sexta-feira, 22 de julho de 2016

FILOSOFIA / MARCIA TIBURI / VIOLÊNCIA SIMBÓLICA



“A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA É A MORTE DA LINGUAGEM, DO PENSAMENTO E DO OUTRO” – ENTREVISTA COM A FILÓSOFA MARCIA TIBURI


Alexandre Haubrich
Em meio à crise da política institucional, o Brasil também enfrenta um momento em que há grande dificuldade em estabelecer diálogo entre os diferentes. Uma das pensadoras que mais tem se detido nesse debate é a filósofa Marcia Tiburi. Colunista da revista Cult e autora de diversas obras, a mais recentes delas “Como conversar com um fascista”, a entrevistada desta edição do Jornalismo B é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na entrevista a seguir, ela discute o momento social e cultural brasileiro e as possibilidades de avançar em direção a uma sociedade mais democrática e tolerante.  



Jornalismo B – Fala-se muito em aumento da intolerância e do ódio neste momento no Brasil. Tu também vês a situação dessa forma ou pode tratar-se de uma maior exposição desses pensamentos que já existiam?
Marcia Tiburi – Depende do que tu consideras pela expressão “que já existiam”. O ódio não é um afeto básico no sentido de ser natural como muitas pessoas acreditam. Como se estivesse guardado como uma coisa ou substância em uma instância abscôndita da subjetividade individual. Nem o amor é natural. Esses afetos são produzidos em relações sociais e familiares transmitidas em contextos. Ódio é um afeto primeiro produzido, primeiro criado e, depois, manipulado. Ele sempre se apresenta como expressão e não tem lugar fora da expressão. Não quero dizer que a linguagem do tipo “discurso de ódio” é expresssão de ódio. Quero dizer que o ódio só existe como linguagem. É linguagem concreta, não metafísica. É um afeto como qualquer outro, criado em ambientes em que se dão experiências com a linguagem. A linguagem funciona por imitação e contágio, logo, atualmente se trata de contaminação das falas por contágio. É verdade também que o ódio se cria e sobrevive na tradição e é transmitido pela linguagem que vem com a tradição, que é tradição. Nesse sentido, o ódio fica na história sim, no sistema dos preconceitos. O ódio aos negros foi criado pelo capitalismo que os escravizou. Então, esse ódio está lá. Mas ele precisa ser recriado pela linguagem, reproposto por ela. O ódio fica na hisória como um subtexto, e vem à tona como texto. Há fatores que compõem o subtexto do ódio, os interesses, os ressentimentos. Mas o ódio mesmo é manipulado aqui e agora, ainda que tenha lastro na história. E nos parece algo profundo porque a superfície é o que há de mais profundo. Na superfície podemos ler tudo o que o capitalismo quer de nós, inclusive o ódio. Mas nem todos somos alfabetizados nessa leitura do livro do mundo.
 As redes sociais digitais potencializam de alguma forma essa intolerância?
Como ambientes de linguagem em que clichês preconceituosos são difundidos, sim. Mas também há a frieza da tecnologia e a proteção da tela, a proteção virtual que facilita a covardia de quem se livra da resposta.
De que forma essa intolerância reflete e alimenta uma tentativa de esvaziamento da política? Quem patrocina esse tipo de processo e com que interesses?
Todo discurso de ódio cria um “outro” a ser negado. Ou usado. Por exemplo, a misoginia que é o histórico e, infelizmente ainda atual, discurso de ódio contra as mulheres, ora serve para usá-las, fazendo com que se submetam a armadilhas biopolíticas (sensualidade, maternidade, beleza) que facilitam sua dominação, ora serve para fundamentar o motivo porque são violentadas, estupradas e mortas. O ódio aos estrangeiros, às bruxas, o ódio aos comunistas, o ódio aos petistas, o ódio aos homosexuais, às travestis, às pessoas trans, todos obedecem ao mesmo princípio, que é a negação do outro. Elites dominantes, donos do poder, políticos coronelistas, individualistas iludidos com a meritocracia, donos de capital internacional, todos inventam e recriam a intolerância com objetivos específicos, todos sempre ligados a poder e capital.
Que efeitos sociais tem a prática de justificar discurso de ódio com a ideia de “é a minha opinião”, sem que isso exija fundamentação?
Essa prática é autoritária. Ela cria e recria o círculo vicioso do autoritarismo. Mina a democrática ideia de liberdade de expressão, porque uma expressão que fere a dignidade humana, fere a ideia de liberdade democrática a ela ligada. Fere a democracia. Cai em autocontradição. O direito do outro de expressar-se acaba quando eu firo o seu direito de expressar-se com a minha expressão preconceituosa, autoritária e violenta. O discurso de ódio, violento, acaba com a expressão. Infelizmente, a população cai nessa achando que está a exercer um direito. É o contraditório, aniquilador, direito de não ter direito.
O que caracteriza um discurso fascista? Esse tipo de discurso têm
avançado no Brasil?
Isso é um assunto bem complexo. No meu livro eu quis falar do fascismo que se serve e produz um círculo vicioso em que o consumismo da linguagem é efeito e causa do empobrecimento da linguagem. Chamei de consumismo um processo no qual a linguagem verbal serve como capital. Ela é usada e repetida sem que se analise seu conteúdo. Algo do tipo “falar sem ter nada a dizer”. Vazio do pensamento, mais vazio da emoção, mais vazio da ação, tudo isso se configura como vazio da linguagem.
A banalização da violência nos meios de comunicação contribui para o avanço do ódio nas relações sociais?
Certamente. O ódio é um capital verbal incrível. Veja o papel do “like” no facebook. Quando inventarem o “deslike” vai ser um sucesso imenso
Pensando para além da questão da violência, que efeito uma mídia monopolizada, sem espaço para posições divergentes e pluralidade, têm sobre as dinâmicas sociais e para as relações discursivas entre as pessoas?
Não existe nada para além da violência. A violência simbólica é a morte da linguagem, do pensamento e do outro. A mídia monopolizada não é um poder simples, ela é a própria violência institucionalizada a administrar as notícias, os discursos, a linguagem.
As práticas sociais autoritárias, a intolerância na base social, pode conduzir a perigos autoritários também no âmbito governamental e institucional?
Estamos vivendo um golpe que explica isso.
Em que medida a violência discursiva e simbólica fomenta a violência física?
Há uma correspondência entre a lógica do pensamento e da ação, entre a narrativa ficional e os fatos que já era explicada pela mímesis aristotélica e que se percebe na ficção com que se assemelham os fatos da vida, do cotidiano e da política. No caso das mulheres, o discurso misógino – na literatura, na filosofia, no cinema, na telogia, nas artes – acompanha a violência física desde sempre.
Que influência personagens como o deputado Jair Bolsonaro têm na construção de uma forma social de agir que desrespeita as diferenças?
Ele é um efeito disso e um sacerdote que repete essa mesma crença na qual se criou como figura pública. Um irresponsável social, dirão uns, um psicopata, dirão outros, mas o mais perigoso é que tantos o achem engraçado e não o levem a sério.
A sociedade brasileira tem avançado ou retrocedido no combate ao machismo, à homofobia, ao racismo e ao preconceito de classe?
Desde o golpe o retrocesso é evidente. Mas o povo não é igual ao golpe que acaba de sofrer. Apenas uma minoria branca, de classe média e sem noção de política, mas com uma sede mal resolvida de poder, defende esses preconceitos sem nem imaginar o que seja sociedade.
Que importância o diálogo bem estabelecido tem para a construção da solidariedade e para o crescimento do conhecimento coletivo?
A palavra coletivo é complicada. Um coletivo que domine básicas categorias políticas pode ser bom, se respeita a singularidade e a diferença. Mas o coletivo pode também ser a maioria que sobrevive da tendenciosidade. É preciso cuidar disso. Não é qualquer coletivo que é democrático. O diálogo é o que nos torna seres políticos e capazes de convivência, sem ele não existe nada e é porque esteja em baixa como ação que estamos nesse estado social e político.
Como a sociedade pode aprender o respeito ao outro, o diálogo, a troca?
Educação, muita educação. Muita filosofia. Muita cultura. Muita politização para a autonomia e o respeito ao outro. Sem isso, esqueçam o que viemos fazer aqui.

Fonte: http://jornalismob.com/2016/07/21/a-violencia-simbolica-e-a-morte-da-linguagem-do-pensamento-e-do-outro-entrevista-com-a-filosofa-marcia-tiburi/

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