quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Crônica/Walmir Assunção

 

Dico, vamos jogar bola amanhã 20:30 h ?‏

 
Senhores, além de tudo ele foi um zagueiro fino, desses que
ainda sai jogando. Até hoje é o nosso Capitão, da camisa absoluta, da
Seleção Brasileira. Um soberbo no bom sentido da palavra; colosso
involuntário. Por um tipo assim nossas mulheres nos largariam na
véspera de o conhecer, ou deveriam nos largar. Já posso vê-las
impassíveis enquanto colhemos as butucas no beco.
         A fama é esse jardim sintético; uma vitrine andarilha. Induz
o coitado com frígidas sensações. O Homem se sente especial demais;
chega a se sentir eterno e sem equívocos. É um Sol por sua conta. Seu
mínimo instante não é mais remoto; nem seu tempo é comunhão. Vive uma
inocência estelar. Até as rosetas se corrompem nos holofotes. Nesse
meio insano, o Sr Ricardo Gomes é como a gentil e rígida carnaúba. Não
é sempre que digo: carnaúba. É assim que elogio quando a empatia me foge
do controle. Só chamo de carnaúba as minhas tias multifuncionais.
          Esse Senhor sobrevive nessa calçada da fama e às mentiras em
flor. Sabemos que é um cavalheiro, desses que nos toleram. Um Hércules
com estopo de Hércules. E é o perpétuo Capitão da  mística camisa, a
mais pesada.
           Jogavam Flamengo e Vasco no Estádio que nasceu para não
viver os misticismos. Refiro-me ao superfaturado Engenhão, friorento
em pleno Rio de Janeiro. O palco atual não importa como as lendárias
camisas. Estão pesadas e sem vôo – o movimento fabular. Têm golas de
pedra. Assim mesmo a partida se incendiava à parte, apesar do gramado
demasiadamente terreno. Foi como se os brasões se reconhecessem
subitamente.
              O gaúcho de um lado, o pernambucano do outro; através do
trato à bola eram o milagre da unidade nacional, a língua pátria.
Heróis de tantos feitos buscavam se anular. As caneleiras estavam
mordidas. Eis que a bola debruçou-se  sobre Ronaldinho, vinda das
alturas – o que sempre tranqüiliza o craque. Foi perto da lateral,
diante do banco do Vasco, onde estava Ricardo Gomes. O técnico
agradeceu o adversário pelo domínio, como se a bola tivesse penas de
pavão. É melhor ser rival de um cavalheiro do que irmão dos outros. O
Gaúcho, sem a bola, ficou constrangido. O intervalo não seria
providencial, o jogo buscava eternizar-se sem palco. O clássico estava
operante.
             Mas no segundo tempo configurou-se a tragédia. Não seria
se fosse comigo, ou provavelmente com o leitor – quanto mais o que não
me perdoaria. Falo pelas leis das possibilidades e os homens não tendem a
ser um cavalheiro e Capitão. Aos doze ou vinte um
minutos tombou Ricardo Gomes ou não se mexeu. Fiquei em choque e sem
compreensão; ele teve um derrame. De repente o sangue fez-se um manto
por dentro da sua cabeça, íntimo ao ponto de sufocar  suas idéias e
movimentos. Teve um AVC; essa sigla sorrateira em meio às siglas dos
Departamentos e times alagoanos - que agora soam brincalhonas.
Se fosse com outro, com quase todos os outros, lamentariam ou não
lamentariam.
              Reparemos que a tragédia não se apresenta pelo ocorrido.
O mundo está cheio demais, humano até às alturas. Temos altos índices
de invertebrados. Cada anoitecer é como o Salvador; descansa a terra e
põe os homens na Cama. Diuturnos, fazemos da luz  quadrantes
divididos. Somos os Homens gafanhotos.
              A tragédia mais do que nunca se constata pelas virtudes
traídas do protagonista. Digo “traídas” senhores, porque a providência
trai; bem que trai. O destino é um déspota caprichoso e traiçoeiro,
não distribui saúde ou felicidade por nossas leis claudicantes; não
faz escambo com o merecimento. É um juiz anárquico, com fetiches
infantis.
              Porque então não tombamos nós, pobres; responsáveis pelo
fundo pobre da paisagem? Os que serão esquecidos muito antes de
agonizar. Nós, que nunca fomos Capitão da absoluta camisa; e nunca o
seremos até a penúltima reencarnação. Por que  não  sucumbimos, o que
nos combina tão bem? Parece que essa é a nossa vocação, fácil. Não a
do Sr Ricardo Gomes.
              Eu ainda estou perplexo. É como uma obrigação, uma
perplexidade cívica. Enfim está em voga uma pergunta de justos e
cordatos, de tão poucas ocasiões. Eu vi o Sr Ricardo na ambulância
 – coisa feita para nós. Desde então estamos entregues e necessitados
da resposta: por que ele? Por que ele? Ele que é gentil e rígido como
a carnaúba. Ele que é um cavalheiro.
 
 

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