sábado, 21 de maio de 2016

LUCIANO D'MIGUEL CRÔNICA

Bolo dálmata – O dono da voz

Afinal, quem nunca passou úmidas e nubladas manhãs da infância em frente aos chuviscos do televisor, tentando adivinhar quem era o autor da melodia que embalava as perseguições ambientadas num outro velho oeste das animações da produtora dos irmãos Warner?



Comimmm. Comimmm. Até ficarrr com dorrr no rimmm. Comi prrra me cerrtificarrr de que uma nuca a maish vai cherrarrr, vai cherrarrr, vai cherrarrr... Cherreeeeeiiiii, cherreeeeiiii! Como foi crrruel cherrar atchim!

Comimmm. Comimmm. Até ficarrr com dorrr no rimmm. Comi prrra me cerrtificarrr de que uma nuca a maish vai cherrarrr, vai cherrarrr, vai cherrarrr... Cherreeeeeiiiii, cherreeeeiiii! Como foi crrruel cherrar atchim!


Em conformidade ao disposto pelos Departamentos de Ordem Pública e Social, de Imprensa e Propaganda, bem como pelo Serviço Nacional de Informação, digo, atendendo a pedidos, segue aqui uma das receitas mais festejadas entre os leitores: a do bolo dálmata.
Primeiramente, para não despertar suspeitas, ligue o aparelho de som num volume alto, tão alto que não se possa escutar o vizinho enfurecido bater à porta e de maneira que o faça pensar que você tem costas quentes com a polícia, ou ainda, que em caso de ronda ostensiva, os policiais pensem que sua influência é grande a ponto de colocar em risco seus ainda estáveis cargos no serviço público.
O que ouvir? Rock? Siga nessa linha e muito em breve há de descobrir que coercitiva é muito mais que uma palavra da moda para qualificar um tipo de condução. Samba? Onde é que já se viu chamar a atenção para a cultura afro-brasileira numa hora dessas, ahn?! Sertanejo universitário? Volte 13 linhas. Sugestão do chef? Vá de som erudito, que provavelmente precisará ser chamado de música clássica toda vez que alguém perguntar o que é que você está ouvindo.
Dentre mil e tantos autores possíveis e os menos que poucos mais conhecidos, nada de apelar para Stravinsky e sua “Sagração da Primavera”. Seria um ultraje ao clima atual, tanto no termômetro de mercúrio quanto no de sangue. Alemães e austríacos, todavia geniais, também não pegam bem. Vai que erroneamente te convidam pra espancar um haitiano por aí, usando uma suástica no braço, ahn?!
Por que não Franz von Suppé? Embora se trate de um croata descendente de belgas criado na Itália e falecido em Viena, desbaratina para o francês sem maiores problemas, mesmo tendo este início de alcunha germânico, que talvez não soe tão familiar. Porém, a abertura “Cavalaria Ligeira” certamente soará.
Afinal, quem nunca passou úmidas e nubladas manhãs da infância em frente aos chuviscos do televisor, tentando adivinhar quem era o autor da melodia que embalava as perseguições ambientadas num outro velho oeste das animações da produtora dos irmãos Warner? “Muito prazer, fui eu quem fiz”, diria aquele compositor filho do ainda mais velho Leste… Europeu.
O conjunto da obra, faça-se justiça à memória de sua morte (que hoje completa 121 outonos), não se resume a isto. Além de sete óperas e vinte e sete operetas, ele, que não era o boto e muito menos o último romântico, compôs incontáveis marchas, polcas, valsas, peças sacras, comédias e farsas. Uma lástima que, quando muito, se reduza tudo a um único tema pros desenhos de Walter Lantz.
E por falar em pica-pau, ave de inimaginável sonoridade, esta semana o Brasil e o mundo dos ouvintes perderam um colossal cantante. Cauby é palavra particularmente exótica que não remete à Dalmácia, terra famosa pelos seus cachorrinhos que mais parecem pintados à mão. O dono de tal nome, ainda mais diferenciado por sua indumentária, cabelos e maquiagem sensacionais, foi também O Dono d’A Voz, ao menos durante os 85 anos de sua vida terrestre.
Conceição o fazia lembrar muito bem de que um dia vivera no morro a sonhar com coisas que o morro não tinha (e provavelmente ainda não tenha), a aludir às dificuldades passadas na infância niteroiense após a morte do pai, sendo ele caçula de seis irmãos. Considerado vistoso demais para um menino de sua época, muito em função da natação que o ajudaria a desenvolver uma privilegiada caixa torácica, teve questionada desde sempre a sua sexualidade, a qual gerava perguntas indiscretas de jornalistas e afins, sempre respondidas à maneira do Leão da Montanha.
Ano passado, enfim, aquilo que nunca havia sido mistério oficialmente deixou de ser. A história desse genial intérprete, ao qual tive a chance de prestigiar em 2013 durante impagável show integrante da programação da Virada Cultural de Curitiba, foi levada às telonas pelas mãos do cineasta Nelson Hoineff em seu “Começaria Tudo Outra Vez”. Entre particularidades exploradas no documentário, há referência aos seus casos tórridos com garotos do morro, por meio de histórias narradas pelo próprio retratado em tal fita.
Ah, ok, dirão que fita não é mais usada para definir filme, pois parece que já lançaram o CD. Mas o tempo aqui não é importante, pois parecia não castigar o veludo do barítono em questão, o qual lançou mais de cem discos em 65 anos, sempre com a mesma qualidade emprestada à sugestiva “Ninguém é de ninguém”, à singela “Laura”, à ousada versão do tema de “New York, New York”, jamais constrangendo qualquer Sinatra, e à incomparável “Bastidores”, obra de Buarque vitalizada por Peixoto que a esta hora já substituiu Suppé na vitrola.
E se, por conta disso, algum desconhecido de sobrenome Saldanha bater à tua porta mesmo assim, saiba que isto não é Impulse! Espero que para você a palavra xadrez continue sendo só o nome de um jogo ou um tipo de estampa como a da camisa da Croácia
Mas e a receita? Quantas porções rende, quais os ingredientes, qual o tempo e o modo de preparo? Ora, esta coluna não nasceu com tal finalidade. Digite na barra de endereços do oráculo mais conhecido da rede mundial de computadores as seguintestags: “bolo dálmata telefone”, acompanhado do nome da tua cidade. Muitos contatos aparecerão certamente. Clique no terceiro, por motivos numerológicos. Bom apetite!
Luciano d’Miguel é só um latido a ecoar entre mais de cem na multidão.
Fonte: http://zogg.com.br/2016/05/21/bolo-dalmata-o-dono-da-voz/

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