Na ponta do iceberg não cabe todo mundo
A imprensa
defende os seus. Ideologia, ao contrário do que a vasta maioria crê,
não existe apenas na esquerda. Se você não assume o discurso pela busca
de igualdades, você apoia o lado contrário. Silenciar não é abster-se.
Quando você silencia, o lado que está vencendo prevalece. A imprensa da
hegemonia tem suas ironias. Gasta minutos e espaço falando de protestos,
mas, no fim das contas, pede calma, passividade e aperta o cerco quando
a mesma crítica chega ao lucro de seus impérios. Jamais haverá Rede
Globo ao lado de manifestações. Jamais a RBS vai procurar abranger de
fato as reivindicações populares. No seu tronco, as manifestações lutam
contra as mesmas práticas da imprensa antidemocrática. RBS, associações
privadas de transportadores públicos e empresários lojistas seguem à
risca a mesma e única finalidade: lucrar. Pedir calma e paciência é jogo
bonito: bater é feio, quebrar é deselegante. Mas lucrar R$ 80 anuais
ilegalmente sobre cada passageiro não parece surpreender os
comentaristas. Seria jogo natural do mercado.
Rolezinho
não é visita ao shopping, como querem reivindicar os dois maiores
jornalões do Rio Grande do Sul em suas edições desta segunda-feira.
Correio do Povo e Zero Hora acharam de bom tom o protesto realizado em
um shopping da capital. Mas se passar das danças e das cantorias,
relembremos junho do ano passado: eles assinam com a polícia.
Diferentemente de São Paulo e do Rio, onde as mecas do consumo
desvairado fecharam as portas no domingo, em Porto Alegre, como contam
animados os jornais, houve dança, sorrisos e música. Praticamente, ambas
as reportagens contam como foi a tarde de 20 amigos no shopping. Podem
fazer isso todos os dias. Os donos do Moinhos Shopping, parte integrante
da elite da capital, jantam com Sirotsky e agradecem. O Correio do
Povo, para não ficar para trás, também foi ao ato, que virou passeio, e
estampou em sua capa: a paz reina nos shoppings de Porto Alegre. Ainda.
O já
esperado ano de 2014 iniciou antes mesmo do que muitos acreditavam. Os
rolezinhos foram um tapa na cara tanto da elite, que recrutava milhares
de policiais para os defender em junho, quanto dos próprios movimentos
organizados. Jovens da periferia invadiram os centros sem pautas
formuladas em documentos, nem mesmo prerrogativas pré-estabelecidas. O
jogo, agora, é mais bruto. E aí, a camada da sociedade que vive na ponta
do iceberg – e que procura não entender os atos de quem sempre viveu
afogado na base – leva um susto pela falta de potencial em entender. A
manutenção da riqueza nas mãos de poucos provém da ignorância de seus
consumidores.
O que os
rolezinhos estão deixando como maior demonstração é a incompetência das
elites em entender aquilo que foge de seu controle social. Por favor,
jovens pretos, pobres e sempre explorados, pedem as elites: não destruam
nossos shoppings. Sem eles, seus pais ficarão desempregados. E só. A
imprensa dos barões, como parte relevante da ponta do iceberg, segue o
mesmo caminho. Ano passado, pediam manifestações pacíficas. Agora, a
onda é mostrar que você faz rolezinho, mas é cordial com as lojas e
marcas que, em algum lugar do planeta, estão produzindo com mão-de-obra
barata, desumana, quando não escrava.
Manifestação
contra o aumento no preço dos transportes não é festa. É pancada no
sistema que rouba do trabalhador – o mesmo que percebe seu bolso
esvaziando ao entrar no ônibus. A tarifa de ônibus, em Santa Maria (RS),
por exemplo, cresceu 122% no mesmo período no qual a inflação foi de
58%. Pois bem: os empresários não sentem diferença alguma ouvindo palmas
do lado de fora da sala onde assinam – por mais um ano ilegalmente, sem
licitação – o aumento no preço dos transportes. E os donos da Marisa,
da C&A ou da Zara, âncoras dos centros comerciais, estão nem aí para
rolezinho elegante.
Estar
dentro dos shoppings, sem reivindicações drásticas sobre o fim do
trabalho escravo ou da exploração sobre funcionários, para eles não faz a
menor diferença. Já virou até mote de propaganda camuflada: em nosso
shopping você pode ter certeza de sua segurança. Na porta, seguranças
provenientes das mesmas localidades dos jovens, barram pessoas amparados
no preconceito. Ruim mesmo seria seus escravos se amotinarem. Mas as
contas no final do mês nos prendem ao trabalho. O ciclo é fechado e
viciado.
Com os
amigos empresários da imprensa, fortunas arrecadadas sobre a pobreza
geral de seus funcionários acabam parecendo ainda mais naturais. O
importante é empreender, diz a mídia, e completa: se você lutar, um dia
chega lá. Balela. Como disse Malcolm X, se você não for cuidadoso, os
jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar
aquelas que fazem a opressão. Nada mais real e atual do que os tempos de
rolezinho.
De quem
parece a culpa nessa história toda? Dos jovens sem espaço público,
filhos de trabalhadores por toda a vida explorados, sem potencial de
inserção no básico que um ser humano necessita para viver. Das marcas e
dos celulares feitos sobre mão-de-obra escrava, das mortes causadas pela
exploração desumana de recursos naturais para a fabricação dos bens
eletrônicos vendidos no ocidente, da troca desleal entre valor pago à
mão fabricante e custo dos produtos, a mídia não pode falar. Por ela
mesma, faz parecido. E ela mesma procura incessantemente a inserção cada
vez maior no mesmo sórdido mercado. Seus leitores, que vão ao shopping e
compram o produto vendido nas páginas dos jornais, não querem saber de
rolezinho. Com uma imprensa traiçoeira, tudo parece muito longe e a
culpa jamais é de quem lê. Não queremos rolezinho em nossos ambientes,
pedem. Aqui, somos todos civilizados. Deixem que os bárbaros se
digladiem no submundo: o que importa mesmo é manter nossa aparência
sobre a ponta do iceberg. Para tal, vale manter o grosso afogado na
desumanidade velada. Parece não ser, mas é ideologia, e se você não
busca enfrentá-la, está afogando alguém embaixo de você.
*Jornalista, redator da revista o Viés.
FONTE: http://jornalismob.com/2014/01/20/na-ponta-do-iceberg-nao-cabe-todo-mundo/ ACESSADO EM 22/01/2014
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