domingo, 31 de julho de 2016

PREVIDÊNCIA NO BRASIL



Especialistas desmentem números que anunciam rombo na previdência




Sobra dinheiro na previdência. Governo interino quer aprovar este ano contrarreforma que inclui ampliação da idade mínima para aposentadoria
Por Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz
“As pessoas não vão aceitar. Se elas tiverem acesso a essas informações, não podem aceitar isso”. A frase é da economista Denise Gentil, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A indignação que ela aposta que mobilizará a maioria da população brasileira é com a proposta de uma nova reforma da previdência, que o governo interino promete apresentar e aprovar no Congresso Nacional ainda este ano. As informações que alimentariam essa recusa são simplesmente a negação de tudo que você lê e ouve diariamente nos jornais: na pesquisa feita para sua tese de doutorado, Denise mostra, com dados oficiais, que o Brasil não tem nenhum rombo na previdência social. Mais do que isso: anualmente, sobra (muito) dinheiro no sistema público que hoje garante aposentadorias e pensões a 32 milhões de trabalhadores. Até agora, o ‘otimismo’ da pesquisadora em relação a uma ‘grita’ da população tem razão de ser: segundo a pesquisa ‘Pulso Brasil’, realizada pelo Instituto Ipso em junho deste ano, nos 70% de desaprovação do governo Temer, a forma como o interino vem atuando em relação à reforma da previdência é o que tem a maior taxa de rejeição — 44%.
O fato é que, como resposta à crise econômica, uma nova reforma da previdência vem sendo desenhada desde o ano passado. Ainda no governo da presidente Dilma Rousseff, foi criado o Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social, que produziu um relatório de diagnóstico mas não chegou a apresentar ou apreciar propostas. Após o afastamento temporário da presidente, o governo interino teve pressa: montou um novo Grupo de Trabalho, com a participação de quatro centrais sindicais — Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) —, além da Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para encaminhar o tema. Na primeira reunião, o governo interino apresentou o seu diagnóstico. Na segunda, as centrais entregaram propostas para aumentar as receitas da previdência. No dia 28 de junho, aconteceu o terceiro e último encontro. Nele, os ministros interinos encaminharam a substituição desse grupo por outro mais reduzido, agora com a presença de um representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que até então não vinha participando das negociações, um integrante do governo interino e um porta-voz dos trabalhadores (Dieese). Antecipando medidas de ‘economia’ que atingem diretamente a previdência, o governo interino emitiu, no dia 7 de julho, um Medida Provisória (nº 739/2016) que dificulta ainda mais o acesso ao auxílio-doença e à aposentadoria por invalidez. Entre as mudanças implementadas, está a interrupção automática do benefício no prazo de 120 dias, obrigando o segurado a requerer a prorrogação junto ao INSS, e a criação do Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade, que significará um “incentivo” no valor de R$ 60 pago pelo governo aos médicos por cada perícia realizada além da “capacidade operacional ordinária”. Antecipando o resultado das perícias que ainda serão feitas, o governo já calcula que essas medidas gerarão uma economia de R$ 6,3 bilhões anuais, às custas da diminuição de benefícios dos trabalhadores.
A proposta oficial de reforma da previdência, no entanto, não tinha sido apresentada até o fechamento desta matéria. Mas isso é apenas um detalhe. Desde o seu programa antecipado de governo até as muitas declarações de Henrique Meirelles, ministro interino da fazenda, e do próprio Temer, não é segredo para ninguém que, entre outras coisas, o governo provisório quer instituir (e aumentar) a idade mínima para a aposentadoria e restringir as regras da previdência rural. O argumento é que, em nome do ajuste fiscal, são necessárias medidas estruturais que reduzam os gastos do Estado. E a previdência aparece destacada como o maior deles, responsável por um rombo que, segundo previsões do governo interino, deve chegar a R$ 136 bilhões este ano. Esses números, no entanto, são desmentidos por pesquisadores e entidades que se dedicam ao tema.
Contas que não batem
Por mais que a matemática seja considerada uma ciência exata, quando o assunto é a situação da previdência no Brasil, há muito tempo que dois mais dois não têm dado quatro. Lidando com os mesmos dados primários, governos (o interino e o da presidente Dilma) e estudiosos chegam a resultados diametralmente opostos. Para se ter uma ideia, enquanto os economistas do governo provisório apontam em 2015 um déficit de R$ 85 bilhões, no mesmo ano as planilhas da Anfip anunciam um superávit de R$ 24 bilhões. E a comparação com os anos anteriores mostra que, em função do aumento do desemprego, que diminui a arrecadação, esse saldo positivo foi bem menor do que os R$ 53,9 bilhões que sobraram em 2014 e os R$ 76,2 bilhões de 2013, anos em que, do lado do Planalto, já se falava em déficit. “O governo faz um cálculo muito simplório. De um lado, ele pega uma das receitas, que é a contribuição ao INSS, dos trabalhadores, empregadores, autônomos, trabalhadores domésticos, que é o que a gente chama de contribuição previdenciária. Do outro, pega o total do gasto com os benefícios: pensão, aposentadoria, todos os auxílios — inclusive auxílio doença, auxílio-maternidade, auxílio-acidente — e diminui. Então, isso dá um déficit”, explica Denise Gentil.
A primeira vista, pode parecer um erro matemático. Isso porque a Constituição Federal estabelece, no artigo 194, que, junto com a saúde e a assistência social, a previdência é parte de um sistema de seguridade social que conta com um orçamento próprio. Esse orçamento, por sua vez, é alimentado por tributos criados especificamente para esse fim. Assim, diferente do que os governos fazem, na parcela de cima da conta da previdência — a receita — devem ser incluídas não apenas as contribuições previdenciárias mas também recursos provenientes da Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL), Contribuição sobre o Financiamento da Seguridade Social (CSLL) e do PIS-Pasep. Para se ter uma ideia da diferença que esse ‘detalhe’ faz, contadas apenas as contribuições previdenciárias, a receita bruta da previdência em 2014 foi de R$ 349 bilhões para pagar um total de R$ 394 bilhões de benefícios. Essa conta, que Denise caracteriza como “simplista”, mostra um déficit de R$ 45 bilhões — ainda assim muito menor do que o anunciado pelo governo. Quando, no entanto, se considera a receita total, incluindo os mais de R$ 310 bilhões arrecadados da CSLL, Cofins e PIS-Pasep, esse orçamento pula para R$ 686 bilhões.
Talvez você esteja supondo que o dinheiro que sobrou no orçamento da seguridade social mas faltou no da previdência tenha sido usado nas outras duas áreas a que, constitucionalmente, ele se destina: saúde e assistência. Mas essa é uma meia verdade. A soma dos gastos federais com saúde, assistência e previdência totalizou, em 2014, R$ 632 bilhões. Como o orçamento da seguridade foi de R$ 686 bi, no final de todas as receitas e todas as despesas, ainda sobram R$ 54 bilhões. E como esse saldo se transforma em déficit? Com uma operação simples: antes de destinar o dinheiro para essas áreas, o governo desvia desse orçamento 20% do total arrecadado com as contribuições sociais, o que, em 2014, significou um ralo de R$ 60 bilhões.
Na prática, isso significa que o orçamento que a Constituição vinculou, governos e parlamentos vêm desvinculando todos os anos, desde 1994. Trata-se da Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo aprovado e renovado no Congresso a cada quatro anos que autoriza os governos a usarem livremente parte da arrecadação de impostos e contribuições, sempre sob o argumento de que é preciso desengessar o orçamento para melhor administrar o pagamento da dívida pública. Ela acaba de ser mais uma vez prorrogada no Congresso, agora por um período mais longo (oito anos e não quatro) e com uma alíquota maior, de 30%. Segundo cálculos da Anfip, em 12 meses isso significará o desvio de cerca de R$ 120 bilhões arrecadados por meio de contribuições sociais, que deveriam alimentar o caixa da seguridade social. “Se a previdência é deficitária, o governo vai retirar 30% da onde? Como um sistema que está à beira de quebrar pode ceder 30% para outros fins que nem se precisa justificar?”, provoca Sara Graneman, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e pesquisadora do tema.
Por mais contraditório que seja, a DRU fornece o amparo legal para o cálculo dos governos, que contraria a garantia prevista na Constituição. Mas aqui é necessário cautela. Primeiro porque nem com a DRU o “rombo” chega perto do que os governos e jornais alardeiam. Segundo porque, mesmo com a DRU, o orçamento continuaria positivo se os governos não retirassem outra bolada do caixa da previdência e da seguridade por meio de isenções fiscais, ou seja, tributos que deixam de ser cobrados das empresas, como forma de ‘incentivo’. Agora mesmo em 2016, ano em que a reforma da previdência vem sendo debatida como prioridade tanto pelo governo eleito afastado quanto pelo governo interino, a Lei Orçamentária Anual, enviada pelo Executivo e aprovada pelo Congresso, prevê R$ 69 bilhões de renúncia apenas dos recursos da previdência, sem contar o conjunto das contribuições que financiam toda a seguridade social. A simples decisão de não abrir mão desses recursos faria com que a previdência fechasse as contas no azul. “Você diz que a previdência tem um déficit de R$ 85 bilhões mas renuncia ao equivalente a 3% do PIB de receita? E depois quer que a sociedade aceite uma reforma da previdência?”, questiona Denise Gentil.  Isso sem contar a sonegação fiscal que, segundo cálculos do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, impediu que R$ 453 bilhões chegassem aos cofres públicos no ano passado. Em outras palavras: o déficit é produzido, não por fórmulas matemáticas, mas por opções políticas. “Ninguém discute neste país os mais de R$ 501 bilhões que foram bastos no ano passado com os juros da dívida. Ninguém discute os mais de R$ 200 bilhões que foram gastos só para segurar a taxa de câmbio. Mas discute-se o fato de que 70% dos benefícios da previdência são de até dois salários mínimos. É uma loucura!”, diz Denise. Sara completa: “Não é a estrutura de financiamento nem a pirâmide etária que têm problemas. O problema é a retirada de recursos. Essa é a maior pedalada que o Brasil tem”.
Concepções que não batem
Denise é enfática em afirmar que “não faz sentido falar em déficit da previdência”. E, ao dizer isso, ela não está apenas repetindo que as contas do governo estão erradas. “Trata-se de um princípio filosófico”, explica, defendendo a concepção que orientou o capítulo de seguridade social da Constituição. “A ideia é nós termos um sistema de proteção social que abrange as pessoas na velhice, na adolescência, na infância…”, exemplifica, para justificar por que essas áreas, que atendem a necessidades sociais, têm que ser geridas pela demanda e não pela oferta de recursos disponíveis.
O grande salto da Constituição foi compreender que, como sistema voltado a garantir direitos, a seguridade deveria ser “financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta”. O envelhecimento da população e a mudança na pirâmide etária brasileira, por exemplo, que têm sido usados como um dos principais argumentos em defesa de uma nova reforma, já estavam previstos no princípio que regeu esse capítulo da Constituição. Essa é uma das razões para que se tenha um orçamento composto não só por contribuições dos próprios trabalhadores e seus empregadores, mas também por tributos pagos pelas empresas em geral. A idéia era exatamente garantir sustentabilidade mesmo quando a população de idosos, que usufrui da aposentadoria, superasse a população economicamente ativa, que contribui para ela. “A Constituição de 1988 foi um raio em céu azul. Porque a partir dali o que houve foi uma dilapidação dos princípios constitucionais, foi a ilegalidade sendo patrocinada pelo Estado para restringir direitos sociais”, lamenta Denise, que completa: “É uma disputa antiga e será eterna porque é uma disputa de classe”.
Problemas do envelhecimento?
De fato, embora não tenha apresentado uma proposta oficial, a medida mais alardeada na reforma da previdência prometida pelo governo interino é o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria. O argumento: a população brasileira está envelhecendo e, em 2040, essa mudança da pirâmide vai tornar o sistema insustentável. “Acho um certo excesso de zelo. Os governos não conseguem prever a próxima crise e querem nos convencer do que vai acontecer em 2040?”, ironiza Sara Granemann.
O argumento da pressão demográfica também não é novo. O relatório elaborado pelo grupo técnico instituído pelo governo Dilma, que discutiu o tema até pouco antes do afastamento da presidente, informa que, em 2015, a expectativa de vida do brasileiro era de 75,4 anos e que, em 2042, esse tempo médio de vida subirá para 80,07 anos. “O aumento da longevidade da população demanda ações específicas para a sustentabilidade da seguridade social”, conclui o relatório. Sara ressalta que essa mudança etária deveria ser comemorada e não servir de pretexto para se retirar direitos da população. “O aumento da expectativa de vida é um feito da humanidade no século 20. Se elevar para todo mundo a aposentadoria para 65 anos, por exemplo, você terá pessoas se aposentando a menos de dez anos da morte”, alerta. Declarações mais recentes do Palácio do Planalto, no entanto, dão conta de um cenário ainda pior: matéria publicada no jornal O Globo no último dia 27 de junho afirma que o “governo Temer quer permitir aposentadoria só a partir dos 70 anos”. A notícia é que o projeto que está sendo elaborado proporia idade mínima de 65 anos para agora, ampliando para 70 daqui a 20 anos. “O cálculo é o quanto mais perto da morte o direito da aposentadoria deve chegar”, denuncia Sara.
Vilson Romero, presidente da Anfip, explica que a primeira desmistificação que precisa ser feita é exatamente em relação a essa expectativa de vida. E aqui o pulo do gato do discurso governamental está em divulgar apenas o cálculo da “média”. “Como estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país como o Brasil, onde no campo se morre aos 55 anos e no Rio Grande do Sul há quem viva até os 85, 90 anos?”, questiona, destacando a maioria dos brasileiros que vivem sob condições precárias de trabalho morre antes de fazer jus à aposentadoria.
Mas os especialistas ouvidos pela Poli alertam ainda para uma segunda desmistificação necessária nessa discussão. “Já existe idade mínima”, diz Sara. Além dos auxílios (doença, maternidade, entre outros), pensão por morte e benefícios acidentários e assistenciais, o Regime Geral da Previdência Social engloba três modalidades de aposentadoria: por invalidez, idade e tempo de contribuição. Por definição, não cabe restrição de idade para as aposentadorias concedidas a pessoas que, vitimadas por doenças ou acidente, tenham ficado impedidas de trabalhar. A aposentadoria por idade já estabelece o mínimo de 60 anos para mulheres e 65 para homens – nesse caso, o objetivo de uma nova reforma seria jogar a aposentadoria mais para frente. A modalidade por tempo de contribuição permite que o trabalhador se aposente em qualquer idade, desde que contribua durante 30 anos, se for mulher, ou 35 anos no caso dos homens. É nessa modalidade que poderia estar concentrado o contingente de trabalhadores que conseguem o benefício aos 55 anos – média que tem sido alardeada pelos governos como a idade em que os brasileiros se aposentam. A partir de uma medida aprovada no ano passado, o trabalhador tem a alternativa de se aposentar quando a soma do seu tempo de contribuição (30 ou 35) com a idade resultar em 85 ou 90 para mulheres e homens, respectivamente. A cada dois anos, acrescenta-se um ponto nesse resultado final, de modo que, em 2026, a soma tenha que dar  90 e 100.
Além disso, mais uma vez, os números desmentem o argumento: dos 32 milhões de benefícios garantidos pela previdência brasileira, apenas 5,4 milhões ou 16,6% estão nessa modalidade. O número é baixo por uma razão muito simples: com o alto grau de informalidade e instabilidade do mercado de trabalho brasileiro, são poucas as pessoas que conseguem ter vínculo empregatício que gere contribuição por 30 ou 35 anos seguidos. Isso significa que a maioria da população brasileira se aposenta com uma idade muito maior do que aquela que é divulgada pelos defensores da reforma previdenciária. Trata-se, mais uma vez, de uma ‘matemática’ particular: segundo Romero, mesmo não fazendo o menor sentido estabelecer idade para aposentadoria por invalidez ou pensão por morte, por exemplo, esses benefícios são contabilizados pelo governo no cálculo que produz a média de 55 anos.
Velhice e desenvolvimento
Mas de pouco vale a desmistificação desses números diante da afirmação repetida de que, com a mudança da pirâmide etária, o sistema da previdência vai entrar em colapso em algumas décadas. “Não vai acontecer nada disso”, garante Denise Gentil, completando: “O discurso demográfico do envelhecimento populacional é um discurso do mercado financeiro”. Como economista, seu argumento é que não se pode fazer previsões para o futuro sem levar em conta uma variável que as análises “catastrofistas” dos governos sempre ignoram: a produtividade. “Quando você vê as planilhas do ministério da previdência, todas as variáveis estão projetadas para o futuro: massa salarial, massa de benefícios, inflação, taxa de crescimento do PIB… Só não tem a produtividade”, descreve. E explica: “Se tivesse esse cálculo, ficaria claro que, no futuro, embora existindo em menor número, cada trabalhador vai produzir muito mais do que se produz hoje. E que, portanto, essa capacidade produtiva maior vai gerar produto e renda no montante suficiente para pagar os salários dos ativos e os benefícios dos inativos”.
Diante de “uma produção gigantesca”, diz, a preocupação deve ser garantir um mercado consumidor à altura. E é aqui que entram os aposentados. “O envelhecimento da população brasileira não vai ser problema, mas solução”. Desde que eles tenham a aposentadoria garantida, claro.
Aposentadoria no campo e salário mínimo
Outro ponto que tem sido apontado pelos ‘especialistas’ governamentais é a necessidade de se mudarem as regras da aposentadoria dos trabalhadores rurais. Hoje, a Constituição permite aos trabalhadores do campo se aposentarem cinco anos antes dos urbanos, sem exigência do tempo mínimo de contribuição, recebendo um salário mínimo. Segundo Denise Gentil, as discussões da reforma vinham cogitando não só igualar a idade de aposentadoria como condicioná-la à contribuição, ou seja, equiparar com os critérios da previdência urbana. “Como se você tivesse condições de comparar essas duas realidades, do trabalhador rural e urbano, neste país”, contesta.
De fato, considerado apenas o fluxo de caixa entre a receita e a despesa previdenciária, sem levar em conta os recursos da seguridade social como um todo, o subsistema de previdência rural apresenta um déficit que, em 2015, foi de R$ 90,0 bilhões. Romero explica que, de um lado, esse desequilíbrio expressa o impacto de uma medida muito positiva para os trabalhadores: a valorização do salário mínimo na última década que, “obviamente deu uma valorizada muito grande no benefício rural”. Mas o problema, na sua avaliação, está na falta de contribuição de um setor central da economia no campo: o agronegócio. Hoje, as empresas desse ramo são isentas de contribuição previdenciária sobre o que é exportado e pagam uma alíquota de 2,6% sobre a receita bruta da comercialização interna. Como regra geral, os outros setores pagam 20% sobre a folha de pagamento. “Isso tem sido contestado pela CNA [Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil], pelo ministério da agricultura, mas eu acho que é chegada a hora de o agronegócio, que tem sido tão incentivado, ser incentivado também a contribuir um pouco mais para o equilíbrio das contas da previdência rural”, analisa Romero. Essa foi uma das dez propostas formalmente entregues pelas centrais sindicais que compuseram o GT ao governo interino.
Mas já há reação. Matéria do jornal O Estado de São Paulo no dia 23 de junho informa que uma das “alternativas” consideradas pelo governo interino na proposta de nova reforma da previdência é cobrar a contribuição do INSS das empresas do agronegócio. Na reportagem, no entanto, Roberto Brant, ex-ministro do governo Fernando Henrique, atual consultor da CNA e coordenador do programa de Michel Temer para a área — tendo sido o principal cotado para o ministério da previdência, caso ele não tivesse sido extinto — classificou essa medida como “nonsense”, argumentando que a reforma precisa priorizar a redução das despesas e não o aumento de receita.
E não foi só sobre a previdência rural que a valorização do salário mínimo destacada por Romero teve impacto. Por isso mesmo, uma das medidas que vem sendo anunciada desde o programa antecipado do governo interino é impedir que os benefícios previdenciários e assistenciais continuem tendo reajustes que acompanhem o salário mínimo. Num texto que, entre outras coisas, ignora o sistema de financiamento da seguridade social, que garante um caixa próprio, o programa do PMDB defende: “É indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício do valor do salário mínimo. (…) Os benefícios previdenciários dependem das finanças públicas e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do PIB”. Para Sara Granemann, inclusive, essa é a diferença substancial que se pode destacar entre as propostas que circulavam no governo Dilma e as que se cogitam agora, durante o governo interino. “Para Temer, há uma fúria de desvincular e criar um outro índice, sem dizer qual. Se Dilma voltar, talvez não faça isso”, arrisca, ressaltando, no entanto, que, embora nunca tenha aparecido como proposta, no governo petista o impacto dessa indexação sempre era apresentado como problema.
Para que tudo isso?
Para os especialistas ouvidos pela Poli, tudo isso aponta um claro processo de privatização e financeirização da previdência brasileira, que traz muitos riscos para os trabalhadores. Denise explica que o que se chama de previdência privada é, na verdade, o investimento num fundo que aplica no mercado financeiro o dinheiro pago pelos trabalhadores. “Não é previdência, é investimento, com custo alto e retorno baixíssimo”, denuncia Denise. Diferente da garantia que a previdência social oferece, aqui pode-se ganhar ou perder. O caso do Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios, é exemplar. Neste exato momento, o fundo acumula um rombo de quase R$ 7 bilhões que, segundo análises publicadas na grande imprensa, se devem principalmente a perdas em investimentos de risco, por exemplo, em títulos de outros países e nas empresas de Eike Batista. Uma solução proposta foi aumentar em 23 anos a contribuição de todos, inclusive aqueles que já teriam direito ao benefício. Segundo matéria do jornal O Globo de março deste ano, isso significaria inclusive uma redução de 18% no contracheque dos já ‘aposentados’.
Segundo dados da Anfip, em fevereiro de 1997, o Brasil tinha 255 fundos de pensão que movimentavam R$ 72 bilhões; em dezembro de 2015, são 308 fundos com uma reserva de R$ 685 bilhões. Isso talvez explique por que, na avaliação de Denise, a proposta de reforma da previdência nada tenha a ver com fluxo de caixa: trata-se, na verdade, de um amplo acordo entre Estado e mercado financeiro, que envolve o pagamento dos juros da dívida pública e o fortalecimento dos fundos de pensão, que se tornaram um verdadeiro nicho de mercado para o grande capital. “Os governos começam a divulgar que a previdência está quebrada porque as pessoas vão se sentir inseguras em usar o serviço público e vão correr para o banco fechar um plano privado. Com esse discurso, o governo tem empurrado a população para o colo dos bancos”, explica Denise, que alerta: “Você tem que se perguntar a quem serve essa reforma”.

in EcoDebate, 22/07/2016

Colaboração: LVHedel

quinta-feira, 28 de julho de 2016

PEPE MUJICA



DEMOCRACIA

“Nossa luta não é só por democracia, mas por outra civilização”, diz Mujica

Para o senador e ex-presidente do Uruguai, a mudança cultural deve ser o motor das novas gerações.
Camilla Hoshino, Carolina Goetten e Gibran Mendes
De Curitiba (PR), 

“Fomos transformados em uma máquina de consumismo. A acumulação capitalista necessita que compremos, compremos e gastemos e gastemos. Vendem mentiras até que te tiram o último dinheiro. Essa é a nossa cultura e a única saída é a contracultura”, afirmou o ex-presidente do Uruguai - Créditos: Henry Milleo
“Fomos transformados em uma máquina de consumismo. A acumulação capitalista necessita que compremos, compremos e gastemos e gastemos. Vendem mentiras até que te tiram o último dinheiro. Essa é a nossa cultura e a única saída é a contracultura”, afirmou o ex-presidente do Uruguai / Henry Milleo
Para o senador e ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, o atual contexto político do Brasil e da América Latina, com o avanço das forças de direita, não pode ser visto com desânimo. “Nós aprendemos muito mais com as derrotas do que com as vitórias. É preciso levantar e começar de novo”, declarou Mujica durante o Seminário Democracia na América Latina, que reuniu milhares de pessoas nesta quarta-feira (27) em Curitiba.
Segundo o senador, a democracia está em risco no mundo inteiro devido a duas questões centrais: a concentração da massa financeira nas mãos dos ricos e a crescente desigualdade na Terra. “Nunca o homem teve tantos recursos e meios científicos e técnicos para erradicar a fome e a miséria dos povos", disse o ex-presidente, enfatizando que o grande problema não é ecológico, mas político. “Temos 80 senhores que possuem o mesmo que outros 3 bilhões de habitantes”.
O ex-presidente destacou que, antes de mais nada, é preciso mudar a cultura. “Sem mudar a cultura não muda nada”, sentenciou. Como cultura, entende-se, a mentalidade de vida. Deixar o consumismo de lado, promovendo principalmente a vida e a felicidade humana como centro da sociedade. 
Mujica opinou ainda que o crescimento econômico só se justifica se ocorrer para o desenvolvimento da felicidade humana. “Fomos transformados em uma máquina de consumismo. A acumulação capitalista necessita que compremos, compremos e gastemos e gastemos. Vendem mentiras até que te tiram o último dinheiro. Essa é a nossa cultura e a única saída é a contracultura”, afirmou.

Democracia em foco

Organizado pelo laboratório de Culturas Digitais, projeto do Setor de Educação da UFPR, o evento ocorreu com o objetivo de fomentar o debate sobre a ameaça aos regimes democráticos na América Latina, a partir do atual contexto de golpe institucional no Brasil.
Sobre esse assunto, na opinião de Pepe Mujica, é necessário pensar um outro modelo de democracia. “A democracia do futuro não pode ser a democracia de gente sob medida, de campanhas e propaganda para satisfação do mercado. Aquela que vende um candidato político como se fosse pasta de dente. Se a política é isso estamos fritos”, criticou.
“A democracia é uma luta permanente, não é o conformismo. E o nosso papel é lutar por um mundo melhor. O que vale é a vida”, finalizou.
Foto: Leandro Taques

Convidados 

Participaram da mesa, junto com Mujica, a integrante da Rede de Mulheres Negras do Paraná e Secretária de Direitos Humanos da ABGLT, Heliana Hemeterio dos Santos; o Doutor em História pela FFLCH-USP, Gilberto Maringoni; a Mestre em Educação pela UFPR e professora da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), Lívia Morales; e a pesquisadora na área de políticas educacionais e movimentos sociais da UFPR, Andrea Caldas.
Durante sua exposição, Gilberto Maringoni criticou incisivamente a política de Estado mínimo proposta pelo governo interino de Michel Temer. De acordo com ele, as propostas de cortes orçamentários nos programas sociais representam uma opção política. "É o livre mercado e ele só tem uma alternativa: o ajuste fiscal e reduzir direitos sociais. Não tem saída porque estamos sem dinheiro”, disse ele, reproduzindo com ironia o discurso majoritário do atual Governo Federal.
Hemeterio questionou a efetividade da construção democrática em um país no qual, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto. “A democracia latino-americana não inclui o povo negro. Não podemos falar de democracia a partir do nosso umbigo, sem incluir as mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres pobres", avaliou. 
A professora Livia Morales, da UNILA, destacou a necessidade de respeitarmos e valorizarmos as diversidades. “A política é o lugar da diferença. Quem gosta de tudo igual ao mesmo tempo é fascista. Precisamos aprender a lidar com as diferenças, conversar com as pessoas”, afirmou.
As falas foram recheadas de palmas e gritos por “fora Temer” e “fora Beto Richa”.

Foto: Leandro Taques

Tecnologia e participação social
Apesar de não ser aberto para perguntas, o seminário utilizou a tecnologia para fomentar o debate. Por meio da ferramenta “Delibera”, construída pelo Laboratório de Culturas Digitais, os participantes puderam enviar perguntar e votar nas mais interessantes.
O esforço de desenvolver ferramentas e metodologias de participação é um dos principais focos do projeto. Segundo o coordenador executivo do Laboratório, João Paulo Mehl, as pessoas precisam se apropriar do conhecimento gerado e também gerar conhecimento. Ele reforça que a tecnologia não dever ser tratada apenas sob o ponto de vista do especialista, mas de todos, desde os povos indígenas, aos programadores, designers e quilombolas.
Nesse sentido, a tecnologia utilizada e desenvolvida pelo Laboratório, por meio dos softwares livres, é aberta para ser revista, aprimorada e replicada por qualquer pessoa. Um dos exemplos de utilização da plataforma “Delibera” se dá no Conselho Nacional de Política Cultural, onde a ferramenta permite dar transparência e elaborar metodologias de decisões coletivas para o aprimoramento e fortalecimento de políticas publicas e programas.
Para Mujica, as tecnologias "não têm moral”. Portanto, caberá aos homens e mulheres da nova geração fazer o bom uso delas. “A evolução tecnológica, gostemos ou não, irá mudar a dinâmica social”, lembrou, afirmando que a interação proporcionada pelos meios digitais promove outro tipo de integração, que pode fazer com que a democracia no futuro seja muito mais desenvolvida do que a atual democracia representativa.

Fonte: https://brasildefato.com.br/2016/07/27/nossa-luta-nao-e-so-por-democracia-mas-por-outra-civilizacao-diz-mujica/

quarta-feira, 27 de julho de 2016

MÍDIA DIGITAL




MÍDIAS DIGITAIS, MOBILIZAÇÃO POPULAR E A URGÊNCIA DE ORGANIZAR A OCUPAÇÃO DA INTERNET POR AGENTES TRANSFORMADORES






Bruno Lima Rocha*
Durante os primeiros 10 anos de difusão da internet civil e de fins comerciais, tivemos no meio da comunicação uma estéril polêmica entre integrados e críticos. Quem fazia a apologia ou a integração total da rede, afirmando que todos poderiam ser mídia, em determinado momento, esqueceu-se de um conceito fundamental em economia política, o de Hora Trabalho (HT). Assim, a ampliação da internet e a precarização das rotinas produtivas do jornalismo levaram a um maior número de pessoas produzindo conteúdos jornalísticos sem a devida remuneração.
O primeiro diferencial entre o peso das empresas capitalistas de mídia e a cidadania ou militância jornalística está justamente na capacidade de liberar financeiramente uma redação para produzir conteúdos digitais. É como uma escala de produção, entre uma fábrica de pães com distribuição ampla, uma tradicional padaria de bairro e o panificador artesanal, que faz pão duas vezes por semana e vende entre vizinhos e parentes. A escala devida para disputar com os conglomerados de comunicação e manter a democracia seria a de montar, através de plataformas digitais, uma série de “padarias de bairro”, ou enxutas redações semiprofissionais, mas com gente liberada para realizar, em determinado número de horas, o melhor trabalho possível de comunicação social.
Se a crítica vale para os apologistas, esta se volta também para os hipercríticos do papel da internet. Questionava-se seu efeito mobilizador no Brasil até chegarmos ao ano de 2013 e observarmos, ao vivo, a fantástica capacidade de atingir quem não está organizado.  Observamos também o efeito desorganizador das empresas de mídia, recordando as três datas de junho de 2013 quando houve o chamado “sequestro da pauta” pelo Estadão, Folha e a Globo, interferindo na convocatória e levando uma multidão a fazer algo próximo da catarse coletiva. Nota-se também a diferença nas formas de convocação para os atos do Bloco de Lutas, onde uma coordenação consistente e a devida aliança tática entre organizações e correntes da esquerda impulsionou uma vitória popular ímpar em Porto Alegre, abrindo margem para conquistas semelhantes em outras cidades e políticas públicas na sequência.
A conclusão é quase óbvia. Através de uma economia de resistência ou de forma cooperativada, se a esquerda restante no Brasil quiser atingir uma massa de pessoas abaixo de 30 anos de idade, deve, necessariamente, constituir redações semiprofissionais a partir de plataformas digitais. 
*Professor de ciência política, relações internacionais e jornalismo (www.estrategiaeanaliseblog.wordpress.com).

Fonte: http://jornalismob.com/2016/07/21/midias-digitais-mobilizacao-popular-e-a-urgencia-de-organizar-a-ocupacao-da-internet-por-agentes-transformadores/

EDUCAÇÃO E ENSINO





“Escola sem Partido”: é pelo conteúdo e não pela Educação


24/jul/2016, 13h59min


“O principal objetivo deste projeto é acabar com a gestão democrática, com a liberdade, com a autonomia e com o pensamento crítico nas escolas”.
Bruno Saldanha (*)
Ninguém quer ver as escolas funcionando como diretórios partidários. Tampouco as pessoas querem escolas hasteando bandeiras de partidos. Isso é consenso, acredito. É justamente por esse motivo que o nome “Escola Sem Partido” é tendencioso (fácil “de pegar”) e busca, com isso, ludibriar e ganhar o apoio da população. Acontece que o PL 867 de 2015 proíbe práticas de doutrinação política e ideológica em salas de aula, sem esclarecer o que seriam tais práticas. No entanto, é possível perceber o que realmente este projeto de lei pretende, ao fazermos uma breve análise sobre quem são os seus grandes apoiadores: pessoas ligadas ao PSDB, PP, PMDB, DEM e toda essa turma que bem conhecemos.
O tal “Escola Sem Partido”, que prefiro chamar de “Lei da Mordaça nas Escolas”, prevê que a educação nacional terá como princípio, além de outros, o “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Isso viola o princípio posto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de que o ensino será ministrado com base no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e no respeito à liberdade e apreço à tolerância. Na justificativa do PL, fica muito claro o teor conservador – religioso – quando afirma que os livros didáticos e os professores praticam doutrinação, especialmente moral sexual. E logo afirma que a moral é, em regra, inseparável da religião. Mas aí encontramos a primeira contradição: se a convicção da família está de acordo com todas as formas de amor, inclusive esta família possa ter um jovem filho homossexual que frequente uma escola, a educação escolar deve ser ministrada em consonância com a concepção desta família? Me parece que não é isso que o projeto estabelece. Ao contrário…
Afirmam que o ambiente de doutrinação gera bullying político e ideológico, resultando em agressão física aos alunos que assumem uma postura diferente daquela dominante. Ao mesmo tempo, os defensores da Lei da Mordaça não querem escolas abordando as questões de gênero. Esquecem (na verdade ignoram) que a maior parte do bullying e das agressões físicas aos alunos são sofridas justamente por questões de desrespeito à liberdade, às identidades de gênero, enfim, à diversidade.
Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, os professores devem apresentar as principais versões e perspectivas a respeito. As principais versões são aquelas já manjadas: o Brasil foi descoberto; o patrão ajuda o empregado ao lhe garantir um emprego; família é um homem, uma mulher e os filhos (comendo pão quentinho com margarina); o capitalismo oferece “grandes possibilidades”; o comunismo representa um grande risco; e por aí vai. E se o professor disser o contrário disso (podendo contrariar a moral da família)? É doutrinação política e ideológica? Punição nele! Inclusive, no site do projeto “Escola Sem Partido” está disponível um link com o nome “Flagrando o Doutrinador” para que a população possa denunciar estes professores! E para ajudar a população, está disponível uma cartilha com todas as dicas e um texto base para que seja escrita a denúncia. Não bastasse isso, deverão ser afixados cartazes nos espaços escolares, onde possam ser lidos pelos estudantes e professores.
Fica evidente que o principal objetivo deste projeto é acabar com a gestão democrática, com a liberdade, com a autonomia e com o pensamento crítico nas escolas, princípios fundamentais para a redução das desigualdades e para a democracia. Na verdade busca manter a escola como um espaço de reprodução dos princípios e valores dominantes, uma escola que não respeita e, menos ainda, empodera os estudantes. Em resumo, é um projeto que não se interessa pela péssima remuneração dos professores, pelas precárias condições estruturais das escolas, tampouco importa perceber que a Escola é do século XIX, os professores do século XX e os alunos do século XXI. O que está em jogo não é a Educação, mas o conteúdo que as escolas podem abordar.
(*) Bruno Saldanha é estudante de Ciências Sociais e bolsista em Políticas da Educação Básica pela UFRGS.
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/escola-sem-partido-e-pelo-conteudo-e-nao-pela-educacao-por-bruno-saldanha/

terça-feira, 26 de julho de 2016

MULHERES NEGRAS



Representatividade importa: Brasil de Fato lança especial

Dia Internacional da Mulher Negra Afro-Latina e Caribenha e o Dia Nacional da Mulher Negra é celebrado hoje

Brasil de Fato, 

Brasil de Fato - Créditos: Arte: Gabriela Lucena
Brasil de Fato / Arte: Gabriela Lucena
Hoje, nós mulheres negras celebramos o Dia Internacional da Mulher Negra Afro-Latina e Caribenha e o Dia Nacional da Mulher Negra, uma homenagem a luta da quilombola Tereza de Benguela.
As mulheres negras no Brasil são muitas e diversas. Somos jovens, quilombolas, cotistas, feministas, cristãs, lésbicas, militantes partidárias, mulheres trans, anarquistas, bissexuais, idosas, representantes de povos tradicionais de matriz africana, trabalhadoras domésticas, sem-terra, periféricas, imigrantes e refugiadas, rurais, mães, autônomas… 
Mulheres que, apesar da diversidade que nos separa, juntas formamos uma camada sobrevivente da sociedade. Não está fácil ser mulher e negra no Brasil, que a exemplo dos demais países latino-americanos e diaspóricos, segue tradição escravocrata e colonialista.
Hoje, há 49 milhões de mulheres negras brasileiras, que têm o protagonismo negativo de encabeçar os piores índices de direitos humanos em todas as áreas: saúde, emprego, moradia, acesso à educação, etc…
A nossa luta começa pelo primordial: as mulheres negras querem viver! O feminicídio no Brasil também tem cor: houve um aumento de 54% de assassinatos de mulheres negras. A cada 1 hora e 50 minutos uma mulher negra morre. Temos dificuldade de acessar a rede de proteção contra a violência por motivos diversos pautados pelo racismo e pobreza.
Dados da situação da mulher negra na sociedade brasileira revelam a urgência da articulação entre gênero e raça ser pensada dentro das políticas públicas. Mulheres negras têm três vezes mais chance de serem estupradas do que mulheres brancas, são as maiores vítimas de violência doméstica, as que mais padecem por conta da criminalização do aborto, sem falar na violência simbólica cotidiana, alimentada por uma mídia racista que invisibiliza a participação na sociedade de mulheres negras, indígenas, lésbicas e transexuais.
Foto: Da direita à esquerda Gisele Brito, Simone Freire, Juliana Gonçalves, Nadine Nascimento, Rute Pina, Norma Odara e Camila Rodrigues; jornalistas do Brasil de Fato.
Pluralidade de vozes e protagonismo feminino negro
A mídia hegemônica tem um lugar reservado para a figura da mulher negra e este espaço simbólico e real nunca é de protagonismo ou poder. Isso transparece desde os assuntos pautados até na cor da maioria dos profissionais de mídia.
Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) 23% dos jornalistas são negros e negras, embora não haja um recorte de quantas negras atuam como profissionais de imprensa. Os dados apontam que a maioria dos jornalistas brasileiros é formada por mulheres brancas, solteiras e com até 30 anos de idade. 
A ampliação da abordagem de jornais e revistas com recorte étnico racial passa pela contratação de profissionais negros. Dentro das redações, as jornalistas negras tendem a fazer a diferença.
“Nós, Mujeres”, o especial que entra no ar hoje no Brasil de Fato, é prova disso. Somos sete mulheres negras, produzindo conteúdo em diversos cargos desde a reportagem, passando pela edição, e pela coordenação política e editorial.
Nesse especial buscamos dar voz a seis mulheres negras de diferentes áreas. Vamos contar uma história por dia. Além disso, vamos acompanhar as mobilizações de mulheres negras neste Dia 25 de Julho, data marcada pelo contexto histórico de resistência feminina negra que rememora Aqualtune, Acotirene, Luisa Mahin, Dandara, Maria Firmino dos Reis, Carolina de Jesus, Maria Brandão dos Reis, Antonieta de Barros, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Laudelina Campos, Theresa Santos, e tantas outras que aqui chegaram e nasceram.
Entendemos que ao entrevistar as brasileiras Jurema Werneck, Geni Guimarães, MC Soffia, Ialorixá Wand d’Oxum, Lucia Udemezue e a cubana Maria Faguana, estamos dando visibilidade a essa luta histórica das mulheres negras contra o privilégio branco que estrutura a sociedade racista que vivemos.
Termos nossas vozes expandidas pelos veículos de comunicação é algo essencial para ampliação da luta. Tendo em vista, como traz Audre Lorde, “que não esperavam que sobrevivêssemos”, não só sobrevivemos, como temos voz e exigimos espaços equânimes, pois temos certeza de que se uma mulher negra avança, ninguém ficou para trás.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

FILOSOFIA / MARCIA TIBURI / VIOLÊNCIA SIMBÓLICA



“A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA É A MORTE DA LINGUAGEM, DO PENSAMENTO E DO OUTRO” – ENTREVISTA COM A FILÓSOFA MARCIA TIBURI


Alexandre Haubrich
Em meio à crise da política institucional, o Brasil também enfrenta um momento em que há grande dificuldade em estabelecer diálogo entre os diferentes. Uma das pensadoras que mais tem se detido nesse debate é a filósofa Marcia Tiburi. Colunista da revista Cult e autora de diversas obras, a mais recentes delas “Como conversar com um fascista”, a entrevistada desta edição do Jornalismo B é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na entrevista a seguir, ela discute o momento social e cultural brasileiro e as possibilidades de avançar em direção a uma sociedade mais democrática e tolerante.  



Jornalismo B – Fala-se muito em aumento da intolerância e do ódio neste momento no Brasil. Tu também vês a situação dessa forma ou pode tratar-se de uma maior exposição desses pensamentos que já existiam?
Marcia Tiburi – Depende do que tu consideras pela expressão “que já existiam”. O ódio não é um afeto básico no sentido de ser natural como muitas pessoas acreditam. Como se estivesse guardado como uma coisa ou substância em uma instância abscôndita da subjetividade individual. Nem o amor é natural. Esses afetos são produzidos em relações sociais e familiares transmitidas em contextos. Ódio é um afeto primeiro produzido, primeiro criado e, depois, manipulado. Ele sempre se apresenta como expressão e não tem lugar fora da expressão. Não quero dizer que a linguagem do tipo “discurso de ódio” é expresssão de ódio. Quero dizer que o ódio só existe como linguagem. É linguagem concreta, não metafísica. É um afeto como qualquer outro, criado em ambientes em que se dão experiências com a linguagem. A linguagem funciona por imitação e contágio, logo, atualmente se trata de contaminação das falas por contágio. É verdade também que o ódio se cria e sobrevive na tradição e é transmitido pela linguagem que vem com a tradição, que é tradição. Nesse sentido, o ódio fica na história sim, no sistema dos preconceitos. O ódio aos negros foi criado pelo capitalismo que os escravizou. Então, esse ódio está lá. Mas ele precisa ser recriado pela linguagem, reproposto por ela. O ódio fica na hisória como um subtexto, e vem à tona como texto. Há fatores que compõem o subtexto do ódio, os interesses, os ressentimentos. Mas o ódio mesmo é manipulado aqui e agora, ainda que tenha lastro na história. E nos parece algo profundo porque a superfície é o que há de mais profundo. Na superfície podemos ler tudo o que o capitalismo quer de nós, inclusive o ódio. Mas nem todos somos alfabetizados nessa leitura do livro do mundo.
 As redes sociais digitais potencializam de alguma forma essa intolerância?
Como ambientes de linguagem em que clichês preconceituosos são difundidos, sim. Mas também há a frieza da tecnologia e a proteção da tela, a proteção virtual que facilita a covardia de quem se livra da resposta.
De que forma essa intolerância reflete e alimenta uma tentativa de esvaziamento da política? Quem patrocina esse tipo de processo e com que interesses?
Todo discurso de ódio cria um “outro” a ser negado. Ou usado. Por exemplo, a misoginia que é o histórico e, infelizmente ainda atual, discurso de ódio contra as mulheres, ora serve para usá-las, fazendo com que se submetam a armadilhas biopolíticas (sensualidade, maternidade, beleza) que facilitam sua dominação, ora serve para fundamentar o motivo porque são violentadas, estupradas e mortas. O ódio aos estrangeiros, às bruxas, o ódio aos comunistas, o ódio aos petistas, o ódio aos homosexuais, às travestis, às pessoas trans, todos obedecem ao mesmo princípio, que é a negação do outro. Elites dominantes, donos do poder, políticos coronelistas, individualistas iludidos com a meritocracia, donos de capital internacional, todos inventam e recriam a intolerância com objetivos específicos, todos sempre ligados a poder e capital.
Que efeitos sociais tem a prática de justificar discurso de ódio com a ideia de “é a minha opinião”, sem que isso exija fundamentação?
Essa prática é autoritária. Ela cria e recria o círculo vicioso do autoritarismo. Mina a democrática ideia de liberdade de expressão, porque uma expressão que fere a dignidade humana, fere a ideia de liberdade democrática a ela ligada. Fere a democracia. Cai em autocontradição. O direito do outro de expressar-se acaba quando eu firo o seu direito de expressar-se com a minha expressão preconceituosa, autoritária e violenta. O discurso de ódio, violento, acaba com a expressão. Infelizmente, a população cai nessa achando que está a exercer um direito. É o contraditório, aniquilador, direito de não ter direito.
O que caracteriza um discurso fascista? Esse tipo de discurso têm
avançado no Brasil?
Isso é um assunto bem complexo. No meu livro eu quis falar do fascismo que se serve e produz um círculo vicioso em que o consumismo da linguagem é efeito e causa do empobrecimento da linguagem. Chamei de consumismo um processo no qual a linguagem verbal serve como capital. Ela é usada e repetida sem que se analise seu conteúdo. Algo do tipo “falar sem ter nada a dizer”. Vazio do pensamento, mais vazio da emoção, mais vazio da ação, tudo isso se configura como vazio da linguagem.
A banalização da violência nos meios de comunicação contribui para o avanço do ódio nas relações sociais?
Certamente. O ódio é um capital verbal incrível. Veja o papel do “like” no facebook. Quando inventarem o “deslike” vai ser um sucesso imenso
Pensando para além da questão da violência, que efeito uma mídia monopolizada, sem espaço para posições divergentes e pluralidade, têm sobre as dinâmicas sociais e para as relações discursivas entre as pessoas?
Não existe nada para além da violência. A violência simbólica é a morte da linguagem, do pensamento e do outro. A mídia monopolizada não é um poder simples, ela é a própria violência institucionalizada a administrar as notícias, os discursos, a linguagem.
As práticas sociais autoritárias, a intolerância na base social, pode conduzir a perigos autoritários também no âmbito governamental e institucional?
Estamos vivendo um golpe que explica isso.
Em que medida a violência discursiva e simbólica fomenta a violência física?
Há uma correspondência entre a lógica do pensamento e da ação, entre a narrativa ficional e os fatos que já era explicada pela mímesis aristotélica e que se percebe na ficção com que se assemelham os fatos da vida, do cotidiano e da política. No caso das mulheres, o discurso misógino – na literatura, na filosofia, no cinema, na telogia, nas artes – acompanha a violência física desde sempre.
Que influência personagens como o deputado Jair Bolsonaro têm na construção de uma forma social de agir que desrespeita as diferenças?
Ele é um efeito disso e um sacerdote que repete essa mesma crença na qual se criou como figura pública. Um irresponsável social, dirão uns, um psicopata, dirão outros, mas o mais perigoso é que tantos o achem engraçado e não o levem a sério.
A sociedade brasileira tem avançado ou retrocedido no combate ao machismo, à homofobia, ao racismo e ao preconceito de classe?
Desde o golpe o retrocesso é evidente. Mas o povo não é igual ao golpe que acaba de sofrer. Apenas uma minoria branca, de classe média e sem noção de política, mas com uma sede mal resolvida de poder, defende esses preconceitos sem nem imaginar o que seja sociedade.
Que importância o diálogo bem estabelecido tem para a construção da solidariedade e para o crescimento do conhecimento coletivo?
A palavra coletivo é complicada. Um coletivo que domine básicas categorias políticas pode ser bom, se respeita a singularidade e a diferença. Mas o coletivo pode também ser a maioria que sobrevive da tendenciosidade. É preciso cuidar disso. Não é qualquer coletivo que é democrático. O diálogo é o que nos torna seres políticos e capazes de convivência, sem ele não existe nada e é porque esteja em baixa como ação que estamos nesse estado social e político.
Como a sociedade pode aprender o respeito ao outro, o diálogo, a troca?
Educação, muita educação. Muita filosofia. Muita cultura. Muita politização para a autonomia e o respeito ao outro. Sem isso, esqueçam o que viemos fazer aqui.

Fonte: http://jornalismob.com/2016/07/21/a-violencia-simbolica-e-a-morte-da-linguagem-do-pensamento-e-do-outro-entrevista-com-a-filosofa-marcia-tiburi/