da Agência Pública
Publicado em 24/06/2013
Ditadura criou cadeias para índios com trabalhos forçados e torturas
Por André Campos*
Acusações de vadiagem, consumo de álcool e pederastia
jogaram índios em prisões durante o regime militar; para pesquisadores,
sociedade deve reconhecê-los como presos políticos
Durante os anos de chumbo, após o golpe de 1964, a
Fundação Nacional do Índio (Funai) manteve silenciosamente em Minas
Gerais dois centros para a detenção de índios considerados “infratores”.
Para lá foram levados mais de cem indivíduos de dezenas de etnias,
oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. O
Reformatório Krenak, em Resplendor (MG), e a Fazenda Guarani, em
Carmésia (MG), eram geridos e vigiados por policiais militares. Sobre
eles recaem diversas denúncias de violações de direitos humanos.
Os “campos de concentração” étnicos em Minas Gerais
representaram uma radicalização de práticas repressivas que já existiam
na época do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – órgão federal,
criado em 1910, substituído pela Funai em 1967. Em diversas aldeias, os
servidores do SPI, muitos deles de origem militar, implantaram castigos
cruéis e cadeias desumanas para prender índios.
Os anos desde o fim da ditadura pouco contribuíram
para tirar da obscuridade a existência dos presídios indígenas. Um
silêncio que incomoda novas lideranças como Douglas Krenak, 30 anos,
ex-coordenador do Conselho dos Povos Indígenas de Minas Gerais (Copimg).
“Em 2009, recebi um convite para participar das comemorações, em Belo
Horizonte (MG), dos 30 anos da Anistia no Brasil. Havia toda uma
discussão sobre a indenização dos que sofreram com a ditadura, mas a
questão indígena não foi nem sequer lembrada”, reclama.
Douglas é mais um entre os que têm histórias
familiares de violência física e cultural sofridas nesse período. “Meu
avô foi preso no reformatório Krenak”, conta. “Chegou a ser arrastado
com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés”.
Para a pedagoga Geralda Soares, ex-integrante do
Conselho Indigenista Missionário em Minas Gerais (Cimi/MG), é
fundamental reparar a dívida com os indígenas vítimas de violências no
período – que, acredita ela, não difere daquela reconhecida como direito
de outros grupos que sofreram nos porões da ditadura. “Muitos desses
índios, na minha concepção, são presos políticos. Na verdade, eles
estavam em uma luta justa, lutando pela terra”, defende. Não existe, no
Brasil, nenhum indivíduo ou comunidade indígena indenizado pelos crimes
cometidos pelo Estado nessas áreas de confinamento.
“Se cabe para os outros, porque não cabe para os
índios?”, questiona Maria Hilda Baqueiro Paraíso, professora associada
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela lembra que há relatos de
pessoas desaparecidas após ingressarem em tais locais, cujos familiares
vivem até hoje sem qualquer tipo de resposta do Estado ou política de
reparação.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada pelo
governo federal em maio de 2012, definiu os crimes contra camponeses e
indígenas como um dos seus 13 eixos de trabalho. O balanço de um ano de
atividades da CNV, divulgado recentemente, informa que a existência de
prisões destinadas a índios é um dos seus objetos de pesquisa. A Agência
Pública entrou em contato para saber mais detalhes sobre as apurações
que estão sendo realizadas, mas a Comissão não se pronunciou.
Em 1965, o combalido Serviço de Proteção aos Índios
(SPI), afundado em denúncias de inoperância e corrupção, começou a
negociar um convênio com o governo de Minas Gerais, através do qual o
Executivo estadual assumiria a incumbência de garantir a ordem e a
assistência às aldeias locais. O acordo foi ratificado posteriormente
pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967. Assim nasceu
Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um “centro de recuperação” de
índios mantido pela ditadura militar no município de Resplendor (MG).
Sem alarde, o reformatório – por vezes também chamado
de Centro de Reeducação Indígena Krenak – começou a funcionar em 1969
em uma área rural dentro do Posto Indígena Guido Marlière. As atividades
locais eram comandadas por oficiais da Polícia Militar mineira, que,
após o estabelecimento do convênio, assumiram postos-chave na
administração local da Funai.
Nos anos seguintes, foram enviados para lá mais de
cem índios, pertencentes a dezenas de comunidades. Um mosaico de etnias
que incluía desde habitantes do extremo norte do país, como os índios
ashaninka e urubu-kaapor, a povos típicos do sul e do sudeste, como os
guaranis e os kaingangs.
Até hoje, muito pouco se divulgou sobre o que de fato
acontecia no local. “O reformatório não teve sua criação publicada em
jornais ou veiculada em uma portaria”, escreve o pesquisador José
Gabriel Silveira Corrêa, autor de um dos poucos estudos sobre a
instituição. “Seu funcionamento e a própria ‘recuperação’ lá executada
passavam pela manutenção do sigilo”.
Em 1972, o então senador pela Aliança Renovadora
Nacional (Arena) – partido de sustentação da ditadura – Osires Teixeira,
se pronunciou sobre o tema na tribuna do Senado, em uma poucas
manifestações conhecidas de agentes do Estado sobre o reformatório.
Afirmou que os índios levados ao Krenak retornavam às suas comunidades
com uma nova profissão, mais conhecimentos e saúde e em melhores
condições de contribuir com o seu cacique. “O Brasil tem sido vítima de
ignóbeis explorações de sua política indigenista por órgão da imprensa
no exterior, quando, na verdade, todos sabemos que o Brasil foi o único
país do continente que, para a conquista de sua civilização, jamais
dizimou tribos indígenas”, afirmou Teixeira.
Relatos atuais de ex-presos e familiares, no entanto,
revelam uma realidade muito diferente daquela descrita pelo senador da
Arena.
A sede do reformatório possuía duas edificações. Numa
delas ficava a administração, o almoxarifado e o alojamento dos
guardas. Já a outra era o reformatório propriamente dito. Dispunha de
cozinha e refeitório, além de duas celas individuais, dois confinamentos
coletivos e dois cubículos para detenção – estes últimos destinados a
encarcerar quem cometesse faltas graves no dia a dia correcional.
Pela manhã, após o desjejum, os “confinados” – jargão
utilizado para designar os índios – eram levados para trabalhos rurais,
que prosseguiam também depois do almoço. No fim do dia, numa rotina
tipicamente prisional, eram postos para dormir após o banho e o jantar
coletivo.
“Íamos até um brejo, com água até o joelho, plantar
arroz”, revela Diógenes Ferreira dos Santos, índio pataxó levado ao
Krenak em 1969. “Botavam a gente para arrancar mato, no meio das cobras,
e os guardas ficavam em roda vigiando, todos armados”, complementa João
Batista de Oliveira, conhecido como João Bugre, da etnia krenak. A
região onde foi instalado o reformatório era habitada pelos índios
krenaks, e muitos de seus representantes também foram presos.
A reportagem da Agência Pública teve acesso a
diversos documentos produzidos pelos policiais que comandavam as
atividades do reformatório – ofícios, telegramas e fichas individuais
que acompanhavam, mês a mês, o comportamento dos presos. Uma dessas
fichas, de um índio da etnia karajá, descrito como lerdo e preguiçoso,
deixa claro a obrigatoriedade dos trabalhos braçais. “É um elemento
fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Se pudesse, não faria
nenhum serviço.”
Outras formas de tratamento degradante, como, por
exemplo, escassez no fornecimento de comida, calçados e vestimentas,
também estão explicitadas nesses ofícios. “À tarde eles chegam do
serviço, tomam banho e vestem a mesma roupa molhada de suor”, escreve o
cabo da PM Antônio Vicente, então chefe do Posto Indígena Guido
Marlière, em telegrama de 1971, pedindo providências a seus superiores.
Em 1972, outro comunicado informa que se esgotaram
todos os alimentos locais. “Os índios confinados estão se alimentando de
pura mandioca e inhame. Considerando-se a precariedade da alimentação,
serão suspensos os trabalhos braçais.”
Homicídios, roubos e o consumo de álcool nas áreas
tribais – na época fortemente repreendido pela Funai – são alguns dos
motivos alegados para a transferência de índios ao Krenak. Além disso,
os documentos do órgão também citam brigas internas, uso de drogas,
prostituição, conflitos com os chefes de posto, indivíduos penalizados
pelo “vício de pederastia” e atos descritos, não raro de forma bastante
vaga, como vadiagem.
Segundo os registros oficiais, alguns índios
permaneceram por mais de três anos e havia indivíduos sobre os quais
desconhecia-se até o suposto delito. “Não sabemos a causa real que
motivou o seu encaminhamento, uma vez que não recebemos o relatório de
origem”, escreve o cabo Vicente, ao escritório central da Ajudância
Minas-Bahia da Funai, a respeito de um xavante, considerado de bom
comportamento, que lá estava há mais de cinco meses.
“Uma das histórias contadas é a de dois índios
urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam muito para que confessassem o
crime que os levou até lá”, explica Geralda Chaves Soares, que trabalhou
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Minas Gerais, e atua como
pesquisadora da história indígena no estado. “O problema é que eles nem
sequer falavam português”.
Surras com chicotes e o confinamento em solitária eram outros castigos aplicados, segundo os relatos colhidos pela pesquisadora.
Se comunicar em língua indígena, diz o ex-preso João
Bugre, era terminantemente proibido. “Você era repreendido, pois os
guardas achavam que a gente estava falando deles”, lembra. Situação
ainda mais difícil para aqueles que não sabiam português. “Tinha que
aprender na marra. Ou falava, ou apanhava”.
Bugre foi preso em 1970. O registro sobre o caso,
descrito nos documentos da Funai, afirma que ele transportou cachaça
para dentro da aldeia e se embriagou com outros índios. “João Bugre está
insuportável pelas desobediências que vem cometendo. Já faz juz a um
confinamento e está detido em alojamento separado”, relata o documento.
“Muitos, como eu, não tinham feito nada. Tomei uma
pinga. Será que uma pinga pode deixar alguém preso quase um ano?”,
questiona ele. Bugre afirma ter ficado preso no reformatório por cerca
de nove meses.
Além do consumo de bebida, também sair da área do
posto indígena era considera uma falta grave. “Meu avô chegou a ser
arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés, porque tinha
saído da aldeia”, revela Douglas Krenak. “Eu, uma vez, fiquei 17 dias
preso porque atravessei o rio sem ordem, e fui jogar uma sinuquinha na
cidade”, rememora José Alfredo de Oliveira, também índio Krenak.
São exemplos do comportamento comumente classificado
como “vadiagem” pelos representantes do órgão indigenista na época. Até
mesmo atividades tradicionais de caça e pesca fora dos postos indígenas –
não raro pequenos e impróprios para prover a alimentação básica –
podiam, segundo relatos, levar índios a temporadas correcionais.
Via de regra, os presos lá chegavam a pedido dos
administradores regionais das áreas indígenas. Mas, em alguns casos, por
ordem direta de altos escalões em Brasília. É o caso de um índio canela
encaminhado à instituição em julho de 1969. “Além do tradicional
comportamento inquieto da etnia – andarilhos contumazes –, o referido é
dado ao vício da embriaguez, quando se torna agressivo e por vezes
perigoso. Como representa um péssimo exemplo para a sua comunidade,
achamos por bem confiá-lo a um período de recuperação na Colônia de
Krenak”, atesta ofício emitido pelo diretor do Departamento de
Assistência da Funai, Lourival Lucena.
O depoimento do pataxó Diógenes Ferreira dos Santos sugere um outro motivo para a prisão de indígenas no reformatório Krenak.
Em meados da década de 1960, ele era apenas uma
criança no dia em que, conforme conta, viu dois policiais chegando à
Reserva Indígena Caramuru – um vasto território de Mata Atlântica, no
sul da Bahia, tradicionalmente ocupado pelos pataxós. Vieram acionados
por um fazendeiro, que reclamava ser o dono daquele local. “Tinha uma
árvore ali em frente (onde Diógenes vivia com seus pais), e eles
cravejaram de bala. Depois mandaram tirar tudo o que tinha dentro da
nossa casa, e meteram fogo nela”, diz.
Sua família migrou então para uma área próxima, onde
viveram “de favor” por cinco anos, instalando benfeitorias para um
fazendeiro. Até o dia em que o pretenso proprietário vendeu o local,
deixando-os novamente desalojados.
“Já que não tínhamos apoio de ninguém, decidimos
voltar ao Caramuru”, conta Diógenes. Expulsaram o novo ocupante local,
mas 15 dias depois novamente apareceram policiais, dessa vez incumbidos
de levar, Diógenes e seu pai, até a cidade mais próxima. “Disseram que o
Capitão Pinheiro (Manoel dos Santos Pinheiro, chefe da Ajudância Minas
Bahia da Funai) estava nos esperando”, lembra. “Ficamos então seis dias
presos na delegacia de Pau Brasil (BA), até que veio a ordem de nos
levarem para o Krenak”.
Nessa época, Diógenes era adolescente. Por ironia do
destino, ainda viveu para ver a Funai lhe dar razão em seu pleito. Em
1982, o órgão entrou com uma ação pedindo a declaração de nulidade de
todas as propriedades de não índios instaladas dentro da Reserva
Indígena Caramuru. Após anos de disputa judicial, o Supremo Tribunal
Federal (STF) decidiu, em maio de 2012, a favor dos índios.
Mesmo assim, Diógenes ainda sofre com esse passado.
“Eu não gosto nem de falar, porque me dá ódio. É difícil estar preso por
um erro. Trabalhando para sobreviver, ir pra cadeia?”, questiona.
Algumas mulheres krenaks, que chegaram a ser
recrutadas pelos policiais da Funai para trabalhar no reformatório,
também são tertemunhas das violências desse período. “Quem fugia da
cadeia sofria na mão deles”, afirma Maria Sônia Krenak, que foi
cozinheira no local.
Além dos espancamentos, há relatos sobre perseguições
acompanhadas de tiros, e de presos que nunca mais foram vistos. “Saiu
um bocado ali que não voltou mais”, revela.
Um dos desaparecidos é Dedé Baenã, ex-habitante de
terras no sul da Bahia, cujo sumiço é confirmado pelo depoimento de
índios e não-índios. Ofícios da Funai afirmam que, em agosto de 1969,
ele foi levado ao Krenak a pedido de um funcionário do órgão. O
documento o qualifica como um “índio problema”, violento quando
embriagado e dono de vasto histórico de agressões a “civilizados”.
Maria Hilda Baqueiro Paraíso, professora associada da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), realiza pesquisas há décadas
junto a comunidades indígenas da região. E revela uma versão diferente
para a prisão de Dedé Baenã. “Foi numa ocasião em que o Capitão Pinheiro
esteve na Bahia anunciando a suspensão da assistência aos índios
locais. Dedé se revoltou e fez um discurso contra a administração do
órgão. Saiu de lá já preso”, conta.
Após ingressar no reformatório, ele nunca mais foi
visto. “Diz-se que ele teria sido executado por um militar que fazia a
segurança dos índios presos na área Krenak”, comenta um indígena que
vive na região onde Dedé nasceu.
*André Campos, 31 anos, é autor de reportagens e
documentários investigativos e pesquisa há cinco anos as cadeias
indígenas da ditadura. Esta reportagem foi realizada através do
Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.
Enviado por Tamára Baranov, qua, 04/12/2013 - 07:39
- Atualizado em 06/12/2013 - 09:40
http://www.apublica.org/2013/06/ditadura-criou-cadeias-para-indios-trabalhos-forcados-torturas/
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