Isso significava, exemplifica o professor, que estabeleciam redes de contato e conservavam práticas parecidas de religiosidade, linguagem, fazeres artísticos e modelos políticos.
Segundo Castro, "graças à nossa ignorância quanto à cartografia oriental, e apesar dela, podemos indagar se o avanço do conhecimento a cerca da Terra no ocidente se baseou nos conhecimentos do oriente que tanto utilizou dessa cartografia em seus deslocamentos até a Europa". Ou ainda, "se a cartografia da Terra esférica, ocidental, rapidamente foi absorvida e praticada no oriente".
"Muita gente acredita que, durante a Idade Média, a Igreja propagou a ideia de que a Terra fosse plana ou algo parecido. Porém, isso é um mito", defende ele. "Podemos comprovar isso usando as artes. Se você analisar diversos quadros representando figuras religiosas ou até membros da Igreja, há imagens deles com um globo nas mãos, simbolizando o mundo."
Roteirista do podcast História em Meia Hora, o professor de história Victor Alexandre cita o livro da historiadora da ciência Christine Garwood, Flat Earth: The History of an Infamous Idea, para contextualizar que, durante os séculos 18 e 19, surgiram filósofos e pensadores que estavam interessados em "manchar" a imagem da Idade Média, buscando valorizar tanto a Antiguidade Clássica quanto a Época Moderna.
Evidentemente que terraplanistas, se existem até hoje, também existiam tanto na Antiguidade quanto no período medieval. O historiador Soares cita o pensador, enciclopedista — e, mais tarde, considerado santo pela Igreja Católica — Isidoro de Sevilha (560-636). "Mas esses pensadores eram uma minoria em relação ao consenso que existia", frisa Soares. "O problema é pegar esses casos isolados e transportar para todo um período. Ainda na era moderna, qualquer teoria terraplanista caiu por terra quando os primeiros navegadores conseguiram fazer a navegação ao redor da Terra."
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Mapa-múndi segundo Eratóstenes de Cirene - Getty Images |
Mapas planos
Obviamente que, se até hoje o conhecimento científico não é plenamente acessível, nas sociedades mais antigas tais saberes acabavam sendo privilégio de uma minoria, uma elite intelectual. "Sabemos que as sociedades da antiguidade em geral eram profundamente estratificadas e que o acesso aos conhecimentos e a formação acadêmica eram direitos restritos à uma parcela menor", lembra o geógrafo Esteves.
"Nos espaços onde circulavam os conhecimentos produzidos pelos pensadores gregos, a ideia da esfericidade da Terra se tornou dominante. Além disso, os fundamentos científicos apresentados por esses pensadores se tornaram referência importante para os cientistas nos períodos seguintes", enfatiza ele.
O geógrafo Castro ressalta que o mundo da antiguidade ainda era "muito ligado ao cotidiano laboral no campo, no qual as necessidades impostas ligavam-se aos ciclos da natureza, aos locais passíveis de se praticarem, rudimentarmente, a agricultura e pecuárias, o extrativismo e as guerras por esses recursos".
"Nesse contexto, quase universal das sociedades de qualquer dimensão da época, o palmilhar o território lhe fazia crer na planura da Terra e, esta, aliás, restringia-se ao vivido", define ele. "Neste mundo antigo, a cartografia, ferramenta indispensável à prática das localizações, cumpria exatamente esse papel: planificar nos mapas as direções, os lugares essenciais aos objetivos das funções vitais ao viver."
O planeta é esférico, claro. Mas, afinal, o mapa sempre foi plano.
"Um pouco dessa cartografia pode chegar até nossos dias através de registros mesopotâmicos dos povos sumérios, assírios, babilônicos, mas não podemos deixar de destacar os orientais, que possivelmente antes mesmo do ocidente, e influenciando este, utilizavam uma precisa cartografia já com a intenção de demarcar fronteiras, locais de conservação da água e fins militares", diz Castro. "Infelizmente quase toda essa cartografia se perdeu primeiro por ser de uso corriqueiro e por ter sido elaborada sobre bases frágeis, como a argila."
Para o geógrafo, tudo leva a crer que, a julgar pelo experimento de Eratóstenes e todo o contexto da época, "o mundo antigo sabia dessa esfericidade", mas esse conhecimento era restrito a pequenos grupos. "E que esse conhecimento pouco afetava o cotidiano das sociedade, uma vez que tais conhecimentos pouco contribuíam com o fazer a vida. A esta bastava a cartografia de uma Terra plana", acrescenta.
O professor de história Victor Alexandre ressalta que o debate atual buscado por terraplanistas "é marcado por uma grande negação do consenso científico", em narrativas alimentadas muitas vezes "pela forma que as redes sociais trabalham".
"Por meio da internet, pessoas que acreditam que a Terra é plana conseguem se conectar e estabelecer relações afetivas que sobrepõem qualquer verdade científica. Com isso, acredito que para convencer alguém de que a Terra de fato é esférica será necessário um esforço consciente em estabelecer uma relação próxima com essas pessoas, por mais que fazer piadas possa ser o mais divertido no momento", defende ele.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-64289025?at_link_id=E9424DC6-AD4B-11ED-BA9D-60BD923C408C&at_campaign_type=owned&at_link_type=web_link&at_link_origin=BBC_News_Brasil&at_campaign=Social_Flow&at_format=link&at_bbc_team=editorial&at_medium=social&at_ptr_name=facebook_page&fbclid=IwAR1WeJbxPF5EEM_jRBCRnC6afc__9uwAQU9gp4Z3sDoFt7u4Owomqa2e6qY
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