Quando imprensa vira notícia, uma das duas está doente
Por Alberto Dines em 11/11/2014 na edição 824
Estarrecido como sói acontecer com almas sensíveis, este observador
admite que já usou o axioma do título dúzias de vezes. Além de flagrante
autoplágio, trata-se de descarada clonagem do dito caipira segundo o
qual pobre só come galinha quando um deles está enfermo.
A imprensa detesta ver-se refletida nas manchetes; não é discrição ou
timidez, é sabedoria: holofotes são incontroláveis, exibem muito mais do
que deles se espera.
Em seguida ao estresse provocado pelo pedido de demissão do cronista
esportivo Xico Sá, que se revoltou contra o embargo imposto ao artigo
onde se proclamava eleitor de Dilma Rousseff, a Folha de S.Paulo resolveu voltar ao pódio para se autoproclamar campeã em matéria de isenção.
Na edição de sábado (8/11), com grande destaque e nenhum constrangimento, o jornal afirma na p. A-9: “Cobertura eleitoral da Folha é aprovada por 77% dos leitores” (ver aqui).
A fonte é, naturalmente, o Datafolha. Uma pesquisa no Google revelará
que a mesma pesquisa é repetida religiosamente depois de cada eleição
com resultados sempre brilhantes. Se fosse pessoa, a Folha seria extremamente carente, sedenta de reconhecimento e aceitação.
No domingo (9/11), quando o México começava a pegar fogo com as
declarações do procurador-geral sobre a chacina dos 43 estudantes em
Iguala (ver aqui), a Folha
teve novo surto de inovação e sapecou na manchete da primeira página a
retumbante constatação: “Jornalismo profissional alimenta redes sociais”
(aqui).
A Folha só descobriu isso agora? Se acompanhasse este Observatório
com mais atenção teria publicado a mesma matéria há alguns anos. De
qualquer forma, trata-se de uma edição histórica e não apenas pela
insólita manchete.
“De folga”
Na página A-3, no “Painel do Leitor”, outras novidades: quatro leitores
mencionam a saída dos colunistas Eliane Cantanhêde e Fernando
Rodrigues, que se revezavam há pelo menos uma década na retranca do
“Brasília” na nobilíssima Pagina Dois.
Como assim, onde é que os leitores descobriram esta informação? Logo se
descobre, no pé do painel, uma Nota da Redação”: “Sobre o encerramento
da colaboração na ‘Folha’ dos colunistas Eliane Cantanhêde e Fernando
Rodrigues leia reportagem à página A-10”.
Antes de chegar à página A-10, o observador dá uma paradinha na página
A-6, onde aos domingos publica-se a coluna “Ombudsman”. Não há coluna
com este nome. Com letra microscópica o jornal informa que neste
domingo, excepcionalmente, não se publica a coluna da ombudsman – a mais
importante contribuição ao processo de transparência jornalística.
Enfim, na página A-10: no alto destaca-se o título “Manifestantes
buscam inspiração em direita americana”, e no corpo da xaropada com
forte entonação conservadora o jornal informa que foi ouvir alguns dos
2.500 manifestantes que no dia 1/11 foram à Avenida Paulista protestar
contra Dilma Rousseff e o PT. O redator tem o cuidado de informar que os
manifestantes ouvidos não pediram a intervenção militar, a
reivindicação “partiu de uma minoria”. Matéria estranhíssima.
Agora, sim: no pé da página A-10, com destaque “- D” (isto é, destaque nenhum): “Folha
estreia novos nomes na coluna Brasília em dezembro”. Na parte final da
matéria, depois de introduzidas as novas atrações, fica-se sabendo que
substituirão Eliane Cantanhêde e Fernando Rodrigues, ela com 17 anos de
casa e ele, 27 (ver aqui).
Só isso? Só isso. Desfecho insólito mesmo para os padrões da Folha.
No “Painel do Leitor” de segunda-feira (10/11), duas novas cartas sobre
a saída de Cantanhêde e Rodrigues. E como um dos missivistas cobrou uma
explicação sobre o súbito desaparecimento da ombudsman, Vera Guimarães
Martins, em seguida veio a indefectível “Nota da Redação”: a coluna não
foi publicada porque “a titular estava em semana de folga”.
Folga? Curioso.
Ato político
Desses fatos surgem três grandes evidências:
1. Como é que os leitores souberam da saída de Cantanhêde &
Rodrigues se o jornal só publicou a informação um dia depois? Certamente
pelas redes sociais, estúpido. Mas se as redes sociais só se inspiram
no “jornalismo profissional” (segundo a manchete de domingo), alguma
coisa escapou do controle, né?
2. Na sexta-feira (7/11) já corria a informação na blogosfera e
alhures de que as demissões obedeciam a um drástico plano de contenção
de gastos na redação do mais respeitado jornalão do país. Outros cortes
viriam/virão. A crise econômica é visível a olho nu: pode ser detectada
nas noites da Vila Madalena de quinta a sábado, na retração da
publicidade em todas as mídias, nos pífios lançamentos da moda de verão.
Pode ser notada, sobretudo, na própria Folha.
Na edição de sábado (8/11), com 92 páginas distribuídas em 9 cadernos,
havia 38 anúncios de página inteira mais 12 inserções de grande porte
(maior do que meia página), só no segmento de imóveis. No segmento
automotor, três páginas inteiras; em outros segmentos (inclusive
supermercados e eletroeletrônicos): 4 páginas.
E daí, perguntará o leitor. Eis o que informa a própria Folha na
capa do caderno de classificados de imóveis, no domingo (9/11): “Preços
em desaceleração e vendas em queda em São Paulo”. Construtoras,
imobiliárias e incorporadoras gozam de tabelas especiais, os jornais
oferecem generosos descontos ao setor, os anúncios de página dupla
começam a substituir os de uma página. A Folha está oferecendo seu precioso espaço por preços insignificantes, quase de graça.
3. Outra evidência da crise e da absurda subserviência às
chantagens dos anunciantes: o “informe publicitário” na capa e
contracapa da edição da segunda-feira (11/11) nos exemplares destinados
aos assinantes paulistanos. Com o patrocínio da operadora Vivo, da
espanhola Telefônica, uma pseudocapa – verdadeiro trambique jornalístico
– com a data e algumas notícias da terça-feira, 1 de fevereiro de 2000
(há 14 anos), quando o tenista Rafael Nadal, igualmente espanhol,
iniciou a sua formidável coleção de prêmios. Mote das quatro páginas que
envolvem a edição: “A vida passa em velocidade 4G”. Isso cheira a
Navarra.
Quando grandes jornais abrem mão de seus traços e compostura vão se
apequenando nos demais atributos. Demitir – ou o eufemismo de
“interromper a colaboração” – acontece em qualquer empresa ou
instituição. Afastar do quadro duas estrelas de primeira grandeza ao
mesmo tempo e dessa forma descuidada, pusilânime, não é acidente, ou
casualidade. É causal, tem um sentido, é ato político (não
necessariamente partidário ou ideológico).
Quando a imprensa é notícia, um dos dois está doente. Ou os dois. A Folha adora surpreender: é o seu charme. E a sua perdição. Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/quando_imprensa_vira_noticia_uma_das_duas_esta_doente
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