domingo, 22 de março de 2015

OS ECOS DE ITAIPU*




Os Ecos de Itaipu

No oeste do Paraná, índios Guarani querem retomar as terras de onde foram expulsos em nome da construção da hidrelétrica de Itaipu pelo regime militar

por Isabel Harari e Stefano Wrobleski
 “Quando Itaipu ia fechar a água a gente correu foi pra vários lugares. Alguns foram pra Santa Helena num barquinho que a gente fez. Naquela época, a gente recebia muita ameaça e a gente morria de medo. Ameaçavam a gente, diziam que iam levar pra fazer sabão. E ai a cada um ia pro seu canto. E, com medo, a gente foi pra longe”.


Pedro Alves pega uma vareta para mostrar as antigas aldeias guarani no oeste paranaense. O xeramõi – uma espécie de autoridade espiritual, ancião sábio – serpenteia o pedaço de pau pelo chão de terra batida da Tekoha Y’Hovy, aldeia onde vive, no município de Guaíra, e relembra onde cada parente morava e por onde corria o rio antes do alagamento para a construção da hidrelétrica de Itaipu. Em frente à sua roça, Pedro equilibra-se em um banquinho de madeira colocado no único rastro de sombra que resistiu ao sol do meio dia. “Naquela época a mata era quase virgem. Tinha mata, caça, palmito”, recorda. Seu Pedro apaga o desenho com as mãos e risca novamente o chão, dessa vez com várias linhas saindo de um ponto em direção à diversas regiões. Cada linha representa a direção tomada por seus parentes Guarani para fugir do alargamento do Rio Paraná, em 1982.
Em outra aldeia, a Tekoha Korumbe’y, situada dentro dos limites do município de Guaíra, o cacique Ismael Rodrigues explica: “Antigamente, quando eu tinha doze ou treze anos, já pescava aqui nesse Rio Paraná. Ele tinha um remanso muito bonito, e você tinha que ir em silêncio pescar lá, sem fazer movimentos bruscos”.
“Naquele tempo nós vivíamos na beira do rio. Não tinha fazendeiro nem nada. Só os índios que mandava. Fazia casa onde quiser! A terra era nossa”, complementa Vitória Barros, sentada em uma cadeira de plástico em frente à sua casa, na Tekoha Nhemboeté, em outro município, Terra Roxa.
Pedro Alves mostra a sua roça na Tekoha Y 'Hovy. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari
Pedro Alves mostra a sua roça na Tekoha Y ‘Hovy. Fotos: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari
Gregório Sousa, também morador da Tekoha Marangatu, relata em guarani que alguns indígenas foram avisados, mas outros tiveram que sair às pressas quando viram o rio subindo: “a gente não estava sabendo de nada. De repente, começaram a fechar o Rio Paraná”.
“Eles fizeram medo, nos intimidaram pra que saíssemos daqui. Uns passaram pro Mato Grosso do Sul, outros foram pro Paraguai e pra outros lugares”, conta Simião Benites também na língua materna, sentado na opy, a casa de reza da Tekoha Poha Renda, em Terra Roxa.
Rosalina Souza, xaryi – guarani para anciã – da Tekoha Miri, aldeia que margeia uma estrada próxima à cidade de Guaíra, lembra-se ainda que “tinha várias pessoas que não queriam sair e a gente não sabe o que aconteceu com elas”. Faustino Duarte, xeramõi que também vive na Tekoha Miri, conta: “Eu não sei o que aconteceu com a minha mãe nem com o meu pai porque, quando ia fechar o Rio Paraná, eu corri [com outros parentes]”.
De volta à Tekoha Y’Hovy, Pedro espana novamente as mãos sobre o chão e rabisca mais uma vez o terreno. Com a vareta, desenha as figuras das aldeias que foram construídas – ou “retomadas” – recentemente pelos Guarani. A maioria delas foi realizada nos últimos quatro anos.
“Eu nasci e cresci em Guaíra e não posso deixar o lugar onde nasci. A gente não pode deixar o lugar que a gente nasceu e cresceu, por isso estamos aqui ainda. Os brancos, quando crescem, deixam o lugar onde nasceram, mas a gente é diferente”, conta Gregório, da Tekoha Marangatu.
“Pode levar pra onde quiser, pode ser pra longe, que depois volta tudo outra vez. Até a pé nós vem. Não adianta levar longe”, explica Vitória Barros, na Tekoha Nhemboeté.

Assista ao vídeo:


O alagamento de vastas áreas no entorno do Rio Paraná, em 1982, para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu-Binacional foi o último grande movimento de um longo processo que, durante o século passado, foi pressionando os índios cada vez mais a oeste e para fora do estado. Fruto de um acordo binacional entre o Brasil e o Paraguai, a construção do megaempreendimento já estava nos planos desde a década de 1940, por conta da importância estratégica da região fronteiriça e pela necessidade da produção de energia, fazendo coro ao binômio “Segurança e Desenvolvimento” pregado pela Ditadura Militar.
Em pleno regime ditatorial, controlado por uma elite civil e militar, a construção de Itaipu “levou a uma nova onda de esbulho territorial”, segundo concluiu o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em dezembro do ano passado. O levantamento sobre as violações cometidas em nome da usina, que hoje fornece cerca de 17% da energia consumida no Brasil, faz parte do capítulo sobre violações dos direitos humanos dos povos indígenas.
O relatório [da Comissão Nacional da Verdade] prova que foram graves violações de direitos humanos dos indígenas com participação direta ou com conivência do Estado

Maria Rita Kehl
Em entrevista à Pública, a psicanalista Maria Rita Kehl, responsável pelo texto, lembra que o componente indígena aparecia, inicialmente, como “uma coisa pequena, uma nota de rodapé” a ser incluída na pesquisa. “Não sabia muito o que tinham os indígenas a ver com isso e muita gente me questionou: ‘Indígenas? Como assim? Eles não foram contra a ditadura’”. Durante a pesquisa, assombrou-se. “O relatório prova que foram graves violações de direitos humanos dos indígenas com participação direta ou com conivência do Estado”. O capítulo apresenta a estimativa de que pelo menos 8.350 indíos tenham sido mortos no contexto da implementação da política vigente ou pela participação direta de agentes estatais no período investigado pela CNV (entre 1946 e 1988). O texto aponta o caráter amplo das violações, que foram do esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, até torturas, maus tratos e extermínio de povos inteiros.
Durante os trabalhos, a psicanalista diz ter percebido que os índios “eram considerados um empecilho e havia um enfrentamento violento contra eles, como se fosse uma guerra contra outro país”.
O caso dos Avá-Guarani do oeste do Paraná merece destaque no capítulo. “As remoções também foram prática corrente quando se tratava de realizar empreendimentos em áreas com presença indígena”, diz o texto em referência à Hidrelétrica Itaipu. A equipe da CNV, através de seu coordenador, José Carlos Dias, fez um pedido de documentos  “em qualquer grau de sigilo” para Itaipu sobre as relações entre a empresa e os indígenas. Na solicitação, a CNV afirma ter sido informada sobre a existência, “no acervo desta instituição [Itaipu], farta quantidade de documentos relevantes sobre estes casos”. Mas não recebeu qualquer resposta.

Com a construção da usina, o curso do Paraná foi barrado e o rio transformou-se em um imenso lago artificial, inundando, segundo o projeto original, uma área de 1350 quilômetros quadrados – destes, 770 do lado brasileiro. Apesar de a barragem estar em Foz do Iguaçu, outros 15 municípios foram atingidos pelas águas do Paraná. Dentre eles, trechos de Guaíra e Terra Roxa. Ficou também debaixo d’água a Cachoeira das Sete Quedas, de beleza natural inigualável. Na ocasião do fechamento das comportas para a criação do lago da usina de Itaipu no dia 9 de setembro de 1982, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu no Jornal do Brasil: “Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram / Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio (…)”.
Antes mesmo da consolidação de Itaipu, o avanço das obras gerou uma onda de regularização fundiária feita às pressas pelo Instituto de Colonização Agrária (Incra) para por em ordem e indenizar as propriedades que foram adquiridas de forma ilegal com o avanço descontrolado da colonização das décadas anteriores. Os posseiros, ainda que de forma irregular, foram beneficiados em detrimento dos Guarani que ali viviam.
A ditadura aboliu a demarcação de terras indígenas nas regiões fronteiriças por conta da “segurança nacional”. A Funai foi sendo paulatinamente ocupada por “militares egressos dos Serviço Nacional de Informação (SNI) e do Conselho de Segurança Nacional (CSN)”. A militarização do órgão consolida a visão de que a demarcação de terras indígenas em zonas de fronteira nacional representaria um risco à soberania do Brasil.
Com a inundação do lago, as famílias Guarani tiveram que sair. “Ou corria, ou morria”, é uma frase ouvida frequentemente no relato dos mais velhos. Foram removidas 42 mil pessoas da área. “Foram indenizados os que tinham título. O não reconhecimento foi a estratégia usada para praticar o esbulho”, explica Diogo Oliveira, servidor da Funai que atuou na região entre 2012 e 2014.

Rio Paraná: antes e depois de Itaipu

Rosalina Souza, hoje moradora da Tekoha Miri, afirma que na região viviam muitos índios, ao contrário do que era disseminado por Itaipu e pela cúpula governamental: “Eu nasci na aldeia Oco’y, e perto de lá tinha uma aldeia chamava Ipiranga, Jakutinga, Porto Mendes, ‘Pepu’, Jurikaba, tinha vários lugares aqui, morava muitos Guarani”, conta. “Quando Itaipu ia fechar a água a gente correu foi pra vários lugares. Alguns foram pra Santa Helena num barquinho que a gente fez. Naquela época, a gente recebia muita ameaça e a gente morria de medo. Ameaçavam a gente, diziam que iam levar pra fazer sabão. E ai a cada um ia pro seu canto. E, com medo, a gente foi pra longe”.
Diferentemente de muitas histórias relatadas pelos indígenas, o xeramõi Gregório Matos nunca deixou a região. Hoje, vive na Tekoha Marangatu, nas proximidades de Guaíra, ocupada em 2004. Ele conta que na época da inundação a usina prometeu uma indenização que nunca chegou: “O pessoal da Itaipu falou que ia pagar para aqueles que iam sair. Pra mim eles não pagaram e eu fiquei onde nasci, mas não sei pros outros. Os cemitérios que a gente tinha antigamente ficaram debaixo das águas, e várias aldeias ficaram debaixo d’água também. Algumas vezes eu penso e dá um aperto. Os corpos de muitos dos nossos pais ficaram debaixo d’água”.
“A situação se encaminhou em 1982 para a remoção e confinamento dos Guarani numa exígua faixa de terra à beira do lago de Itaipu, sem qualquer paridade em tamanho e condições ambientais com o território ocupado anteriormente, o que também violava a legislação indigenista vigente”, diz o texto da CNV. Ali eles enfrentaram surtos de malária e doenças “decorrentes do uso de agrotóxico pelos colonos vizinhos, surtos esses que dizimaram parte da população”, prossegue o texto, baseando-se em um laudo antropológico assinado pela antropóloga e servidora da Funai Maria Lúcia Brant de Carvalho, que estudou e conviveu com os Guarani entre 2001 e 2007. Ainda segundo a CNV, “prevaleceu, contudo, a versão oficial dos ‘índios inexistentes’ e da ‘generosidade de Itaipu’”.

*Fonte: http://apublica.org/os-ecos-de-itaipu/ acesso em 21/03/2015

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