sexta-feira, 1 de maio de 2020

A VIRGEM DO CABARÉ





Controvérsia Sobre “A Virgem do Cabaré”**


            Foi anteontem que, folheando um periódico de Tão Tão Distante datado de 28 de abril de 2020, deparei-me com uma picaresca história emoldurada em azul. O relato fazia fuxicos da alta sociedade do lugar, tendo por enredo as relações de uma louvável senhorita e um senhor, seu corruptor. O autor, embora em tom um tanto jocoso, parecia interessado em defender a honra, virtude e bom nome da moça, assinando embaixo da inacreditável versão desta para os fatos. Talvez por demasiado cinismo meu, quiçá por uma pitada de malícia da parte do referido cronista, o efeito foi expor ao ridículo, como pretensa, a ingenuidade da debutante, sua indignação de rapariga traída pela má-fé de um ladino alcoviteiro. Seja qual for o caso, não me interessa no momento conjecturar a respeito das intenções implícitas ou sub-reptícias do texto.
            O caso para mim é fazer caso. Agrada-me dar aso aos comentários apócrifos, que se murmuram à boca pequena, fofocas, boatos. Ventilar versões, mesmo fantasiosas, pois podem bem ter o seu quê de verdade.
            E as versões certamente são muitas. Há quem diga, por exemplo, que o tal cabaré, em verdade é caserna. Outros juram ser convento; creem mais alguns que, não o sendo, era nisso que a moça pretendia transformá-lo, com as boas graças do proprietário. O que viria a calar a boca dos maledicentes que apressavam-se em perguntar: “Mas se era tão íntegra, tão recatada, que é que estava fazendo lá, como aceitou ser apresentada como atração principal do cabaré, garota propaganda, isca para os incautos?” Devo reconhecer que é um tanto insólito.
            Aliás, segundo o dono do estabelecimento, ela se casou com ele (casou, mas não consumou?). Casamento, aliás, polígamo e, conforme os relacionamentos anteriores deste deixavam entrever, fadado a acabar cedo e mal, caso a cônjuge não abdicasse da vontade própria e independência, o que, a donzela sempre afirmou, repudiaria com veemência. O fato é que a garota (tão resoluta e voluntariosa quanto pundonorosa e dada à leitura de biografias) tolerou por um bom tempo o relacionamento com suas truculências, aceitando ingerências no seu espetáculo e interdições em suas performances, antes de notar que tais ambientes e companhias maculavam sua própria história já um tanto puída.
            Porque dizem as más línguas - e as más línguas sempre têm o que dizer – que a beldade não era tão séria assim. Já teria sido indulgente com alguns de seus afetos. Teria também, há rumores, atentado contra a fé de um compromisso anterior, ocasião na qual teve oportunidade de, com um só golpe, ferir o interesse público e o de outros indivíduos, moças e rapazes da mais nobre estirpe, a saber Marianne, Têmis, Clístenes*…
            Enfim, insistem as viperinas matracas, seria em virtude (com o perdão da palavra) deste escândalo, que conquistara a preferência inconstante do seu consorte, visto que o mesmo, em seu ofício, capitanearia e capitalizaria  tumultos, querelas e “mis em scènes”. O dito tem de estar na boca do povo, causar sensação, “frisson” sempre.
            E dito tudo que pude reunir em minhas pesquisas do burburinho, resta muito ainda por falar. Pois há de dar o que.
            Da saborosa crônica, que não pude deixar de estragar, com duvidosa arte, na medida em que busquei emendá-la, restou-me mesclada a um certo espanto, uma dúvida. Causou-me pasmo, ver chamado abertamente dono de cabaré (pois como se percebe há muita controvérsia a respeito da natureza do estabelecimento) um cavalheiro que até pouco era honrado e enaltecido pelo nosso caro escritor. Seria sarcasmo para com a moça e consequente admissão da má fama do lugar? Ou caso de compará-lo aos pequenos mamíferos que, também conforme as más línguas, costumam ser os primeiros a abandonar o navio que afunda?



* Na ordem em que se apresentam:
-Nome popularmente dado à efígie da república na França, inspirada no quadro “A Liberdade guiando o Povo” de Delacroix. No Brasil a Efígie da República, deriva daquela e consta nas cédulas monetárias, sendo portanto associada também à ordem econômica;
-Titânide oriunda da mitologia grega, entre nós símboliza a justiça;
-Considerado o pai da democracia grega, e por isso mesmo, da democracia como tal.

** Autor: Cesar Roberto Scheffler

Nenhum comentário: