por Cesar Roberto Scheffler
Certa
ocasião, quando questionado sobre quantas vezes se deve perdoar ao próximo,
Jesus ofereceu por resposta uma cifra exata, que nos dá margem para pensarmos
que realmente o perdão também cansa de perdoar. Porém, se nos dermos conta do
quão improvável seria que alguém nos ofendesse uma quadringentésima nonagésima
primeira vez compreenderemos que, por essa fórmula, o mestre aconselhava a
perdoar sempre.
Noutra
vez admoestara a que, se alguém nos esbofeteasse em um lado do rosto, lhe
voltássemos o outro. Se nos tomassem a capa, que cedêssemos também a túnica.
Chegara mesmo ao extremo de afirmar que deveríamos amar aos nossos inimigos. E
claro está, em tal caso, que seriam inimigos unilaterais, pois por nossa
vontade, seríamos amigos. Julgo, com segurança, que todos seus ensinamentos
apontam para uma doutrina de amor e não violência.
Por
que, então, a cristandade ao longo dos séculos sentiu-se, com tanta frequência,
e ainda hoje se sente, justificada em certas práticas da violência? Não
encontro - e creio que, até num exame mais detalhado da pregação do filho do
homem, não poderia ver - alguma resposta ou máxima que realizasse o elogio da
violência. Apesar disso, várias situações constantes nos evangelhos mostram-nos
um messias indignado, que usa de violência verbal, e há pelo menos um exemplo
do uso da violência física.
Essa
aparente incongruência no que toca à prática daquele que pregou um amor
incondicional, pode se tornar coerente aos olhos de alguns, por uma certa
hierarquia entre os entes amados. O amor a deus seria prioritário, podendo
impor-se sobre a obrigação de amar aos outros seres humanos. Para outros,
Cristo não foi violento, apenas disse a verdade. No entanto a mesma poderia ter
sido dita com suavidade.
O
“Rabi” preferiu, por vezes, com seus oponentes, lançar verdades à cara como
tapas. E porque a verdade, pronunciada com dureza, maltrata mais que a mentira,
são violentas as palavras proferidas com rude franqueza. Me sinto muito
inclinado a ver, nesses eventos, a fraqueza e vacilações de um homem, que como
os outros, é imperfeito se observado à parte do todo.
Aqui,
sei que meu posicionamento levantará resistências: irão me dizer que, de um
ponto de vista cristão, não se pode admitir que, sendo ele Deus, houvessem sua
vontade e razão sucumbido à lassidão da carne. Pois seja, não pretendo levantar
essa questão, e sei que em nada há de prejudicar meu raciocínio se fizer tal
concessão. Pretendo, na medida do possível para mim, que sou leigo, conduzir
meu pensamento sem maiores contradições com a fé declarada nos credos.
Se,
no entanto, nos recusarmos a admitir uma falha, e, considerando que nada em sua
pregação nos esclarece a respeito de quando a violência se torna admissível ou
recomendável, suponho não nos restar melhor recurso do que o estudo das
ocorrências e recorrências de agressão da parte dele, para deste modo
estabelecermos um padrão, extrairmos sua essência.
E para que haja um certo método em nossa
abordagem, convém que comecemos pelo início: qual, das duas formas indicadas de
violência, física ou verbal, aparece primeiro nos evangelhos? Vemos que, a
exceção do evangelista João, todos mostram primeiramente a forma verbal da
agressão. Justo a forma mais frequentemente adotada pelo Nazareno. Se a isso
acrescentamos que a violência física ocorre apenas num único episódio, o qual é
relatado nos quatro evangelhos, notamos que embora tenha sido um evento
relevante, por ser ímpar não nos permite determinar um padrão, descobrir por
sua análise direta o que teria sido decisivo para desencadear o ocorrido.
Certamente teremos de principiar pela forma verbal.
Essa
teria sido recorrente nas disputas com os escribas, intérpretes e professores
da lei judaica, tanto fariseus como saduceus. Seria retaliações, segundo consta
no novo testamento, às tentativas desses de levá-lo a contradizer-se ou
comprometer-se perigosamente por suas palavras. Tentativas essas que são,
alegadamente, fruto de inveja e de interesses contrariados. E embora a temática
desses embates filosóficos seja variada, o desfecho é bastante previsível: a
desconstrução dos sofismas e uma descompostura a que são submetidos seus
oponentes, por meio de parábolas, silogismos e por vezes, algum insulto. Mas o
que o filho do altíssimo condena com veemência, exprobações e até vitupérios é
sempre o mesmo, a hipocrisia. É a falsidade que o faz perder a paciência com
esses senhores.
Poderiam
citar-se vários exemplos, enumerados por capítulo e verso, muitos parágrafos de
referências. Mas me parece desnecessário. Aos que demonstrarem quaisquer
dúvidas, remeto-os à leitura dos evangelhos, e declaro-me francamente aberto a
uma amigável discussão. Porém, para o propósito deste texto, darei por
demonstrada a afirmação que fiz no tocante a ser a falsidade o único pecado
combatido com a violência verbal pelo peregrino pregador. Evoco a frequência
com que emprega o termo hipócritas ao referir-se ou dirigir-se aos principais
sábios e guardiões da palavra, seus adversários costumeiros, que segundo ele,
teriam fechado o acesso do reino de deus aos homens.
Certos
da motivação exclusiva da primeira forma de violência, verifiquemos o nosso
exemplo do segundo tipo. Falo da “purificação do templo”. De que se trata aqui,
senão da expulsão, do pátio do templo, de toda uma cadeia de comerciantes
ligados às práticas religiosas da época, bem como seus consumidores? São de um
lado, comerciantes responsáveis pela venda de animais de várias espécies,
conforme referidas na lei mosaica, cambistas que possibilitavam a troca das
variadas moedas que ali se usavam, e de outro, os fiéis que vinham ao templo
para ofertas de agradecimento, sacrifícios de expiação, entre outros deveres
estabelecidos pela lei religiosa judaica. Aparentemente, como nos indica a
referência reiterada ao profeta Oséias (misericórdia quero, e não holocaustos),
o filho de Maria não julgava necessários os sacrifícios e muitas outras
atividades que exigiam os préstimos dos sacerdotes e resultavam em sua
opulência e influência secular. Estava certo de que aqueles comerciantes e
sacerdotes lucravam com coisas dispensáveis que foram inculcadas nos que ali
adoravam. E reprovava severamente a falsidade que, tendo se apoderado da religião e das leis,
explorava a boa fé para a obtenção de riqueza e poder. Daí a sua ira, à qual dá
vazão sobre os lombos dos que vendiam e compravam, até dispersá-los com um
azorrague de corda.
A
violência do galileu, é um caso extremo, de defesa da religião contra a
mentira. Mesmo diante dessa reação brutal, subsiste o fato de que Jesus nunca
elogiou nem orientou para a violência. Mesmo quando aconselhou, depois da
última ceia, que levassem consigo espada, fê-lo com o único propósito de que se
cumprisse a escritura. E quando, empregada a espada, cortou-se a orelha do
servo do sumo sacerdote, não apenas ordenou que cessasse a ofensiva, como sarou
o ferido.
Estabelecidos
assim alguns pontos sobre a relação do redentor com a violência, tais como a
exaltação da mansidão e do amor, a reação violenta apenas diante da falsidade e
a reprovação irada da exploração comercial da fé, e, olhando para a atualidade
no Brasil, terra em que a hegemonia cristã é indiscutível, surgem algumas
questões inevitáveis. Como é possível, aos cristãos brasileiros aceitarem o
apelo às armas, supondo lícito e coerente com a fé cristã, matar para defender
suas vidas e seus bens? Como é possível aos cristãos do nosso país considerarem
aceitável que tanta coisa se venda, pelas igrejas, como itens santificados,
ungidos? Como é possível que tantos sacerdotes cristãos ponham-se em aliança
com César, abrindo espaço para o mesmo nos cultos, descuidando das obrigações
assumidas com Deus? Como é possível que tantos cristãos prestem lealdade a quem
sempre realizou a apologia da violência ao invés da mansidão e ainda assim se
diz cristão? Como é possível que, sendo cristãos, aceitem a inversão da
pregação de Cristo, louvando o violento e reverenciado o falso?
E
se ao final me perguntam porque decidi levantar essas questões sobre os
cristãos e o cristianismo moderno, não vos respondo com as palavras do que reconhecem
como salvador: “Vim para lançar fogo sobre a terra, e bem quisera que já
estivesse a arder”. Até porque já está. Digo apenas que o faço no interesse
destes. Pois embora seja admirável o seu ardor, creio que seria recomendável
revisitarem a palavra que lhes serve de fundamento, para que não se dê o caso
de, um dia, verem lançada aos seus rostos a pecha da hipocrisia.
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