Cuba e EUA: o significado político de um dia histórico**
Alexandre Haubrich
O dia 17
de dezembro de 2014 é um novo marco nas relações internacionais nas
Américas. Às 15h de Brasília, os governos de Cuba e dos Estados Unidos
anunciaram, simultaneamente, um acordo que restabelece as relações
diplomáticas entre os dois países. Como consequências imediatas, há uma
troca de prisioneiros – na qual são libertados os três antiterroristas
cubanos presos há 16 anos nos Estados Unidos – e a possibilidade do fim
do bloqueio econômico contra Cuba. Mas o que isso representa de fato?
A inflexão
é grande, isso está claro, mas o quão profunda poderá ser só saberemos
de fato nos próximos anos. Há aí uma grande conquista de Cuba – de seu
governo e de seu povo – e uma grande vitória da solidariedade
internacional. Ao menos politicamente, o significado simbólico do acordo
é um avanço no respeito à soberania cubana, e isso é fundamental.
Independente de se concordar ou não com as linhas políticas, sociais e
econômicas da Revolução Cubana e os rumos que esse processo tomou e vem
tomando, o respeito à soberania e à autonomia dos povos é princípio
básico para relações internacionais minimamente saudáveis. Se esse
respeito irá consolidar-se, é outra história.
Ações contrarrevolucionárias
Desde a
chegada ao poder dos revolucionários cubanos, foram inúmeros os ataques
terroristas contra Cuba. A maioria deles partiu dos Estados Unidos, ou
apoiados pelo governo estadunidense ou ao menos encobertos por ele – o
que dá quase no mesmo. O mais famoso desses ataques foi uma agressão
direta do governo estadunidense, através da CIA e de mercenários, na
tentativa de invasão de Cuba por Playa Girón, frustrada pela reação do
povo cubano organizado e armado. Entre os ataques mais violentos porém
menos perceptíveis de forma imediata, está o bloqueio comercial
estabelecido pelos Estados Unidos contra a ilha vizinha desde 1960.
Esse
bloqueio, constantemente atualizado por novas leis estadunidenses,
impede não apenas que empresas sediadas nos Estados Unidos comercializem
com Cuba, mas também procura evitar ao máximo que empresas estrangeiras
mantenham qualquer tipo de relação com a ilha ou com os produtos ali
produzidos. Dificulta inclusive a entrada de alimentos, remédios e
equipamentos necessários à infraestrutura básica do país e da população.
A Assembleia Geral da ONU já solicitou mais de 20 vezes o fim do
bloqueio, que agora parece mais próximo do que nunca: em seu discurso
neste histórico dia 17, o presidente dos EUA Barack Obama prometeu
estimular um “debate sério” no Congresso sobre o fim do bloqueio.
Algumas ações já começam a reduzir as cercas do bloqueio: dentre as
medidas anunciadas por Obama, estão a facilitação de viagens de
estadunidenses a Cuba, a autorização de vendas e exportações de bens e
serviços dos EUA para Cuba, a autorização para estadunidenses importarem
bens de até US$ 400 de Cuba, e o início de novos esforços para melhorar
o acesso de Cuba a telecomunicação e internet.
Como dito
no início deste texto, a base do avanço contra o bloqueio é o
restabelecimento das relações diplomáticas, rompidas desde 1961. Serão
abertas embaixadas nos dois países, e, assim, amplia-se a possibilidade
de diálogo. Foi nesse sentido a fala do presidente cubano Raúl Castro:
“Devemos aprender a arte de conviver de forma civilizada com nossas
diferenças”, disse, e reafirmou a necessidade do fim do bloqueio.
Los Cinco Volveran
O primeiro
resultado prático e visível da mudança nas relações entre os dois
países é o atendimento de uma demanda do povo cubano que já durava 16
anos: a libertação dos três antiterroristas presos nos Estados Unidos.
São os remanescentes dos “Cinco Heróis”, cinco agentes cubanos que se
infiltraram em organizações terroristas sediadas em Miami para tentar
impedir novos ataques contra Cuba. Acabaram presos, julgados em uma
situação completamente desfavorável, e condenados por espionagem – de
forma absolutamente injusta e influenciada pelo clamor da população de
origem cubana de Miami, vinculada à contrarrevolução.
Depois de
forte mobilização internacional em defesa da libertação dos Cinco – o
que só poderia ocorrer com uma decisão de Obama – a troca por Alan Gross
(estadunidense preso em Cuba) levou à soltura dos três que continuavam
presos – Gerardo Hernández Nordelo (condenado a duas prisões perpétuas e
15 anos), Ramón Labañino Salazar (uma prisão perpétua e 18 anos) e
Antônio Guerrero Rodríguez (uma prisão perpétua e 10 anos). Essa é uma
grande vitória da diplomacia cubana e, sobretudo, da solidariedade
internacional. A confiança e a previsão de Fidel Castro se confirmaram.
Em discurso no ano 2001, o ex-presidente cubano garantiu: “La inocencia
de esos patriotas es total. Solo les digo una cosa: volverán”.
Fim do bloqueio é a nova estratégia
O
afrouxamento do bloqueio e as sinalizações sobre o seu fim, combinados à
libertação de Gerardo, Ramón e Antônio, são vitórias de Cuba, vitórias
da soberania do povo cubano, vitórias do empenho e da retidão do governo
cubano e da solidariedade internacional. Ao mesmo tempo, não há que se
pensar que o governo de Barack Obama transmutou-se em um governo
respeitoso aos direitos humanos e aos direitos das nações, tampouco que
os Estados Unidos, enquanto Estado e enquanto sociedade, dá uma guinada
rumo ao respeito à soberania alheia. É preciso atenção aos próximos
movimentos e às razões da mudança na forma de se relacionar com Cuba. Em
seu discurso, Obama deixou claro que segue descontente com os últimos
55 anos da Cuba, mas que os Estados Unidos devem mudar de estratégia se
querem o fim da Revolução. O bloqueio foi uma estratégia que durou 43
anos e não funcionou; seu encerramento é justamente a nova estratégia.
A
tendência é que, conforme o bloqueio vá caindo, o capitalismo seja
despejado em uma Cuba com cada vez mais dificuldades para manter-se em
confronto com ele. O processo de abertura ao capital, chamado de forma
otimista e/ou eufemística de “atualização econômica” já vem acontecendo
em Cuba desde que o país se viu em profundas dificuldades econômicas
após o fim da União Soviética. Com a falta de um parceiro comercial e
político de quem, é verdade, tinha se tornado bastante dependente, Cuba
teve que recuar na construção do socialismo, e começou, principalmente a
partir da segunda metade da década de 1990, a abrir espaços para a
entrada do capital internacional e para o nascimento de um novo capital
nacional privado. Ao mesmo tempo, o turismo começou a crescer,
tornando-se a principal fonte de renda de boa parte dos cubanos e do
próprio Estado. Tanto o turismo quanto a abertura à iniciativa privada
trouxeram problemas: uma pequena desigualdade aflorou, por um lado, e,
por outro, o deslumbramento da experiência de troca com os privilegiados
que podiam viajar a Cuba levava (e ainda leva) a uma visão distorcida
sobre a realidade dos países capitalistas.
Socialismo ou a morte da Revolução
Em Cuba,
há pouco – por causa do bloqueio, dos equívocos econômicos, e da própria
história de exploração do país pela Europa e pelos Estados Unidos –,
mas não há fome, não há miséria, todos têm acesso à Saúde e Educação de
qualidade. Porém, com as novelas brasileiras mostrando o Leblon nas
televisões cubanas, com os turistas endinheirados mostrando os poucos
vencedores de países com muitos derrotados, e com a ascensão econômica
de alguns cubanos através da iniciativa privada, cria-se uma confusão de
compreensão sobre a realidade de Cuba em relação aos outros países,
mesmo que os cubanos estejam em níveis de politização bastante superior
aos brasileiros, por exemplo. É nesse processo, de despejo de capital e
de turistas endinheirados sobre Cuba, que o governo estadunidense parece
apostar agora para criar novas dificuldades. Pode cair o
estrangulamento econômico, mas a tendência é que seja substituído por um
ataque direto à consciência socialista do povo cubano. A Revolução está
preparada para isso? Talvez. O certo é que há erros que podem custar
caro nesse processo. Embora seja um equívoco – quando não desonestidade –
afirmar que em Cuba há uma ditadura – há eleições desde a base,
organizações fortes e representativas, participação política constante
–, de fato alguns erros históricos ainda enfraquecem a possibilidade de
usufruto pleno do direito à política – é o caso da ausência de uma mídia
descentralizada e comunitária, por exemplo. Mesmo assim, as
organizações cubanas são vigorosas e, especialmente a partir dos Centros
de Defesa da Revolução (CDRs), politizam ao mesmo tempo em que
constroem o país através das mãos da maioria.
Em uma
perspectiva histórica, 50 anos é pouco tempo. A Revolução Cubana nasceu
antes, no ataque liderado por Fidel Castro ao Quartel Moncada, mas ainda
assim engatinha. Embora em 1959 o povo cubano tenha conquistado o
Estado e, em seguida, se apoderado de seu próprio destino e passado a
controlar a economia do país, circunstâncias internas e externas levaram
a retrocessos, especialmente na área econômica. Com a dinâmica
histórica internacional, foi prejudicado pelas readequações e
consequentes vitórias do capitalismo e, assim, das ralas elites
mundiais. Depois de avanços rápidos seguidos de retrocessos, Cuba se vê
hoje em fortes contradições econômicas. O socialismo derrapa e procura
manter-se em pé. A possibilidade de fim do bloqueio econômico abre a
possibilidade de remobilização econômica, que pode servir tanto ao
avanço do capitalismo sobre Cuba quanto à retomada do fortalecimento da
economia socialista, especialmente através de parceiros políticos e
econômicos contumazes que terão maior facilidade em negociar com a ilha.
Pode, assim, nascer um novo estímulo a uma economia soberana, popular e
pujante. Com a retomada das relações com os Estados Unidos e o que isso
sinaliza, não há mais como ficar parado: é avançar a passos rápidos
para a retomada e refortalecimento do projeto socialista, com
aprofundamento da democracia socialista e recuperação do poder econômico
não-privado; ou ser invadido pelos tentáculos ideológicos e pelo canto
da sereia do capitalismo.
*Título editado
**Publicado em http://jornalismob.com/2014/12/17/cuba-e-eua-o-significado-politico-de-um-dia-historico/
**Publicado em http://jornalismob.com/2014/12/17/cuba-e-eua-o-significado-politico-de-um-dia-historico/
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