Dico, vamos jogar bola amanhã 20:30 h ?
Senhores, além de tudo ele foi um zagueiro fino, desses que ainda sai jogando. Até hoje é o nosso Capitão, da camisa absoluta, da Seleção Brasileira. Um soberbo no bom sentido da palavra; colosso involuntário. Por um tipo assim nossas mulheres nos largariam na véspera de o conhecer, ou deveriam nos largar. Já posso vê-las impassíveis enquanto colhemos as butucas no beco. A fama é esse jardim sintético; uma vitrine andarilha. Induz o coitado com frígidas sensações. O Homem se sente especial demais; chega a se sentir eterno e sem equívocos. É um Sol por sua conta. Seu mínimo instante não é mais remoto; nem seu tempo é comunhão. Vive uma inocência estelar. Até as rosetas se corrompem nos holofotes. Nesse meio insano, o Sr Ricardo Gomes é como a gentil e rígida carnaúba. Não é sempre que digo: carnaúba. É assim que elogio quando a empatia me foge do controle. Só chamo de carnaúba as minhas tias multifuncionais. Esse Senhor sobrevive nessa calçada da fama e às mentiras em flor. Sabemos que é um cavalheiro, desses que nos toleram. Um Hércules com estopo de Hércules. E é o perpétuo Capitão da mística camisa, a mais pesada. Jogavam Flamengo e Vasco no Estádio que nasceu para não viver os misticismos. Refiro-me ao superfaturado Engenhão, friorento em pleno Rio de Janeiro. O palco atual não importa como as lendárias camisas. Estão pesadas e sem vôo – o movimento fabular. Têm golas de pedra. Assim mesmo a partida se incendiava à parte, apesar do gramado demasiadamente terreno. Foi como se os brasões se reconhecessem subitamente. O gaúcho de um lado, o pernambucano do outro; através do trato à bola eram o milagre da unidade nacional, a língua pátria. Heróis de tantos feitos buscavam se anular. As caneleiras estavam mordidas. Eis que a bola debruçou-se sobre Ronaldinho, vinda das alturas – o que sempre tranqüiliza o craque. Foi perto da lateral, diante do banco do Vasco, onde estava Ricardo Gomes. O técnico agradeceu o adversário pelo domínio, como se a bola tivesse penas de pavão. É melhor ser rival de um cavalheiro do que irmão dos outros. O Gaúcho, sem a bola, ficou constrangido. O intervalo não seria providencial, o jogo buscava eternizar-se sem palco. O clássico estava operante. Mas no segundo tempo configurou-se a tragédia. Não seria se fosse comigo, ou provavelmente com o leitor – quanto mais o que não me perdoaria. Falo pelas leis das possibilidades e os homens não tendem a ser um cavalheiro e Capitão. Aos doze ou vinte um minutos tombou Ricardo Gomes ou não se mexeu. Fiquei em choque e sem compreensão; ele teve um derrame. De repente o sangue fez-se um manto por dentro da sua cabeça, íntimo ao ponto de sufocar suas idéias e movimentos. Teve um AVC; essa sigla sorrateira em meio às siglas dos Departamentos e times alagoanos - que agora soam brincalhonas. Se fosse com outro, com quase todos os outros, lamentariam ou não lamentariam. Reparemos que a tragédia não se apresenta pelo ocorrido. O mundo está cheio demais, humano até às alturas. Temos altos índices de invertebrados. Cada anoitecer é como o Salvador; descansa a terra e põe os homens na Cama. Diuturnos, fazemos da luz quadrantes divididos. Somos os Homens gafanhotos. A tragédia mais do que nunca se constata pelas virtudes traídas do protagonista. Digo “traídas” senhores, porque a providência trai; bem que trai. O destino é um déspota caprichoso e traiçoeiro, não distribui saúde ou felicidade por nossas leis claudicantes; não faz escambo com o merecimento. É um juiz anárquico, com fetiches infantis. Porque então não tombamos nós, pobres; responsáveis pelo fundo pobre da paisagem? Os que serão esquecidos muito antes de agonizar. Nós, que nunca fomos Capitão da absoluta camisa; e nunca o seremos até a penúltima reencarnação. Por que não sucumbimos, o que nos combina tão bem? Parece que essa é a nossa vocação, fácil. Não a do Sr Ricardo Gomes. Eu ainda estou perplexo. É como uma obrigação, uma perplexidade cívica. Enfim está em voga uma pergunta de justos e cordatos, de tão poucas ocasiões. Eu vi o Sr Ricardo na ambulância – coisa feita para nós. Desde então estamos entregues e necessitados da resposta: por que ele? Por que ele? Ele que é gentil e rígido como a carnaúba. Ele que é um cavalheiro.
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