O aborto não é um bem a ser alcançado. Nenhuma mulher acorda um dia e diz 'vou engravidar daquele canalha que vai me abandonar, só para ter o prazer de provocar um aborto'. As mulheres buscam no aborto soluções para situações extremas. Mas é importante dizer que existe uma diferença entre aborto clandestino e inseguro. O aborto clandestino não é necessariamente inseguro. Ele pode ser feito em clínicas clandestinas, porém com todas as condições de higiene, por médicos treinados, quando a mulher tem dinheiro para pagar. A diferença entre as chances de morrer em um aborto inseguro e apenas clandestino é de mil vezes. Então acaba se criando uma desigualdade social, uma perversidade porque uma mulher que tem um nível socioeconômico bom, as mulheres dos melhores bairros da cidade de São Paulo, têm acesso a clínicas clandestinas, que não são legalizadas, mas são seguras. Esse aborto pode custar mais de US$ 2 mil. Enquanto um aborto inseguro pode custar R$ 50", diz o ginecologista.

Apesar das diferenças de tratamento, a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pela Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, mostra que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto. E que o perfil é o da mulher comum em idade reprodutiva. "Não existe surpresa nisso. São mulheres de diversas classes sociais e religiões se arriscando porque a clandestinidade oferece risco. As diferenças mais uma vez estão no fato de que, quanto mais pobre essa mulher, mais riscos ela corre por causa dos métodos aos quais tem acesso", explica a autora da pesquisa, Débora Diniz.

Esta leitura se confirma também no relatório feito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro em parceria com a organização internacional IPAS "Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça", que pesquisou casos de criminalização de mulheres por aborto e entrevistou juízes, desembargadores, promotores e atores do judiciário em geral e concluiu que: "é muito mais comum que uma mulher seja incriminada por aborto quando ela utiliza um método abortivo 'caseiro' (remédios obtidos no mercado paralelo e outros métodos) do que quando ela recorre à clínica. Estes casos são justamente aqueles nos quais o procedimento dá errado (a mulher reage à medicação) e cai no sistema público de saúde; lá, um servidor público (em alguns casos o médico do posto, em outros um policial militar de plantão) a encaminha para a polícia. Este aspecto demonstra claramente o recorte socioeconômico dessa modalidade de criminalização: a maior parte das mulheres que utiliza os serviços públicos de saúde é pobre, muitas das quais desempregadas ou com ocupações de baixa remuneração".

O relatório compara ainda duas sentenças dadas a mulheres diferentes: uma mulher de classe média, professora, mãe de dois filhos que foi presa após realizar aborto em clínica clandestina e teve a fiança arbitrada em R$ 300, e outra mulher sozinha, que trabalhava como prostituta e mal sabia ler e escrever e teve a fiança arbitrada em R$ 3 mil. "Em geral, o perfil da mulher se repetia: pobre, pouco instruída, moradora de periferia. Contudo, este não é necessariamente o perfil das mulheres que fazem aborto, mas sim o perfil das mulheres que são presas por terem feito aborto. Deste aspecto percebe-se uma grande diferença. O sistema captura apenas algumas mulheres, as que necessitam se submeter à saúde pública. Aquelas que encontram outras soluções privadas, não são atingidas. Um claro retrato do recorte socioeconômico."

Jovem é acusada por aborto involuntário

Mariana* tinha 20 anos quando chegou ao pronto-atendimento de um hospital particular de seu convênio médico em São Paulo com um aborto espontâneo, e acabou sendo tratada como criminosa. "Estava com dois meses de gestação, acordei uma noite com muita cólica e sangramento e corri para o hospital. Apesar de não estar mais com o pai do bebê e da minha família ter me dado a opção de fazer o aborto em uma clínica, minha religião me fez desconsiderar essa hipótese", conta. "Assim que cheguei ao hospital, sozinha, e comuniquei à recepcionista o que estava acontecendo, senti a conversa mudar. Ela passou a me tratar com descaso e, mesmo passando por uma hemorragia, tive de esperar muito mais tempo do que os outros para ser atendida." Mariana lembra que, assim que entrou no consultório, o médico perguntou se ela havia provocado o aborto e, diante da negativa, continuou perguntando seguidas vezes. "Antes da curetagem também perguntou muitas vezes se eu não havia mesmo usado nenhuma droga naqueles dias. Ele disse que eu estava com um aborto retido e que estava com uma grave infecção no útero. Fiquei vários dias internada no andar da maternidade e, todas as vezes que saia no corredor, de cadeira de rodas, todas as mães, enfermeiras e atendentes me olhavam com ar de reprovação. Já estava triste por ter perdido o bebê, e ainda tive de passar por isso mesmo sem ter provocado nada."

Apesar de o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) terem se colocado várias vezes contra a denúncia da paciente que provoca o aborto por parte dos médicos e do próprio Ministério da Saúde determinar em norma técnica que "toda mulher em processo de abortamento, inseguro ou espontâneo, terá direito a acolhimento e tratamento com dignidade no Sistema Único de Saúde (SUS)", o que se vê nos hospitais públicos e de convênios é o que relata Mariana, ou pior. 

"Diminuiu o número de mulheres que procuram o SUS por complicações de aborto, e não é porque o número de abortamentos diminuiu. É porque os profissionais recebem essa mulher com julgamento, xingamentos, deixam-na sangrando por horas antes de internar e, muitas vezes, fazem os procedimentos sem anestesia ,que é 'para aprender'", diz a socióloga integrante da Frente contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto Dulce Xavier, que há muitos anos acompanha estes casos. "Nós não temos uma política de planejamento reprodutivo no Brasil, faltam preservativos nos postos de saúde, muitos serviços que estão nas mãos de organizações sociais religiosas se negam a fazer laqueadura e distribuir pílulas do dia seguinte - tanto que a presidente precisou sancionar uma lei para garantir o direito às vítimas de violência, o que já deveria ser feito desde a década de 1980 e, mesmo assim, houve protestos - e quando essa mulher engravida sem querer e provoca um aborto em ato de desespero, é descriminada por atendentes, enfermeiras e médicos", lamenta. Drezett complementa: "Eu trabalhei mais de 22 anos como chefe de plantão do centro obstétrico do hospital Eleonora Mendes de Barros e sempre perguntava aos residentes qual era a conduta que eles deveriam ter se uma mulher chegasse dizendo que havia feito um aborto. Eles não tinham nenhuma informação sobre isso. Os médicos não sabem o que fazer. Muitos acham que têm o dever de comunicar a polícia. Não são todos, mas isso ainda existe. E tem os que fazem procedimentos sem anestesia, que é para a mulher aprender a não abortar mais. Porque senão ela vai ficar grávida toda hora para vir fazer um aborto aqui. Esse raciocínio só não é risível porque é patético. Mas o que tem por trás de tudo isso? A falta de clareza de lidar com o aborto como questão de saúde pública."

Ginecologista atua em parceria com ONG

Cansado de presenciar cenas como estas, o ginecologista e obstetra Oswaldo Queiroz começou, há 18 anos, um trabalho de humanização no atendimento pós-aborto em parceria com a organização Ipas na Maternidade Escola Assis Chateubriand (Meac) em Fortaleza. "Nós observamos que muitas vezes a mulher é inimiga da mulher. A paciente vinha sangrando, mas quando a atendente, a auxiliar descobria que era aborto, ela mesma rejeitava essa coitada que ficava quatro, seis horas esperando por atendimento. Em 18 anos trabalhando com isso, eu nunca conheci uma mulher que quisesse abortar. Elas abortam porque estão desesperadas, porque não sabem usar os métodos, não têm orientação, muitas vezes quando o companheiro sabe que a mulher engravidou, o 'couro come', ela apanha de verdade. Não tem uma que não chore quando tudo termina. Não é uma situação agradável para elas", diz.

Desde então, meninas e mulheres que chegam na Maternidade Escola com abortos malsucedidos são atendidas prontamente. "Ninguém pergunta se o aborto foi provocado ou natural. Nós simplesmente prestamos o atendimento através de uma equipe multidisciplinar que tem médico, enfermeira, psicóloga e assistente social, fazemos a curetagem, conversamos, marcamos uma revisão, exames, se elas quiserem podem voltar para atendimento psicológico, e o mais importante é que essas mulheres e meninas saem daqui com o método contraceptivo ajustado, explicado, prescrito e com ele na mão", explica Oswaldo em uma sala pequena do pronto-atendimento, em uma manhã tipicamente quente e agitada de seu plantão.

Ele lembra que o Ipas começou esta parceria com outros hospitais do SUS, mas os serviços foram acabando por resistência dos próprios profissionais e gestores. A equipe de Oswaldo atende cerca de 100 mulheres por mês, entre abortos provocados, naturais e vítimas de violência sexual. A idade média das pacientes fica entre 16 a 24 anos. "Mulheres sem orientação, pobres, já com outros filhos, sozinhas, com companheiros que somem quando elas dizem que estão grávidas.

Quantas pacientes chegam com infecções, precisam ser internadas, chegam com útero perfurado, ficam estéreis, tudo isso cai na cabeça do contribuinte. Isso poderia ser evitado se o Brasil tivesse uma política de planejamento reprodutivo que funcionasse. No meu entender, em qualquer posto de saúde deveria ter anticoncepcional, DIU e camisinha disponíveis. Mas não tem. Eu mesmo só faço esse trabalho porque vou pessoalmente pedir doações nos laboratórios. Mas você vê, eu preciso me aposentar e não faço porque sei que o serviço vai acabar, ninguém quer se envolver com isso", lamenta.

Oswaldo me sugere ir até o andar superior da maternidade, onde algumas meninas se recuperam de curetagens feitas pela manhã e conversar diretamente com elas. Seguindo por um largo corredor verde, entro em uma enfermaria com seis camas, três de cada lado da parede, todas ocupadas, cinco delas por meninas com seus bebês. Na última está Beatriz*, 15 anos, uma das pacientes da equipe de Oswaldo. Me aproximo com cuidado, falando baixo, intimidada pelos olhares reprovadores das meninas mães (que aparentam ter no máximo 16 anos cada) sobre ela. Beatriz também responde em um fio de voz, com um leve sorriso para mostrar que está bem. Ela e o namorado, de 16 anos, moram juntos na casa de sua mãe. Ele trabalha, ela tenta levar a escola adiante, o que é bem difícil, já que tem que cuidar do filho de 1 ano. Conta que engravidou sem querer, mesmo usando a pílula. Quando pergunto se provocou o aborto, responde que sim com um aceno de cabeça, mas quando indago sobre o método utilizado, responde que caiu no banheiro e bateu as costas. Foi para o hospital sangrando. Passou pela curetagem e deveria voltar logo para casa, com orientação e método anticoncepcional.

A ginecologista Zenilda Vieira Bruno, que coordena um serviço de atendimento voltado especificamente a adolescentes da maternidade, explica que 25% dos abortos provocados que chegam ao hospital são de adolescentes entre 15 e 19 anos. "As meninas geralmente vão sozinhas ou com as amigas. Nós oferecemos acompanhamento por um ano, cuidando da parte de saúde, planejamento reprodutivo e psicológico. Elas dizem que engravidaram de relações esporádicas, que não sabiam que teriam relação, então não estavam tomando pílula ou não levaram camisinha. Os garotos nunca se encarregam dessa parte, isso é responsabilidade delas", disse.

Zenilda conta que em uma pesquisa que realizaram com as adolescentes constatou que, em cinco anos, as meninas que provocaram o aborto e tornaram a engravidar (65%) tiveram o segundo filho. A pesquisa mostra também que as meninas que abortaram eram mais velhas do que as que levavam a gravidez a termo. "Elas diziam que o filho atrapalharia os estudos, o trabalho. As mais novas, de 14, 15 anos com menos escolaridade e perspectiva achavam natural ter o bebê naquela idade e condições como sua mãe fez. Diziam que já cuidavam dos irmãos pequenos, então poderiam criar os seus bebês. A maioria das adolescentes usa os anticoncepcionais de maneira errada. Já ouvi meninas que tomavam uma cartela intercalando com a irmã, com o namorado ou só na hora de ter relações. Falta instrução, dar o método e explicar como usar. É muito fácil criminalizar, mas não dar a contrapartida", diz.

A Agência Pública tentou entrevistar representantes do Ministério da Saúde e da Secretaria de Políticas para Mulheres a respeito dos temas abordados nesta reportagem, mas foi informada pelas assessorias de imprensa de que não havia agenda disponível.

Nem quando amparado por lei
Segundo o artigo 128 do Código Penal, de 1940, o aborto é permitido em caso de violência sexual, assim como em caso de risco de vida para a mãe e, em decisão posterior do Supremo Tribunal Federal (STF), também nos casos de anencefalia fetal. Mas só em 1989 foi implantado o primeiro serviço para atender esses casos em São Paulo, que nos decorrentes de estupro inclui, além do apoio psicológico e da interrupção da gravidez, exames anti HIV e a contracepção de emergência. Segundo dados do Ministério da Saúde, o País possui 65 hospitais qualificados na rede pública para realizar a intervenção prevista em lei e realizou 1.626 interrupções gerais de gravidez em 2012.

Ainda assim, a resistência por parte de profissionais e da própria sociedade fez necessária a criação de uma lei, com tudo que já era determinado por norma, sancionada pela presidente Dilma em agosto, sob fortes protestos dos religiosos do Senado. Além disso, dos serviços que se dizem em funcionamento, nem todos realmente atendem todos os procedimentos, como explica Drezett: "Foi feita uma pesquisa em 2006, com as secretarias municipais de saúde de cerca de 800 municípios sobre os serviços de atendimento à mulher vítima de violência. Quando se pergunta quantos tinham o atendimento, quase 90% dizem que sim. Então a pesquisa pergunta quantos destes serviços oferecem a concepção de emergência, mais da metade disse que não. Aí vem a parte interessante: quando se pergunta sobre o abortamento legal, 30% de cara já diz que não faz; 6% se recusam a falar sobre o assunto. Dos que fazem, apenas 1,9% tinham feito um aborto nos últimos dois anos. Quer dizer: é bonito dizer que tem, mas prometer que eu vou cuidar de você e te abandonar no momento em que você mais precisa de mim e está totalmente vulnerável é muito cruel", lamenta.


Dulce Xavier lembra ainda que "quando o serviço foi instalado em São Paulo em 1989 no Jabaquara, a equipe tinha a casa apedrejada, recebia telefonemas ameaçadores, médicos eram perseguidos por serem 'aborteiros'. Houve no Ministério da Saúde um movimento para esclarecer, mas quem atende tem receio de entrar nisso", ela diz.

Diante desta situação, alguns hospitais referência como o Pérola Byington, em São Paulo, têm sua demanda aumentada por casos que chegam de todo o Brasil, como explica a psicóloga Daniela Pedroso: "Nós atendemos uma média de duas mulheres por semana, vítimas de violência sexual. Chegam mulheres e meninas de outras cidades e até outros Estados". Ela conta que desde a criação do serviço já foram feitos cerca de 1,3 mil procedimentos e que a idade média das vítimas é de 20 a 24 anos. "Mas também chegam adolescentes e até crianças. A menina mais nova que atendemos tinha 10 anos de idade."

Os casos de anencefalia, após uma dura batalha no judiciário que resultou na descriminalização por decisão do STF, hoje já são encarados com menor resistência por parte dos profissionais da saúde, mas ainda há casos de anomalias fetais graves que precisam de decisão judicial, que às vezes não saem, como explica a advogada Juliana Belloque. "O caso que foi levado para o Supremo era de um anencéfalo, então foi concedido para anencefalia. Mas é evidente que se há inviabilidade de vida extrauterina não é crime. O exemplo era de um anencéfalo, mas os médicos entendem isso restritivamente, existe um temor da classe médica de sofrer processos por essa conduta, então eles têm uma tendência a se resguardar. Quando é anencéfalo o médico faz. Qualquer outro tipo de inviabilidade a mulher precisa de um alvará judicial, e a defensoria atende toda semana essas mulheres buscando alvarás. Aqui na capital, a maioria dos juízes concede, mas ainda existem os mais conservadores ou religiosos que vão contra."

Estatuto do Nascituro expressa retrocesso
 
No dia 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff sancionou, sem vetos, a lei que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual, embora essa permissão já constasse do Código Penal desde 1940. Houve protestos por parte dos deputados da bancada religiosa, que se apressaram em apresentar vários projetos para derrubar a nova lei, focando principalmente na distribuição da pílula do dia seguinte, que, contra todas as evidências médicas e científicas, é por eles considerado "uma espécie de aborto".

O relatório preliminar da reforma do Código Penal, que segue lentamente, retira o aumento de permissivos para o aborto e mantém apenas o que já era garantido por lei - apesar do Conselho Federal de Medicina ter se pronunciado a favor da autonomia de decisão pela mulher até a 12ª semana de gravidez. Após a derrota na Câmara, em 2008, do PL 1.135/91, que tentou descriminalizar o aborto, a maioria dos projetos que tramitam hoje no Senado e na Câmara visa a aumentar as penas para o aborto clandestino e restringir ainda mais o abortamento legal - como o PLS 287/2012, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), que pede que o aborto em caso de anencefalia volte a ser crime.

No mesmo sentido, o projeto que ganhou mais destaque é o Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei 478/2007), que tem sido rechaçado por médicos e militantes dos direitos humanos - e provocado protestos em todo o País - por tentar estabelecer que o nascituro "é ser humano concebido, mas ainda não nascido", prevendo o pagamento de um salário mínimo aos filhos de estupro e o direito de ter o nome do "pai" na certidão de nascimento.

Durante a campanha para a Presidência em 2010, diante de uma ameaça de boicote por parte das igrejas evangélicas e católicas, Dilma teria se comprometido a não apresentar nenhum projeto para a descriminalização do aborto. Com as bancadas religiosas e autodenominadas "pró-vida", a repressão tende a aumentar, explica Dulce Xavier: "Nós retrocedemos muito nesta questão nos últimos anos. Se em 2008 nós discutíamos a descriminalização destas mulheres, em 2013 estamos tomando as ruas para pedir que não se aprove uma lei absurda como é o Estatuto do Nascituro, e tudo por pura pressão religiosa sobre um Estado laico".

Drezett vai além: "o Estatuto do Nascituro trata a mulher como um detalhe. Deveria substituir a palavra 'mulher' por 'receptáculo de esperma humano'. Se for aprovado, o Brasil será o país mais atrasado, conservador e limitado no mundo em direitos reprodutivos. A pergunta não deveria ser 'quem é contra o aborto', mas se a mulher que provoca o aborto nestas condições de total abandono social deveria ser presa. Ninguém é a favor do aborto. Eu não sou e tenho certeza que nenhuma destas mulheres é. Acontece que faltam contrapartidas e as minhas convicções morais e religiosas sobre a concepção da vida são diferentes das suas e sobre isso nunca haverá consenso. Enquanto isso, a lei pode te fazer dormir tranquilo com sua moral, mas nem a minha, nem a sua opinião e nem mesmo a própria lei têm impedido um milhão de mulheres de colocar suas vidas em risco todos os anos".


 
 
 
Fonte: http://caroldaemon.blogspot.com.br/2014/09/legalizaraborto.html acesso em 10/2014

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