quarta-feira, 9 de julho de 2014

QUESTÃO INDÍGENA






Eles só querem ser brasileiros

  Os povos que aqui estavam quando chegou o europeu ainda existem e vivem entre nós. Estão em todos os lugares, e não apenas nas aldeias distantes que aparecem na televisão. Embora sejam vistos como coisa do passado no sistema de ensino branco, negando-se com isso mais de 500 anos de luta e resistência, e, ainda que pareçam invisíveis para a maioria da população, os índios, que nem se chamavam assim, estão presentes em todos os cantos do país. 


Mas não sentem- se cidadãos brasileiros. Os povos indígenas que habitam ainda, apesar das dificuldades e da discriminação, a metade sul do Brasil, estão confinados em reservas minúsculas que não lhes permitem viver suas atividades diárias como o índio que conhecemos na literatura, na escola, dada a exiguidade dos espaços. E nem como um brasileiro integrado à sociedade, com direito a emprego, educação e, como dizem no mundo branco capitalista, possibilidade do que chamam de “melhorar de vida”.
E o que poderia ser uma saída digna da sociedade brasileira para com o índio, permitir a sua inserção no mundo da cidade urbana e moderna e suas regras, não lhes é permitido por causa da discriminação, que o racismo teima em manter incutida na alma da humanidade.

Os acampamentos em geral não são dotados da infraestrutura necessária

A questão é ampla e nacional. A demarcação das terras onde possam viver com segurança é o grande desafio dos índios país afora. E também a grande esperança. Para eles, a existência de um lugar onde possam construir suas casas - não as taperas que fazem as aldeias hoje parecerem favelas - mas edificações com o mesmo conforto e acesso a tecnologia que os brancos. Além da segurança da terra, a demarcação manterá as aldeias como espaço de cultivo da língua, dos ritos religiosos e da hierarquia comunitária. É o que pensam os que ainda habitam terras indígenas e procuram preservar sua língua e tradições.

É também o que defendem as novas lideranças indígenas que começam a surgir. Sem espaço para aprenderem a caçar e pescar, e sem ter onde fazê-lo, freqüentando regularmente o sistema de ensino branco, mesmo dentro das aldeias, a juventude indígena quer parar de migrar e passar a ter oportunidades iguais às concedidas ao homem branco brasileiro.
O grande número de suicídios de jovens em aldeias de todo o país (veja box) tem convencido os mais velhos que está é a melhor, senão a única, opção que lhes resta para salvaguardar a cultura e a própria existência de seus povos no futuro. Assim, apesar de buscar garantir seu espaço na sociedade brasileira hegemonicamente de ode aos costumes dos brancos, estes jovens líderes não querem deixar de preservar sua cultura e suas tradições.

Uma vice cacique de 23 anos


A jovem Paulina Kunha Rokavy Ponhy Martinez, que sonha em cursar a faculdade de Direito

“Nossa língua é a única coisa que nos resta”, diz avá-guarani Paulina Kunha Rokavy Ponhy Martinez, resumindo na frase a coisa mais importante para a identidade guarani. Ela é uma jovem que sonha em cursar a faculdade de Direito e é a líder religiosa e vice cacique da Tekohá Y’Hovy, uma das oito aldeias não regularizadas no município de Guaíra, cidade de 30 mil habitantes localizada no oeste paranaense, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai e os Estados do Paraná e Mato grosso do Sul. O município conta com uma população de cerca de 2 mil índios avá-guarani, desde que eles, depois de haverem sido expulsos e enviados para viver entre os kaigangs nas aldeias do centro sul do Estado, voltaram e, agora, baseados em dados arqueológicos, reivindicam uma reserva na terra de seus antepassados.
“Nós não sairemos daqui. Não iremos mais abandonar nossas terras e fugir como fizeram nossos parentes, a cada reintegração de posse concedida pela justiça brasileira”, disse ela, como porta voz de doze caciques de aldeias da região, no encontro com o prefeito da cidade, Fabian Vendrúsculo, realizado durante a manifestação na semana de Mobilização Nacional Indígena, que aconteceu entre 30 de setembro e 05 de outubro do ano passado (veja box).


Ilson Karai Okaju Soares, cacique da aldeia Y’Hovy, desde 2010, onde vivem cerca de 30 famílias

Apesar de ter mandado fechar as portas da prefeitura durante a manifestação, o prefeito do PT recebeu, no final da manhã, uma comissão composta pelos caciques.  Um deles, Ilson Karai Okaju Soares, cacique da aldeia Y’Hovy desde 2010, onde vivem cerca de 30 famílias, é jovem como Paulina. Tem 25 anos, é casado com Vicenta Kunha Takuavy Rope Martinez, não tem filhos e reflete a tendência das aldeias guaranis da região no sentido de conduzir os mais jovens aos postos de liderança administrativa e religiosa das aldeias. Tem sido uma tentativa de se fazer entender pelo homem branco. Alfabetizados e conectados ao mundo através da internet e pelo telefone celular, esses jovens líderes estão fazendo a diferença no contato com os brancos. “A palavra índio não veio das nossas nações”, diz Ilson. E há muito mais que palavras por detrás desta afirmação do jovem avá-guarani.

Indígenas guaranis concentrados defronte a prefeitura municipal de Guaíra, no Paraná


Cultura dinâmica

Para Paulo Porto, fotógrafo, professor, doutor em Educação e atualmente vereador na cidade de Cascavel, no Oeste paranaense, a urbanização da população indígena origina-se, em parte, pela própria interação cultural havida nestes 500 anos. 
"A urbanização de alguns povos indígenas tem suas origens em dois temas distintos, a exiguidde territorial - o que implica em um êxodo para as grandes cidades no sentido de sobrevivência física e econômica - e a interação cultural, afinal, a cultura dos povos indígenas, como toda cultura, não é fossilizada, e vem se modificando a partir o aumento e da intensificação da relação com o mundo não índio. Porém, não tenho dúvidas que a questão territorial se sobrepõe e é determinante", diz ele, que também é indigenista e atua desde 1990 junto de comunidades e povos indígenas, tendo feito parte por uma década no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), quando trabalhou com povos da região amazônica e sudeste do Brasil.
Paulo Porto (Foto: Júlio Carignano
Para ele, o surgimento das novas lideranças é visto pelos indigenistas como o "resultado direto da relação com a sociedade não-índia, com suas leis e burocracias, além de outros códigos culturais". Sua atuação junto das comunidades indígenas guaranis do Oeste do Paraná e na região de fronteira com o Paraguai e a Argentina, Paulo diz que, em geral, os mais velhos ainda continuam como guardiões da tradição cultural e do poder político nas aldeias. Entretanto, devido a facilidade dos jovens em se comunicarem com a sociedade branca, vem sendo construída uma "liderança para fora", embora o verdadeiro e legítimo poder político e espiritual ainda seja exercido pelos mais velhos.

Urbano, mas ainda índio.

O índio brasileiro hoje é urbano não só no sul, mas também na Amazônia, onde as reservas são imensas perto do tamanho das áreas indígenas existentes no centro sul, mas como dantes, resultam na formação de aglomerados urbanos que viram cidades.
Em São Gabriel da Cachoeira, município localizado no noroeste do estado do Amazonas, distante 852 quilômetros de Manaus, 29 dos cerca de 30 mil habitantes são indígenas. Sintomaticamente, um dos maiores municípios do país (109.185 Km²), maior que nove estados brasileiros e que 92 países e com e maior predominância indígena na população, fica aos pés do ponto mais alto do país, o Pico da Neblina.  É o único município do país a ter reconhecidas, como línguas oficiais, três idiomas indígenas, além do português, desde 2002. As terras indígenas abrangem 80% do território do município, mas apenas 18 mil índios vivem nelas. 11 mil vivem na cidade.
A maior metrópole do país, que abriga uma variedade enorme de povos e etnias, abriga também a menor terra indígena. É emblemática a existência e a localização da aldeia guarani, ou poderíamos dizer um acampamento guarani, porque a terra não foi ainda demarcada. A Tekohá Pyau está localizada nas margens da estrada turística do Pico do Jaraguá, o local mais alto da cidade de São Paulo, tem apenas dois hectares de extensão onde vivem 160 famílias, aproximadamente 800 pessoas e cerca de 350 cães e 120 gatos, em geral deixados lá pelo homem branco.

Até a ONG internacional Greenpeace entrou de vez na campanha contra a revisão do processo de demarcação de Terras Indígenas. A gigante usou seus recursos financeiros em campanhas de marketing na internet, aliando-se à  Mobilização Nacional Indígena no ano passado que promoveu manifestações em vários locais do país com o objetivo de protestar contra projetos que tramitam no Congresso Nacional e que visam restringir direitos de povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais sobre suas terras, além de tentarem impedir a criação de unidades de conservação, propostos pela bancada ruralista no Congresso e pelos lobbys das grandes empresas de energia. Entre eles, estão as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 215/2000 e 38/1999, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/2012 e o Projeto de Lei (PL) 1.610/1996.
As manifestações tiveram o apoio de organizações indígenas e indigenistas, como o Instituto Socioambiental (ISA), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), mas também por outros movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como o Greenpeace, a Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (Conaq) e o Movimento Passe Livre (MPL), em termos nacionais, e de estudantes que se aliaram à causa, participando das passeatas.

Demarcações na gaveta do governo
  


De acordo com dados do ISA – veiculados em agosto deste ano, o governo mantinha na gaveta 21 processos de demarcação de Terras Indígenas nos estados do MS, RS e SC, alguns deles aprovados pela Funai já há cerca de 10 anos. Uma área de 2 milhões de hectares. Os dados seriam do mês de maio e foram divulgados pela Funai numa reunião com a CNPI – Comissão Nacional de Política Indígena, levando a presidente Dilma a ser acusada de ter o pior desempenho na demarcação de TIs desde a democratização do país. Retardar a demarcação, para todos que a defendem, é expor estas comunidades aos interesses contrários, dizem.
O MS é palco do maior número de conflitos oficialmente, mas é fato que nenhum estado fica atrás no que se refere à demarcação de terras indígenas. De acordo com a Funai (Fundação Nacional do Índio), o país tem atualmente 672 terras indígenas, 115 delas em estudo, ou seja, ainda não foi definido o tamanho dessa área, que pode vir a ser demarcada. São, portanto, 440 áreas homologadas e regularizadas no país. Segundo a fundação, no entanto, essas terras não estão livres de conflitos. O órgão diz não possuir o quadro atual de conflitos nessas terras.
Além disso, existem também 77 referências de grupos indígenas não contatados, dos quais 30 foram confirmados, segundo a Funai.

Mais de 50% da população indígena ocupa apenas 1,5% das TIs

A maioria das TIs no centro-sul do País tem extensão muito pequena e insuficiente para garantir condições de vida adequadas para as comunidades indígenas, conforme determina a Constituição. Pouco mais de 51% da população indígena do País vive fora da Amazônia Legal, mas ocupando menos de 1,5% do total das TIs, segundo o censo do IBGE de 2010. Os indígenas somam 896,9 mil pessoas no Brasil. 
O Rio Grande do Sul tem 46 TIs, totalizando 104,3 mil hectares – 0,3% da área total do estado e 0,09% da área total de TIs no Brasil. O estado abriga uma população de 34 mil índios ou 3,7% do total.  
O caso mais grave de falta de terras está no Mato Grosso do Sul, que tem apenas 2,2% de sua extensão ou 815,9 mil hectares ocupados por TIs, num total de 51 áreas. Apesar disso, vivem no estado 77 mil índios ou 8,5% da população indígena total, segundo maior contingente do País. As TIs sul-mato-grossenses correspondem a apenas 0,7% da área total das TIs brasileiras. E, embora a concentração populacional indígena por unidade de área de TI seja inferior a do RS, a exclusão desta população do contexto social, principalmente urbano, agrava os efeitos da carência de terras.
Santa Catarina resguarda 22 TIs, num total de 83,1 mil hectares – 0,8% da extensão do estado e 0,07% do território das Tis brasileiras. O estado tem uma população indígena de 18,2 mil índios ou 2% do total.
Segregado ao nascer

CONECTADOS: Ilson filma com o celular a manifestação de Paulina.


O índio que nasce no Brasil não é um cidadão brasileiro. Seus pais não podem entrar em qualquer cartório de Registro Civil e registrar o nascimento de mais um cidadão do país. É a Funai que emite o Registro Administrativo de Nascimento e Óbito de Indígenas (RANI), previsto no art. 13 do Estatuto do Índio, Lei 6.001, de 19 de Dezembro de 1973, e regulamentado pela Funai através da Portaria nº 003/PRES, de 14 de janeiro de 2002. O RANI é um documento administrativo, e não substitui a certidão de nascimento civil e os demais documentos básicos, como Carteira de Identidade, Cadastro de Pessoa Física e Carteira de Trabalho. O RANI pode ser utilizado para dar entrada na Certidão de Nascimento Civil.
A Funai se baseia na Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, e no Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), que considera o indígena como não participante da identidade nacional. Segundo o estatuto, “todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”.  Eles, em geral, têm sempre dois nomes. O indígena e o nome em português.
Mas dizem que o índio brasileiro é um cidadão pleno, e têm direito aos benefícios sociais e previdenciários do Estado Brasileiro, entre eles aposentadoria por idade (65 anos para homem e 60 para mulher), salário maternidade, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, benefício de prestação continuada da assistência social – BPC-LOAS, e até programa Bolsa Família. São direitos conquistados pelos índios.
Mas o que eles querem é cidadania. Querem se sentir brasileiros como todas as etnias de homens brancos que aqui aportaram alardeiam. Não querem o Brasil de volta e sim fazer parte dele.
Ao invés disso, os índios da metade sul do Brasil vivem segregados pela sociedade, discriminados, indesejados nos estabelecimentos comerciais e postos de serviço público na área de saúde, assistência social e outros, que eles só procuram porque foram colocados nesta situação que chamam de “vulnerabilidade social”, por não conseguirem mais viver como índios e por terem que rumar para outras terras por medo das constantes reintegrações de posse concedidas pela justiça.
Adotar as mesmas políticas para os povos que vivem no norte, em reservas gigantescas e os que vivem no litoral superpopuloso e na metade sul do país, industrializado e produtor de “commodities”, é algo que denota uma absoluta falta de visão por parte dos governantes e órgãos públicos, da amplitude e variedade de características de toda a ordem existentes neste país, inclusive nas nações indígenas que nele vivem.
Os indígenas do sul não querem reservas gigantescas que lhes permitam caçar, pescar e plantar como faziam seus antepassados. Até porque não há mais peixes nos nossos rios e nem florestas onde haja caça. “Não ensinamos mais nossos meninos a usarem o arco e a flecha, ou a caçar. Eles agora vão à escola dos brancos, brincam como os brancos”, explicou-nos Paulina. “Não temos mais medo dos não indígenas”, completa ela.

Com a honra ferida



Mas não é sempre assim, com a garra e pertinência até, de Paulina, e a honra e a altivez de Ilson que todos os jovens indígenas brasileiros enfrentam a sociedade branca logo ali, quase na esquina da aldeia.
Dados da Funai e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, revelam que a taxa nacional de suicídios indígenas é cerca de quatro vezes maior que a média nacional.
Apesar dos números serem inconclusos e discrepantes, o fato tem chamado atenção da comunidade internacional, pois eles acontecem tanto onde existe abundância de espaço e terra para o indígena viver de acordo com o que se preconiza na sociedade “viva o índio”, como em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico, como nas exíguas aldeias do sul do país. Por vezes, ocorre da vítima ter mais de 30 anos, mas, em geral são jovens e crianças.
Embora muitos atribuam os altos índices de suicídio apenas à feitiçaria ou ao consumo de álcool e drogas, a ponto de haverem propostas visando a proibição da entrada de bebidas alcoólicas nas aldeias, para o padre Diego Pelissari, um italiano nascido na província de Bergamo que vive no Brasil desde 1989, sempre próximo de comunidades indígenas do norte e agora do sul do país, o que ocorre é um grave problema de auto estima dos jovens indígenas.
O padre, que agora atua na paróquia de Laranjeiras do Sul, no oeste do Paraná, diz que “o adolescente indígena de hoje conclui que não é ninguém. Nem índio, nem branco. Acredita que sua cultura não vale nada e vê na televisão um mundo inacessível para ele, pois nem ele, nem sua família têm dinheiro e nem as condições para consegui-lo”, diz ele. “E as lideranças indígenas não têm conseguido segurar, manter a esperança destes jovens num futuro que eles considerem digno”, completa ele. 


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