Controvérsia Sobre “A Virgem do Cabaré”**
Foi anteontem que, folheando um periódico de Tão Tão
Distante datado de 28 de abril de 2020, deparei-me com uma picaresca história
emoldurada em azul. O relato fazia fuxicos da alta sociedade do lugar, tendo
por enredo as relações de uma louvável senhorita e um senhor, seu corruptor. O
autor, embora em tom um tanto jocoso, parecia interessado em defender a honra,
virtude e bom nome da moça, assinando embaixo da inacreditável versão desta
para os fatos. Talvez por demasiado cinismo meu, quiçá por uma pitada de
malícia da parte do referido cronista, o efeito foi expor ao ridículo, como
pretensa, a ingenuidade da debutante, sua indignação de rapariga traída pela
má-fé de um ladino alcoviteiro. Seja qual for o caso, não me interessa no
momento conjecturar a respeito das intenções implícitas ou sub-reptícias do texto.
O caso para mim é fazer caso. Agrada-me dar aso aos
comentários apócrifos, que se murmuram à boca pequena, fofocas, boatos.
Ventilar versões, mesmo fantasiosas, pois podem bem ter o seu quê de verdade.
E as versões certamente são muitas. Há quem diga, por
exemplo, que o tal cabaré, em verdade é caserna. Outros juram ser convento;
creem mais alguns que, não o sendo, era nisso que a moça pretendia
transformá-lo, com as boas graças do proprietário. O que viria a calar a boca
dos maledicentes que apressavam-se em perguntar: “Mas se era tão íntegra, tão
recatada, que é que estava fazendo lá, como aceitou ser apresentada como
atração principal do cabaré, garota propaganda, isca para os incautos?” Devo
reconhecer que é um tanto insólito.
Aliás, segundo o dono do estabelecimento, ela se casou
com ele (casou, mas não consumou?). Casamento, aliás, polígamo e, conforme os
relacionamentos anteriores deste deixavam entrever, fadado a acabar cedo e mal,
caso a cônjuge não abdicasse da vontade própria e independência, o que, a
donzela sempre afirmou, repudiaria com veemência. O fato é que a garota (tão
resoluta e voluntariosa quanto pundonorosa e dada à leitura de biografias)
tolerou por um bom tempo o relacionamento com suas truculências, aceitando
ingerências no seu espetáculo e interdições em suas performances, antes de
notar que tais ambientes e companhias maculavam sua própria história já um
tanto puída.
Porque dizem as más línguas - e as más línguas sempre têm
o que dizer – que a beldade não era tão séria assim. Já teria sido indulgente
com alguns de seus afetos. Teria também, há rumores, atentado contra a fé de um
compromisso anterior, ocasião na qual teve oportunidade de, com um só golpe,
ferir o interesse público e o de outros indivíduos, moças e rapazes da mais
nobre estirpe, a saber Marianne, Têmis, Clístenes*…
Enfim, insistem as viperinas matracas, seria em virtude
(com o perdão da palavra) deste escândalo, que conquistara a preferência
inconstante do seu consorte, visto que o mesmo, em seu ofício, capitanearia e
capitalizaria tumultos, querelas e “mis
em scènes”. O dito tem de estar na boca do povo, causar sensação, “frisson”
sempre.
E dito tudo que pude reunir em minhas pesquisas do
burburinho, resta muito ainda por falar. Pois há de dar o que.
Da saborosa crônica, que não pude deixar de estragar, com
duvidosa arte, na medida em que busquei emendá-la, restou-me mesclada a um
certo espanto, uma dúvida. Causou-me pasmo, ver chamado abertamente dono de
cabaré (pois como se percebe há muita controvérsia a respeito da natureza do
estabelecimento) um cavalheiro que até pouco era honrado e enaltecido pelo
nosso caro escritor. Seria sarcasmo para com a moça e consequente admissão da
má fama do lugar? Ou caso de compará-lo aos pequenos mamíferos que, também
conforme as más línguas, costumam ser os primeiros a abandonar o navio que
afunda?
* Na ordem em que se
apresentam:
-Nome popularmente dado à
efígie da república na França, inspirada no quadro “A Liberdade guiando o Povo”
de Delacroix. No Brasil a Efígie da República, deriva daquela e consta nas
cédulas monetárias, sendo portanto associada também à ordem econômica;
-Titânide oriunda da mitologia
grega, entre nós símboliza a justiça;
-Considerado o pai da
democracia grega, e por isso mesmo, da democracia como tal.
** Autor: Cesar Roberto Scheffler
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