Entrevista: Jacques Lévy - Boletim Campineiro de Geografia (BCG):**
"Uma sociedade justa não é uma sociedade na qual os ricos
pagam e o pobre não paga. Uma sociedade justa é aquela na qual todos pagam, com
a mesma taxa de esforço. É muito importante sair da visão caritativa. O
problema da esquerda no Brasil, mas também na Europa, é a herança católica, do
catolicismo caritativo, que é aristocrático, porque considera que os pobres não
têm deveres. A capacidade de ter deveres é uma competência humana, uma
característica da humanidade."
Em visita ao Brasil, o geógrafo francês Jacques Lévy ministrou a palestra “Justiça espacial: do conceito à prática”, no auditório da Pinacoteca de São Paulo. Professor da École Polytechnique Fédérale de Lausanne, na Suíça, é conhecido por seus estudos sobre política e urbanismo. Acompanhados pela geógrafa Flávia Grimm, conversamos sobre suas pesquisas, suas opiniões e concepções sobre a política, a cidade e as abordagens da Geografia.
Em visita ao Brasil, o geógrafo francês Jacques Lévy ministrou a palestra “Justiça espacial: do conceito à prática”, no auditório da Pinacoteca de São Paulo. Professor da École Polytechnique Fédérale de Lausanne, na Suíça, é conhecido por seus estudos sobre política e urbanismo. Acompanhados pela geógrafa Flávia Grimm, conversamos sobre suas pesquisas, suas opiniões e concepções sobre a política, a cidade e as abordagens da Geografia.
Professor, primeiramente agradecemos por ter aceitado esse
convite, que muito nos honra. Gostaríamos, por gentileza, que o senhor
começasse nos contando sobre sua trajetória. Como o senhor chegou à Geografia?
Jacques Lévy: A Geografia era ensinada nos liceus na França
— agora moro na Suíça, mas passei a maior parte da minha vida na França, em
Paris —, e nos liceus franceses História e Geografia eram as únicas disciplinas
das ciências sociais ensinadas. Então, para mim, a Geografia era uma porta de
entrada para a análise do mundo contemporâneo. Não conhecia Sociologia, Ciência
Política, Antropologia e é provável que se tivesse conhecido essas disciplinas
teria escolhido Sociologia ou Ciência Política. Minha família era muito politizada,
a discussão política era permanente, e a ideia de um empenho como cidadão era
normal, considerada como evidente, então é provável que se a Ciência Política
fosse ensinada no liceu, teria escolhido isso. Mas nos meus primeiros anos de
ensino universitário, a SciencesPo, para mim, era um mundo burguês com o qual
não queria ter relações (risos). Depois, com a imagem da Geografia dos anos
1970, para mim foi a descoberta de uma realidade muito negativa pelos meus
critérios dessa época, porque me parecia epistemologicamente nula. Porque eu
estava impregnado de marxismo… Não criticava isso. Em particular a mistura
entre teoria e ideologia — que agora considero que não é uma coisa boa, que não
faz clara delimitação entre o conhecimento e o empenho político. Mas o aspecto
positivo é que, para mim, o marxismo foi como um objeto transicional — não sei
se vocês conhecem esse conceito da psicanálise.
Flavia Grimm: Transição?
Jacques Lévy: Não, é mais preciso. É, por exemplo, um “urso
de pelúcia” no qual se pode bater, considerado como um semi-humano, e a mão do
adulto que permite estar mais seguro frente a uma realidade externa socialmente
perigosa. É isso o objeto transicional. Para mim, o marxismo foi um objeto
transicional para a abordagem das Ciências Sociais. Com esse conhecimento
bastante prático, mas também muito abstrato de “O Capital”, as obras teóricas
de Marx e Engels, o meu olhar sobre a Geografia era muito crítico. Não só
porque não era marxista, mas mais porque não era séria, não era coerente,
consistente. Então eu e meus amigos hesitamos: valia a pena a Geografia,
investir tempo e energia…? E por preguiça e sadismo (risos), a gente decidiu
“lançar as bolinhas de gude”. E, para mim, nos anos 1970, a Geografia trouxe
esse tipo de prazer. Eu era preguiçoso, porque era tão fácil, a Geografia era
tão fraca que com as minhas armas era fácil demais destruí-la.
Flávia Grimm: Que armas?
Jacques Lévy: Só com uma certa agilidade formal, uma certa
cultura na ciência social, que a Geografia nesta época era muito isolada do
resto… A ideologia dominante nos geógrafos era dizer que a Geografia é, por
natureza, interdisciplinar, então não precisa ter contato com outras
[ciências].
Flávia Grimm: Ah, porque ela já é interdisciplinar, então
não precisaria dialogar com os outros.
Jacques Lévy: São muitas as disciplinas que se pretendem a
isso.
Flávia Grimm: Você fez o curso na Sorbonne? Essa Geografia
de quando você era estudante está acontecendo onde? É uma Geografia francesa?
Jacques Lévy: Sim,
nessa época só conhecia a Geografia francesa. Mas nos anos 1970 descobri o que
começava a se chamar de New Geography inglesa, norteamericana e sueca — mas que
tinha também defeitos do positivismo, a ilusão quantitativa, a ilusão de que
houvesse leis gerais do espaço independentes do conteúdo. Claro que minha
paisagem intelectual era limitada, no início, à França. E depois mudei um pouco
de motivações e juntei outras, como o prazer de fazer teoria, de construir
coisas. E num segundo tempo eu fazia também estudos empíricos para experimentar
esse diálogo nunca fácil entre teoria e empiria.
BCG: O senhor estabeleceu frequentes diálogos com geógrafos
brasileiros, destacadamente Milton Santos, tendo participado da elaboração de
uma obra de divulgação do autor1 recentemente publicada em língua
francesa, na qual afirma uma proximidade de temas de interesse, de orientações
teóricas, convicções e opiniões. Gostaríamos de saber como o diálogo com Milton
Santos influenciou a sua trajetória na Geografia e como o senhor vê a
atualidade das contribuições dele para a Geografia.
Jacques Lévy: Vocês entenderam que o elemento determinante
para entender o meu percurso é preguiça (risos). Um dia, em Paris, Milton
Santos apareceu à porta de uma reunião da revista EspacesTemps2 ,
porque nós tínhamos sido recebidos como um grupo de jovens interessante. Então
assim começou a amizade com Milton. Minha primeira viagem ao Brasil foi em
1982, quando o Brasil tinha sido eliminado da Copa — havia uma atmosfera de
desolação completa.
Flavia Grimm: Você veio para o encontro de geógrafos em
Porto Alegre?
Jacques Lévy: Mas o entusiasmo em Porto Alegre… [o encontro
da] AGB era uma feira tremenda, as ideias, a dimensão política era muito
importante… Era antes das primeiras eleições diretas. Então tinha uma mistura
inseparável de ideologia e preocupações científicas. Uma coisa que eu conhecia
muito bem, que começava a criticar, mas era muito euforizante.
Flávia Grimm: Era também a continuidade de todo um movimento
de renovação, após 1978 houve um clima de mudanças…
Jacques Lévy: Isso.
Mas com Milton entendi que nós tínhamos gostos em comum, como o gosto pela
teoria. Acho que Milton gostava ainda mais do que eu da teoria. Não gostava dos
exemplos. Mas para mim teoria era muito importante, no entanto não era popular
na Geografia. Era difícil. Eu era candidato a um posto no CNRS3 , e
para destruir minha candidatura um membro do júri leu meus textos para fazer
rir, porque eram incompreensíveis.
Flávia Grimm: Você ganhou ou perdeu o posto?
Jacques Lévy: Perdi. Na terceira vez eu consegui. E bom,
havia esse gosto pela teoria e também a origem marxista. Milton e eu falávamos
a mesma língua, era muito fácil dialogar. E também o fato de que, apesar de ser
uma referência ao marxismo, Milton foi sempre independente no seu pensamento,
nunca aceitou nenhuma corrupção intelectual em relação à política. Para mim
isso era muito importante, porque na França e na Europa continental dos anos
1970 havia marxismo, mas muito ligado aos partidos comunistas. E eu, nos anos
1970, era membro do Partido Comunista Francês, mas desde o início com uma
independência total, e por isso tive rapidamente problemas de coabitação com a
lógica de um partido em geral, ainda mais um partido que pretendia ter ideias
sobre teoria, sobre ciência, sobre tudo. Então [Milton] era um amigo muito
precioso nesse sentido. E nós rapidamente descobrimos que não estávamos de
acordo em tudo, mas era impressionante para mim a sua capacidade de ler várias
coisas. Flávia me informou que alguns…
Flávia Grimm: Alguns
o criticam dizendo que é eclético.
Jacques Lévy: Não foi nunca eclético, exatamente o
contrário. Mas tinha uma capacidade para integrar contribuições diversas. De
Marx, [Martin] Heidegger, [Henri] Lefebvre, mas também [John] Rawls… Então para
mim era uma coisa muito positiva, a prova de que era possível construir uma
teoria completamente pessoal, mas integradora.
“Os bens mais desejados pela sociedade contemporânea não
podem ser redistribuídos, como educação, saúde e também espaço. Devem ser
coproduzidos.”
BCG: O senhor citou Rawls… Pensando no conteúdo da palestra
de hoje, inclusive, temos algumas perguntas sobre a questão da justiça
espacial. Tendo em mente seu último livro, Réinventer
la France4 , em que o senhor define justiça espacial, nos parece
que em concordância com o conceito de justiça de Rawls (como distribuição
igualitária de um certo número de bens considerados necessários a todos), e
levando em conta também que podemos imaginar uma distribuição quase igualitária
de alguns bens, como saúde, escola, mobilidade e força de trabalho em um
sistema político muito centralizado ou mesmo ditatorial, como poderíamos
analisar a situação da justiça espacial incluindo a dimensão do poder? Como o
senhor trabalha esse conceito de espaço justo, considerando a política?
Jacques Lévy: Acho, com Amartya Sen — ele não usa os mesmos
termos, mas acho que concordamos em um ponto — que justiça não é só assunto de
distribuição, mas de coprodução de bens e serviços. Curiosamente, Amartya Sen,
que é um economista, não usa muito o conceito de bens, que vem da ciência
econômica — de Samuelson. Um bem público não perde seu valor de uso quando o
número de consumidores aumenta. Então outra característica do bem público é que
é coproduzido pelos beneficiários — a sociedade considerada como um todo. Então
me parece claro que a redistribuição é útil, mas a um certo momento não basta,
porque os bens mais desejados pela sociedade contemporânea não podem ser
redistribuídos, como educação, saúde e também espaço. Devem ser coproduzidos.
Então a questão do poder… Justamente, se poderia dizer que com um poder
centralizado, com um poder não distribuído, não se pode fazer o essencial da
justiça nas sociedades contemporâneas. Porque as sociedades contemporâneas são
sociedades de atores. Então qual é o alvo principal da sociedade? É reforçar,
fortalecer, ativar, capacitar (empower), e isso é possível somente se os atores
— ordinários, individuais, fracos, minúsculos — têm esse poder de fabricar
parcialmente, e por isso nesse ponto eu encontro a tríade ator-ambiente-ação. E
esse equilíbrio entre ator e ambiente me parece muito interessante, porque
agora a possibilidade de destruir ambientes é evidente. Ao mesmo tempo em que é
evidente que os atores são pré-formados nesse ambiente. Essa situação é mais
simétrica que numa sociedade agente, onde os papéis sociais são pré- determinados
e o ator não tem muita margem de manobra na sua vida. A competência de estratégia
biográfica do individual muda a situação. Ao mesmo tempo em que tomamos
consciência, particularmente com os ambientes naturais, mas também com outros
ambientes, da fragilidade dos ambientes. Os ambientes são englobantes, mas isso
não quer dizer que são inoxidáveis, indestrutíveis. Por isso eu introduziria a
questão do poder assim: que só numa sociedade de atores com parcelas de poder é
possível imaginar uma situação justa. Os bens mais desejados pela sociedade
contemporânea não podem ser redistribuídos, como educação, saúde e também
espaço. Devem ser coproduzidos.
“Só numa sociedade de atores com parcelas de poder é
possível imaginar uma situação justa.”
BCG: O senhor diz que uma parte da justiça espacial é a
distribuição, ou a redistribuição igualitária de alguns bens públicos. Sabemos
que existem bens públicos que são muito caros, muito custosos; e não só isso,
há uma questão política também, de empoderamento dos cidadãos. Gostaríamos,
assim, de saber quais seriam os parâmetros para definir onde alocar esses bens
públicos. Como fazer uma escolha de localização que seja coerente com a justiça
espacial? E esses bens públicos que devem ser distribuídos são universais ou
variam de acordo com o país?
Jacques Lévy: A parte da contribuição de Rawls que me parece
muito importante é a vertente processual (procedural) da justiça, isto é, que
não se pode definir uma substância da justiça sem os atores de uma sociedade
bem definida. Então é possível que emerja uma universalidade do que é
considerado como justo, mas não se pode decretá-lo — só a posteriori e
comparativamente poderemos demonstrar que, por exemplo, as pessoas de uma
sociedade asiática têm a mesma concepção de justiça que os brasileiros. Então a
ideia do que é justiça e política de justiça é uma escolha… Nem tudo pode ser
feito ao mesmo tempo. A seleção do mais importante é claramente uma decisão,
uma comensuração que só a sociedade mesma pode fazer. Não se pode ter uma visão
transcendente. Acho que é isso que Rawls disse que me parece muito forte, muito
útil. Agora, no meu laboratório, temos uma equipe — um doutorando e um
cientista da computação — que estão fazendo um “serious game”, um jogo com
indivíduos na Suíça sobre a geografia dos hospitais. O jogo propõe várias
opções como, por exemplo, só um hospital, que é mais econômico, mais perto,
mais no baricentro, mais perto de tudo, mas que força as pessoas das periferias
a percorrerem maiores distâncias. Ou uma abordagem mais utilitarista, com
médias, ou uma abordagem max-min, tipo Rawls, que dá uma vantagem aos mais
desfavorecidos. E é uma abordagem muito rawlsiana no sentido que não é um
discurso de interesse pessoal das pessoas, elas são instituídas como políticos,
como tomadores de decisão, como se fossem dirigentes do país. O que Rawls chama
de “véu de ignorância”. Isto é, quando nós fazemos política, não é só um
“lobbismo” pessoal, é também construir um método que pensamos que será bom para
nós, mas também bom para a sociedade em geral. E isso é a lógica do jogo. Há
também a possibilidade de fazer planejamento territorial para aumentar a
eficácia do sistema, podendo dizer se seria melhor com a concentração ou a
dispersão da população sobre o território. Há também uma última possibilidade,
de dizer “quero mais dinheiro”, porque o jogo se joga sobre constante
disponibilidade financeira. Se eles consideram que é preciso ter mais dinheiro no
campo da saúde, é possível, mas deve-se dizer de onde será tirado o dinheiro.
Não sei se respondi à pergunta, acho que sim. Acho que as ciências sociais
experimentais devem ser muito mais desenvolvidas. Agora são essencialmente os
economistas, com teorias criticáveis, que fazem experimentação. A ideia é
construir uma situação in vitro mas que seja suficientemente realista para dar
informações úteis. Sobre a universalidade, acho que é uma questão complexa.
Porque a gente vem de uma herança filosófica ocidental em que a universalidade
é entendida como um absoluto espacial e temporal, e entra em contradição com a
história. E por isso, na tradição filosófica europeia, história é contingência
e universalidade das essências é necessidade. Não há como gerir esse par,
contingência x necessidade. É preciso destruí-lo. E considerar que a
universalidade — se essa palavra tem sentido — é uma construção histórica. Não
é nem uma essência metafísica, nem uma realidade natural, porque o conceito de
humanidade, por exemplo, não existia antes do século XIX. Por exemplo, o início
do pensamento humanitário, com os suíços, na batalha de Solferino em 1859, é
uma coisa completamente nova, dizer que, além da batalha, há direitos dos
feridos a ter uma assistência agora parece evidente, mas não era… Então eu
acredito na relevância do conceito de universalidade, mas só como construção
histórica. E, por exemplo, no âmbito da urbanidade, eu fiquei chocado com o
fato de que em quase todas as cidades do mundo os problemas são realmente muito
parecidos. Muito mais do que eu imaginava. Há processos de difusão, porque os
urbanistas ajudam uns aos outros e se escutam, mas também porque os mesmos
problemas geram as mesmas soluções. E uma abordagem culturalista do urbanismo
me parece totalmente irrelevante. Escrevi um artigo um pouco polêmico sobre
espaço público na Índia, se chama "Le passant unconsiderée"5.
O artigo teve a reação de uma indianista
que disse que “o conceito de espaço público não é o mesmo na Índia. Os
ocidentais [o] querem impor…” E ela dá como exemplo um vagão de trem reservado
às mulheres. Aqui também há vagões reservados, por razões de assédio às
mulheres.
“Fiquei chocado com o
fato de que em quase todas as cidades do mundo os problemas são realmente muito
parecidos. Muito mais do que eu imaginava.”
BCG: Temos no Rio de Janeiro também.
Jacques Lévy: É um sinal, é a prova de que um espaço público
não é possível nessas condições. Dizer que é legal para as mulheres entre si,
sem homens, tudo bem, mas não é espaço público.
BCG: Agora, passaremos para uma questão que é muito presente
hoje na Ciência Política e também na Geografia, que é o enfraquecimento dos
Estados nacionais como resultado da globalização, o que em contrapartida gera
um fortalecimento de outras unidades administrativas, como instituições
subnacionais ou supranacionais, como é o caso da União Europeia. Gostaríamos de
saber como você vê o papel de cada um desses níveis administrativos hoje no
combate pela conquista da justiça espacial e qual seria a contribuição da
Geografia para melhor compreender essa dinâmica de enfraquecimento do Estado
nacional e de fortalecimento de outros níveis administrativos.
Jacques Lévy: Agora na França houve uma reforma territorial
com diminuição 5 do número de regiões. Eu participei como pesquisador-cidadão
nesse debate sobre a reforma desejada. Na Europa, particularmente, mas também
na América Latina, com o peso do Estado nacional, — talvez na América Latina
foi mais o nacionalismo que o peso do Estado por si — o Estado providência (Estado
de bem-estar social) é muito forte. [Na Europa], no fim do século XIX, os
Estados negociaram a obediência (allégeance) geopolítica da população para
fazer guerra, dar o imposto de sangue contra o início do Estado social. É muito
claro na unidade alemã, em 1870, quando quase ao mesmo tempo Bismarck reforçou
o exército desse novo país que era o império alemão e iniciou todo um sistema
de redistribuição. Então isso fez um sistema muito bem encaixado, que é muito
difícil de quebrar, desfazer. Para a população pobre que se beneficiava mais
deste Estado social, a relação com o Estado geopolítico e com a escala do
Estado nacional era evidente, então na Europa, na constituição europeia, é
claro que os beneficiários do Estado social veem com muita reticência a perspectiva
de renegociar o contrato social em outra escala. Por isso não é evidente
ultrapassar a escala nacional. Mas apesar disso, é claro que vimos, com a
Constituição Europeia, mas também com a globalização em geral, uma
relativização da escala nacional. É claro que isso favorece a escala mundial e
as escalas subnacionais na França. E os movimentos de regionalização e governo
urbano me parecem ligados de uma certa maneira a essa relativização do
Estado-nação. No Brasil, a refederalização, por exemplo, seria uma aposta.
Porque o Brasil é um país federal, mas talvez com margem de progressão,
articulação dos níveis…
BCG: O que, aliás, é a próxima pergunta, sobre a federação.
Nessa linha que você vinha falando, sobre as novas formas de organização
política que vão surgindo, o senhor discute bastante em sua obra o federalismo
com seu papel no reconhecimento das várias escalas políticas. Gostaríamos de
entender quais as possibilidades que o senhor enxerga para uma aproximação da
noção de federalismo e como pensar a organização política considerando
fenômenos como a metropolização, que geram outras necessidades de organização
do poder.
Jacques Lévy: Quase todos os países democráticos e
desenvolvidos são organizados de um modo federativo, exceto poucos países europeus
— a França sendo a caricatura do Estado centralizador, que tem muitas
dificuldades para ultrapassar o imaginário espacial herdado do período imperial
(quando digo imperial quero dizer não o império exterior, mas o Estado nacional
como império). O Estado nacional francês foi um pequeno império com um centro
que conquistou países que não queriam fazer parte da França. Era uma conquista
colonial do século XII. E na Europa há países que não são oficialmente
federais, mas que estão avançando sob uma orientação ou inflexão federalista,
como Espanha e Grã- Bretanha. Parece-me lógico que em uma sociedade de atores
cada indivíduo pertença a várias sociedades. Na mesma escala há várias
sociedades, e há várias escalas. Então há pelo menos uma sociedade local, uma
sociedade regional, menos evidente — pra mim a região seria um espaço
biográfico. Imagino o estado de São Paulo: é evidente que a região é o estado
de São Paulo, que tem todas as oportunidades que um habitante pode desejar. Num
estado do Nordeste é menos evidente, porque o Brasil é um dos raros países onde
há grandes cidades, como Salvador, que têm um Produto Interno Bruto inferior à
média nacional. Isso é extremamente raro na escala mundial. Berlim é também uma
exceção, porque há a Berlim oriental, e é uma situação muito particular.
Pode-se discutir a real capacidade da capital do estado ser um recurso
suficiente para corresponder, responder positivamente à estratégia individual
dos habitantes, e por isso há migração dos nordestinos para São Paulo. Mas é
claro que deveria ser um objetivo, um alvo de uma política federal do espaço,
espaço justo… Uma região, nação… Que não existem em todas as partes —parece-me
que é preciso não universalizar o conceito de nação. Na África subsaariana isso
não tem sentido, e a obrigação pós-colonial de criar Estados piorou a situação.
O Estado africano que melhor funciona é um Estado que não existe: Somaliland,
um Estado não reconhecido, mas com uma rede de celular excelente (risos).
Democracia. Nenhuma violência. Incrível. Foi uma secessão da Somália, da parte
inglesa. Com a generalização da violência nos anos 1990, se auto-organizou, de
um modo para mim um pouco misterioso, mas o resultado é interessante,
realmente. Para mim, a melhor notícia que poderia acontecer aos Estados
africanos é o seu desaparecimento. Porque o Estado é um problema, não é a
solução. No Congo, por exemplo. Porque o Estado é uma presa para grupos — não
são guerras civis no Congo, porque uma guerra civil tem como aposta [obter] o
poder unificado — é só uma competição violenta entre grupos políticos, como é
possível com a eleição. As guerras na África são guerras com o Estado sendo o
alvo. O recurso concentrado é muito atraente; se o Estado não existisse, essa
presa não existiria. E poderíamos imaginar a construção de um Estado não tão
mau.
Flávia Grimm: Esse Estado que está lá é que é o problema, a
presa? Não o Estado em si?
Jacques Lévy: Exato. Não é o Estado em si, acho que o Estado
é útil. Mas esse tipo de Estado, nesse contexto, é mais nocivo do que útil. E
construções continentais, como o Mercosul — é interessante notar que até agora
a União Europeia, com muitas dificuldades, é a única construção realmente
política não violenta. Não sei como interpretar, como exceção ou como
prefiguração. O que vocês acham do futuro do Mercosul? Acham que será um real
governo com impostos, redistribuição…?
BCG: Talvez não o Mercosul, mas isso está sendo encaminhado
pela Unasul (União das Nações da América do Sul, com todos os países da América
do Sul), que é uma aproximação mais política, com integração dos exércitos… Mas
há um parlamento no Mercosul (Parlasul). A Unasul é um pouco mais ampla, é uma
tentativa de construção. É mais difícil no Brasil porque temos uma distância
maior dos outros países latino-americanos, há uma desigualdade interna bem
grande…
Jacques Lévy: Por exemplo, em um país como a Argentina,
completamente devastado pelo nacionalismo, é difícil imaginar uma aceitação da
supranacionalidade agora. A Europa não pode dar lições aos outros, mas é interessante
ver que é um processo muito lento, com meandros… E, finalmente, a sociedade mundo
precisa de um governo. Tem problemas globais, então precisa de soluções
globais.
“A sociedade-mundo precisa de um governo. Tem problemas globais, então precisa de soluções globais."
BCG: Para finalizar: em 2013, o tema da mobilidade urbana
esteve muito em evidência no Brasil, e na cidade de São Paulo está muito em
evidência esse debate, principalmente em relação ao uso do transporte coletivo
em detrimento do automobilismo. Também em relação à gratuidade do uso do
transporte coletivo, a “tarifa zero”. Em sua opinião como geógrafo, ou a partir
de um diálogo com outras ciências sociais, como é possível contribuir — por
meio, talvez, de conceitos como mobilidade, acessibilidade e afins — para o
debate sobre transporte público e justiça social nas cidades, hoje em dia?
Jacques Lévy: A substância da urbanidade é feita de ligações
fracas. Esse é um conceito inventado por um sociólogo estadunidense, Mark
Granovetter, em 19736, não a propósito do espaço, mas me parece
muito bem adaptável ao espaço. Há um mal entendido sobre espaço público, porque
muitas pessoas dizem que com o espaço público não se reduzem as desigualdades
sociais, econômicas. É verdade, mas não é a sua função, não é a sua utilidade.
O espaço público tem só o mérito de tornar visível a cidade a si mesma, aos seus
membros, e dar informações concentradas sobre escalas maiores que o espaço
mesmo; é um pequeno espaço que é como um concentrado de outros. Por isso é como
uma disponibilização de recursos, em geral gratuitos, que existem na sociedade,
e também uma confiança do indivíduo na sociedade.
Por exemplo, em 2005, na França, queimaram ônibus, queimaram
escolas, bens públicos. Foi terrível, e só nos subúrbios, guetos, subúrbios
homogêneos, não nos centros urbanos, onde também há pobres, mas com uma mistura
social muito mais importante. Quando você é um pobre em um bairro, em uma
região urbana mista, você não tem a mesma percepção da sociedade, das possibilidades,
das potencialidades, das virtualidades oferecidas pela sociedade. Então o
espaço público é também um recurso cognitivo, não só ético ou político, porque
a serendipidade me parece uma coisa muito mais importante do que podemos
imaginar, porque é o contrário da técnica. [A serendipidade] são todos os
processos cognitivos que não pressupõem uma predefinição do alvo. Porque techné
significa que você já conhece o alvo e inventa processos para atingilo. No caso
da serendipidade, não existe o alvo, e se descobre o alvo a posteriori. A
internet também é um extraordinário dispositivo serendipiano. Mas a cidade,
particularmente o espaço público, até agora não foi ultrapassada, porque é um
espaço multissensorial, que permite mobilizar todos os sentidos. Por isso me
parece muito importante, mais do que a
gratuidade do transporte. A gratuidade do transporte público não me parece tão…
É necessário que os transportes públicos sejam considerados como bens públicos,
isto é, uma coprodução com o usuário — que é a sociedade como um todo — mas,
para mim, a ética da liberdade é também uma ética da responsabilidade.
Parece-me que pagar um pouco é bom para mostrar que você é coproprietário do
sistema, que não é só um direito, como respirar. Até o ar é produzido — não é
um bom exemplo — mas… A ideia de que seria um dado sem contrapartida. Isso não
existe na sociedade. Uma sociedade justa não é uma sociedade na qual os ricos
pagam e o pobre não paga. Uma sociedade justa é aquela na qual todos pagam, com
a mesma taxa de esforço. É muito importante sair da visão caritativa. O
problema da esquerda no Brasil, mas também na Europa, é a herança católica, do
catolicismo caritativo, que é aristocrático, porque considera que os pobres não
têm deveres. A capacidade de ter deveres é uma competência humana, uma
característica da humanidade.
“A cidade, particularmente o espaço público, até agora não foi ultrapassada, porque é um espaço multissensorial.”
Flávia Grimm: Mas às vezes, dependendo do país, da cidade,
do lugar, a gratuidade pode ser um momento necessário até se alcançar outra
coisa — como são as cotas no Brasil.
Jacques Lévy: Sim, concordo também com o exemplo. Para
mulheres, para minorias étnicas, pode ser um momento. Mas a gratuidade do
transporte público…
Flávia Grimm: No Rio de Janeiro, as crianças que estudam em
escolas públicas têm o transporte gratuito. Aqui em São Paulo isso vai começar
também, o prefeito Fernando Haddad está tentando começar…
Jacques Lévy: Eu sou partidário da alocação universal — como
um salário, uma renda mínima, mas sem necessidade de trabalhar. Cada um recebe
a mesma quantidade de dinheiro, e se você trabalha, adiciona [a esse montante].
É muito interessante porque você evita a tematização do Estado social. Você
recebe uma renda — mas só uma — e então você não pode mendigar outras coisas.
Porque na Europa, particularmente na França, há um sistema muito complicado que
incita os pobres a estarem sempre em posição de pedir coisas.
Sobre o entrevistado Jacques Lévy: geógrafo pela
Universidade de Paris VII e doutor pelo Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), tendo desenvolvido uma tese intitulada “O Espaço
Legítimo”. Atualmente é professor na École Polytechnique Fédérale de Lausanne
(EPFL), na Suíça, onde coordena o laboratório Choros, realizando pesquisas em
temas como a urbanidade, a mundialização, a Europa e a Geografia Política. É
fundador e coordenador da revista EspacesTemps e autor de diversos livros,
entre eles “L'espace legitime” (1994) e “Le tournant géographique” (1999). Em
2013, publicou o livro “Réinventer la France: Trente cartes pour une nouvelle
Géographie” e lançou seu primeiro filme, “Urbanité/s”. * * * ü BCG:
http://agbcampinas.com.br/bcg Entrevista realizada em dezembro de 2014.
* Design gráfico editado
**Entrevistado em 22 de dezembro de 2014 por André Pasti,
Melissa Steda, Paula Rettl e Wagner Nabarro Agradecimento: Flávia Grimm
NOTAS
1 LÉVY,
Jácques (org.). Milton Santos, philosophe du mondial, citoyen du local. Paris:
Presses Techniques et Universitaires Romandes, 2007.
2 A revista EspacesTemps é um periódico criado em 1975 (sob
o nome de EspacesTemps Les Cahiers), de cuja equipe editorial Jacques Lévy
participou ativamente desde sua criação.
3 Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS),
instituição de pesquisa francesa.
4 LÉVY, Jacques. Réinventer la France: trente cartes pour
une nouvelle Géographie. Paris: Fayard, 2013.
5 LÉVY, Jacques. Le passant unconsiderée. EspacesTemps.net,
Travaux, 2011
6
GRANOVETTER, Mark. The strenght of weak ties. American Journal of Sociology, v.
78, n. 6, 1973.
FONTE: http://agbcampinas.com.br/bcg/index.php/boletim-campineiro
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