De um pau (cheio de sebo) vieste e ao pau (de arara) retornarás
Ouvidos se escondem sob toucas marcadas. O vento é frio na estação do inferno. Fumaça negra do lotação a marcar pouco mais de seis horas. Os dedos se esfregam em busca do fogo amigo. A serragem, levada pelo vento cortante, ao invés de auxiliar, atrapalha. Não bastassem a sujeira provocada pela tinta gouache de má qualidade mal-diluída e o tempo a ser perdido lavando roupas manchadas, sob clima de plena instabilidade, umas tantas horas já haviam se gastado a embrulhar tampinhas de vasilhames que um dia contiveram engarrafados líquidos embebidos em impostos.
Ninguém sabe o porquê de tal comemoração. Mesmo assim agradece a deus (aquele da letra maiúscula, da barba e cabelos brancos) pelo feriado. Isso é, não exatamente. Pertencentes a gentes cujo único patrimônio se resume às iniciais e às tarjas sobre a vista, estes pés quase descalços pelas rachaduras dos calçados, que desafiam o gélido alvorecer fronteiriço, são infantis. O limitado horizonte que provavelmente lhes proporcionarão até o fim de seus dias se restringe à fresta, tal e qual porcos tristes entre as grades de uma carreta a caminho do abate. Fossem perus, morreriam de véspera. Fossem minimamente alfabetizados, saberiam soletrar tal proparoxítona.
A ‘indocente’ profissional que os acompanha, mesmo sem ler Marx, sabe do valor de uso de sua boca e mãos. Ainda assim, segue ciente de que não receberá provimentos extras pelo, digamos, trabalho que faz nas ruas àquela hora. A fricção continua a ser a tônica para espantar do sonho a eternamente desestimulada existência. Mesmo sem querer, como cola, viscosa, escorre uma lágrima. O quase colóide mela o tapete. Vermelho? Só se for de sangue. Todavia, dia 28 certamente cai, movimentado que esteja, no sábado.
Dando sentido à posição de quatro, crianças fazem arte. Como presente, cada vez mais rapidamente caminham trôpegas, furtadas de seus futuros. Buscam e suplicam pelas bolsas, que rodam sem parar até o certeiro esvaziamento. Seguro que carece de abandono o seu rastejar no asfalto. O motivo é empurrado goela abaixo até o bucho vazio, tal que fosse mais simples que a vida de um incompreendido profeta crucificado na antiga Galileia: o senhor não quer e ponto!
Lá vem, lá vem, inimputável, tudo de branco. Ensinado a nadar com o tombo do navio, marolado de tanta viagem, há quem suspeite que os badalos fazem parecer três. Tem coca que já foi fanta assim como tem bispo que já foi padre. À exceção das hoje pouco estáveis alianças, a cerimônia remete a outra. Os que ali jazem pra ver, da bunda, as bandas passarem, juram de joelhos esfolados que, pra dar em casamento, basta da marcha a execução. “Qual delas”? Quebra-se o silêncio e enfim se faz ouvir a pergunta de um nada inculto, porém incauto regente que assistia a tudo.
Onde já se viu trazer à tona a memória de Richard Wagner, anti-exemplo do universo da solidez nupcial, hein, rapaz?! Não lhe bastasse isso, foi péssimo gestor da fortuna que fez como compositor, claro que no século XIX, época em que ainda era possível ficar rico fazendo música de boa qualidade. Pior, era tachado de revolucionário e criminoso, motivo pelo qual o exilaram, mas não sem antes ter o colegiado ministerial de dom Pedro II proibido sua vinda à Ilha de Vera Cruz.
No entanto, diz-se que tudo era fruto de um mal-entendido, uma vez que o alemão em voga apenas havia lutado por aumento de salários, direito à aposentadoria e bonificações para os músicos da orquestra que regia. Isso cheirou a pão com mortadela. Ao tentar se explicar, neguinho perguntador acabou por fazer da emenda algo pior que o soneto. Para não correr risco de dormir na chefatura e ver o sol nascer quadrado, precisaria ter a mesma habilidade pra contar histórias que Sherazade, a original.
Saiu então com a explicação de “Lohengrin”, ópera wagneriana que narra a saga do personagem homônimo às voltas do conúbio com Elsa. A peça contém o tema “Bridal Chorus”, que à revelia rendeu os famosos “com quem será” ou “até que enfim”. Aquele triunfar e a imponência da melodia que costumam borrar maquiagens por ocasião da comoção, na real, descrevem uma festa matrimonial inusitada, onde a fuga do protagonista após assassinar cinco convidados termina por matar de tristeza a noiva.
O próprio autor não entendia porque momentos supostamente tão felizes levavam à escolha de uma música assim, algo que teve origem na união da princesa inglesa Victoria com o príncipe prusso Frederick William, em 1858. Foi a primeira noiva a usar branco em ocasiões do gênero e a que consagrou o repertório dos casórios, colocando para a entrada a marcha de Wagner e para a saída a de Felix Mendelssohn, outro prodígio germânico que, mesmo tendo origem rica, morreu de depressão ironicamente após a cantora sueca Jenny Lind recusar seu pedido de enlace.
Compôs outra marcha. Nela, Oberon, o rei das fadas (eu disse fadas!), ardilosamente se vinga de sua inimiga Titânia colocando orelhas de asno no Duque Bottom, de quem a rainha se enamora por feitiço, fugindo com ele para a floresta. Durante a cerimônia de casamento, a poção causadora da deformidade deixa de fazer efeito e o ‘tagadadan’ é enfim tocado. Ao final, e não no início como fazem nos ritos tradicionais. Eis uma das treze danças de uma suíte composta sob encomenda para embalar uma peça teatral de William Shakespeare: “Sonhos de uma Noite de Verão”.
Mas era outono, meio de tarde, o cortejo a desfilar e um linchamento por acontecer. Momento em que surgem, peladões, dois tipos oriundos de uma casa de meretrício, de onde foram expulsos por falta de pagamento. “Despedida de solteiro”, exclamam em uníssono. E que música vão colocar na hora do altar? “A mulher gosta daquela do Kenny G”, referindo-se ao tema de Dying Young . Ou seja, morrer jovem. Allahu akbar!
Luciano d’Miguel ainda é o mesmo menino que, apesar de estudado em escola de freira, sempre foi faltoso em quintas de procissão. Hoje, é rapaz quase sempre respeitador, daqueles tipos total flex, pra casar e pra curtir.
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