COMUNISMO. Começo este texto justamente com essa palavra. Sei que é impossível, para a grande maioria de nós, evitar a associação com determinados regimes históricos e autores determinados, atrocidades e subversão da ordem. Sei que muitos não podem mesmo evitar sentimentos negativos que vão do desconforto à raiva, passando, talvez, pelo medo. E é por isso que proponho a palavra como ponto de partida. E faço uma pausa para permitir ao leitor que se aperceba dos efeitos que esta causa nele próprio…
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Retomando
o curso, sei que todos possuímos relações, mais ou menos subjetivas, com o
vocábulo. Mas sabemos, de fato, o significado objetivo do termo?
Comunismo:
“Sistema econômico e social baseado na propriedade coletiva”. E só. Esta é a
definição que consta no mini dicionário Aurélio que eu utilizava quando, nos
idos dos anos oitenta, frequentava a escola primária. Sei, entretanto, que a
maioria dos dicionários, impressos ou digitais, traz no lugar ou em adição a
esse, uma série de significados mais ou menos pejorativos (o que dificilmente
acontece quando se trata de definir capitalismo). Peço-vos que nos atenhamos à
anterior, certamente a mais sucinta e objetiva, conforme convém que sejam as
fornecidas por um dicionário. Pois é o que convém aos que desejam refletir
racionalmente.
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CRISTIANISMO.
Uma pequena distância o separa do anterior. No dicionário, claro. Basta avançar
umas poucas páginas, e lá o encontramos. Naquele citado, 16. Na nossa história
recente e vida cotidiana, quão intransponível espaço, e repleto de obstáculos,
interpõem-se entre ambos. Menciono esta distância por ter assistido um vídeo
recente, em que um pastor pede aos fiéis que orem para não nos tornarmos
comunistas. Essa postura das igrejas não é novidade, e padres já manifestaram-na,
há décadas, por outros veículos. Parecem palavras irreconciliáveis…
Mas
o que nos diz o dicionário, esse concílio das palavras?
Cristianismo:
“Conjunto das religiões cristãs, i. e., baseadas nos ensinamentos, pessoa e
vida de Jesus Cristo.” É o que consta no mesmo livreto. Conforme julga a grande
maioria dos brasileiros, vivemos numa sociedade cristã. E todo cristão possui
alguns deveres, resumidos com admirável concisão pelo seu mestre: “Amarás o
Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu
entendimento. Este é o grande e o primeiro mandamento. O segundo, semelhante a
este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem
toda a lei e os profetas.” O dever do cristão é amar.
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SOCIEDADE.
Aqui damos um salto gigantesco. No pequenino dicionário, mais de trezentas
páginas. Na realidade concreta, a distância é ainda maior. E tem de ser, posto
que na sociedade, por paradoxal que vos pareça, cabem cristianismo, comunismo e
muitos ‘ismos’ mais. A sociedade é o espaço onde praticamos nossas convicções.
Onde vivemos aquilo em que de fato cremos...
Prossigamos
com nossa pesquisa. Que nos diz o coletivo das palavras?
Sociedade:
“1. Agrupamento de seres que vivem em estado gregário. 2. Grupo
de indivíduos que vivem por vontade própria sob normas comuns. 3. Meio
humano em que o indivíduo está integrado. 4. ...”. Aqui o dicionário nos
deixa a ver navios. Obviamente uma sociedade humana é muito complexa e cheia de
contradições, tão ampla que não caberia numa coleção de dicionários. E afinal,
porque teríamos de nos perder por divagações intermináveis. Podem estar certos
de que não pretendo abordar em poucas linhas o que não se esgota em um
compêndio. Quero deixar-lhes, após breve digressão, uma questão ao encargo de
suas consciências. Por isso as palavras anteriores.
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A
digressão limita-se à sociedade brasileira. Uma sociedade dita cristã. E é
evidentemente necessário admitirmos que sua organização assume configuração
conforme às ideias dominantes na coletividade. Porque essas, por meio de todos
os atos que delas derivam, acabam por determinar a norma comum, sob a qual nos
congregamos, e o meio em que estamos integrados. A forma como nos relacionamos
e efetuamos nossas trocas. Se depreende daí que convivemos como cristãos. Será?
Esta
pergunta não pode ser respondida sem antes postularmos um padrão segundo o qual
se desenvolvam os grupos com base na ética cristã. Poderíamos ter por resultado
uma infinita querela em torno dos desdobramentos do amor na vida econômica dos
indivíduos e suas consequências ao nível da sociedade. Felizmente a questão
encontra uma solução bastante simples, caso nos debrucemos sobre a história da
igreja primitiva.
Refiro-me
ao livro dos Atos dos Apóstolos. É lá, dentro da própria bíblia, que
encontramos breves descrições, pouco detalhadas, mas claras, de como viviam os
convertidos. E quem poderia fornecer um retrato mais fiel da comunidade
conforme as ideias do Cristo do que aqueles que conviveram com ele, sob sua instrução?
Assim,
em Atos 2:44 temos: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em
comum”. O versículo 45 segue, dizendo que “Vendiam suas propriedades e bens,
distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.” O
capítulo quarto, entre os versículos 32 e 35, retoma o assunto, reiterando-se o
já dito: “Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das cousas que
possuía; tudo, porém, lhes era COMUM”. Segue o texto, afirmando que os valores
das propriedades e bens vendidos depositavam-se “aos pés dos apóstolos”, donde
se pode concluir que estes eram os administradores, os responsáveis pela
partilha. Logo, os bens COMUNS, eram administrados por um conjunto de pessoas,
uma espécie de conselho, portanto, uma instituição.
Será
necessário que eu lhes faça notar a semelhança desta descrição com a definição
de COMUNISMO?
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Encerro
essa exposição com a questão que lhes desejava propor. Realmente não quero aqui
sustentar a necessidade de nos tornarmos comunistas. Venho apenas
perguntar-lhes o que houve com o cristianismo, passados dois milênios, para que
julgassem os cristãos, extremamente necessário, combater o que antes
praticaram.
*Texto escrito por Cesar Scheffler como contraponto a 'A Virgem do Cabaré', publicado no jornal O Presente, de autoria de Arno Kunzler.
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