quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

CRÔNICA



“Firmin”: uma fábula sobre devoradores de livros*

por: Cristiano Viteck

Sempre que encontro um pequeno ponto de venda de livros em algum lugar incomum para esse ramo, como uma padaria, um supermercado ou um posto de gasolina, não resisto a dar uma espiada no que está sendo exposto. É um hábito que carrego comigo há anos e que não tenho a intenção de abandonar.

Geralmente a espiada dá em nada. Nestes lugares, o mais normal é encontrar poucos títulos e estes, geralmente, são de livros de grande vendagem, como os 50 tons de alguma cor, os Augustos Curys da vida, ou aqueles livrinhos de romance baratos impressos em papel jornal vendidos a preço de banana. Mas, em um dia de sorte, é possível encontrar coisas realmente bacanas.

Exemplos recentes foram um exemplar do clássico do terror “A Volta do Parafuso”, de Henry James, numa edição caprichada da Editora Abril, achado num supermercado perdido em uma gôndola em meio a gibis do Tex e da Mônica e bombons Sonho de Valsa. Outro tesouro encontrado por alguns poucos reais foi um exemplar de “O Livro da Selva”, de Rudyard Kipling. Edição portuguesa, ilustrada e com uma qualidade gráfica difícil de encontrar no Brasil.

Mas não são somente clássicos ou livros da moda que a gente encontra nessas ocasiões. Numa padaria, dias atrás, comprei um com o título “O Teste do Psicopata”, escrito por Jon Ronson que, vejam só, escreveu também “Os Homens que Encaravam Cabras”. Nunca ouvi falar do escritor e nem dos livros, mas a capa a e o título são tão bacanas que a curiosidade não permitiu que eu o deixasse pra trás. Se “O Teste do Psicopata” é bom, ainda não descobri.

Também foi pela capa que trouxe pra casa outro livro que achei à venda em uma fotocopiadora da cidade, já com as páginas amareladas uma vez que, de acordo com a data de impressão, o exemplar estava há seis anos na prateleira tentando chamar a atenção de alguém. O nome do livro é “Firmin”, do escritor Sam Savage. Publicada originalmente nos Estados Unidos em 2006, esta é uma obra apaixonante para quem é apaixonado por literatura.



O Firmin que dá nome à obra é um rato que vive em uma livraria, em Boston (EUA), na década de 60. Décimo terceiro filhote de uma ninhada, o ratinho cresceu em um ninho feito pela sua mãe com papel picotado de páginas velhas de grandes clássicos como “Finnegans Wake”, de James Joyce. Menor dos irmãos, Firmin dificilmente tinha vez em algumas das 12 tetas de sua mãe e, para não morrer de fome, acostumou-se a encher a barriga com as folhas de livros com os quais eram feitos o seu ninho.
É o próprio Firmin, o narrador da história, que nos conta:

“Devorava, no começo, rudemente, como numa orgia, sem foco definido, como um porco – para mim dava na mesma mordiscar pedaços de Faulkner ou de Flaubert -, embora logo tenha começado a notar sutis diferenças. Percebi, primeiro, que cada livro tinha um gosto diferente – doce, amargo, azedo, doce-amargo, rançoso, salgado, ácido. Notei também que cada sabor – e com o passar do tempo e minha sensibilidade se tornando mais apurada, o sabor de cada página, de cada frase e, ao fim, de cada palavra – trazia consigo uma carga de imagens, representações mentais de coisas sobre as quais eu não sabia nada (...). No começo, roendo e mastigando feliz, eu comia deixando-me levar pelo gosto. Mas logo comecei a ler aqui e ali perto das bordas da minha comida. Com o passar do tempo, fui lendo mais e mastigando menos até que, finalmente, passei a gastar quase todas as minhas horas de vigília lendo e mordiscando apenas nas bordas.”

Nesta fábula em que o rato Firmin desenvolve virtudes e capacidades humanas como a da leitura, está claro que o autor Sam Savage faz uma analogia com certos tipos de homens que se transformam em ratos ao escarafunchar bibliotecas, livrarias, sebos, as estantes de amigos e quaisquer outros lugares improváveis sempre em busca de um novo livro, com novas histórias, novas lições, novas emoções para preencher as lacunas da alma. São leitores transformados em ratos e que devoram, com os olhos, páginas e mais páginas de romances, poesias, biografias, ciências, história, filosofia, geografia, religião, sociologia, autoajuda e o que mais pintar pela frente!
Nunca acredito nas pessoas que dizem que não gostam de ler. Pelo contrário, penso que quem não tem o hábito da leitura ainda não encontrou os livros certos para si. Você aí está lendo isso e deve estar pesando: “Só falta esse cara dizer que cada um tem um Firmin dentro de si”. Pois é, é isso mesmo, acredito que cada um tem um Firmin dentro de si.



Além do óbvio “se aprende a gostar de ler, lendo”, não sei se existem mais regras – acho que não. Mas cada um pode encontrar o seu jeito de despertar o gosto pela leitura. O meu estopim foram os livros “As Aventuras de Robison Crusoé”, de Daniel Defoe, adaptado para crianças, e todos os títulos que consegui encontrar da Coleção Vagalume, quando eu estudava entre a 5ª e 8ª séries. Já na adolescência, em meio a tanto livro chato que era obrigado a ler no ensino médio, senti novamente o prazer da leitura quando caiu em minhas mãos as “Crônicas de um Amor Louco: ereções, ejaculações e exibicionismos”, do escritor underground Charles Bukowski. Daí em diante, nunca mais deixei de ter um livro sempre comigo.

Fazer alguém gostar de ler é complicado. O interesse deve partir de cada um. Penso que o negócio é ir provando um pouco de tudo, devorando um livro aqui, outro ali e, aos poucos, descobrir o sabor de cada gênero literário, da escrita de cada autor. Uma hora o sujeito acerta a escolha e aí se completa a mutação: nasceu mais um rato de livraria e biblioteca...

* Publicado originalmente em http://www.opresente.com.br/blogs/viteck-cultura-pop/2015/01/firmin-uma-fabula-sobre-devoradores-de-livros/41945/ Acesso em 08/01/2014

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