domingo, 1 de maio de 2016

QUEM TRABALHA É QUE TEM RAZÃO





Houstoun, we still have a problem. “Apenas” sete décadas após o suposto fim da escravidão em terras ianques, jovens deveras bronzeados pelo calor texano posam para foto de divulgação dos serviços prestados pela colônia penal de férias Darrington State Farm. 

 Por Luciano d'Miguel*

   Tilinta, repica, repenica. O ritmar do pingado a meiar o copo dito americano busca a batida perfeita junto aos tique-taques do carrasco de nome relógio. Aos chiados e tuíteres, o radialista manda avisar dos minutos, agora segundos, depois nem isso, que faltam para a ensurdecedora sirene da fábrica, a velha cigarra do bureau, o assovio agudo com os dedos indicador e mindinho no batente. Tantos elementos sonoros e nenhum tempo para organizá-los. Engolido de forma abrupta, o viscoso líquido suja a camisa comprada com dinheiro suado. O bonde já não está mais lotado. O bonde assim o é, em estado perene. Ir ou não ir, eis a questão da razão pelo tostão. Sobre o balcão de fórmica, muro da indecisão sem vergonha, o artista se decide quanto à rendição ao universo regido pelo capital do qual pensa não fazer parte.
   Este bem poderia ser o cenário em que Ataulfo Alves compôs um de seus clássicos e provavelmente reflete uma perturbação muito comum aos que têm na afinação, melodia e harmonia não somente sua fonte de renda, mas de vida. São Januário, não obstante sua mágica colina onde dizem viver um gigante, é uma entre tantas outras ruas de bairros das cidades brasileiras em que vivem trabalhadores dos mais variados segmentos produtivos. Quase todos mal remunerados, isso desde os tempos em que nossa república se chamava império. Entre eles, sem escape, o povo da música.
      Tocar nas bandas de quartéis, bordéis, templos e outros estabelecimentos similares requer, antes da paciência em aguentar os que tratam instrumentistas como juke boxes desumanizadas, a firma – mesmo sem caneta - com que o proletário admite ser mais um explorado nesse mundão afora, sem contar os engraçadinhos que volta e meia perguntam “com o que você trabalha de verdade”.  Não se enxerga, porém, que aqueles sobre o palco são apenas a ponta do iceberg de todo um processo que envolve técnicos de som, roadies, iluminadores, designers, produtores, entre outros. Tal arranjo movimenta bilhões de reais por ano em nossa economia, um mercado ao qual a tal crise parece estar distante.
      Se por um lado os medalhões das gravadoras não recebem mais tantos discos de ouro, platina e diamante, as facilidades de deslocamento, advindas do barateamento de passagens aéreas na última década, bem como de divulgação midiática pela rede mundial, aliadas à ampliação do número e da qualidade dos espaços para eventos, fez com que a quantidade de shows (e consequentemente os valores dos contratos) crescesse em progressão geométrica. Antes de lançar à baila a pouca profundidade argumentativa, lembremos que a queda na venda de mídias como CD e DVD se dá mais em função de fatores culturais, os quais levam aos downloads de material pirata, que por falta de dinheiro. Haja vista que comumente diversos produtos culturais são baixados livre, irrestrita e descontextualizadamente em dispositivos com custo médio de dois salários mínimos.
      Em tempo, cada um dos brasileiros que compõem os três quartos mais pobres de nossa população tem esse mesmo valor como teto remuneratório. Não tiveram a mesma sorte os ancestrais africanos de muitos de nós, trazidos a “trabalhurismo” para o então novo continente. Na bateria descompassada das velhas senhoras que quebram castanhas em Itabaiana, no lamento dos pretos velhos que parecem ainda mais senis ao arrastar os dantescos ramos de babaçu em Codó, no estalar precoce das costas das crianças carregadoras de fardos de carvão em Nova Crixás ou, sem ir muito longe, de erva-mate em Bituruna, em toda esta triste percussão ecoam hoje os passos daqueles escravos.
       Na tentativa vã de diminuir seu sofrimento, cantavam a fim de espantar os males (como versa o ditado popular) ou de esperar que o tempo de suas duras sinas viesse a passar. Ricas memórias de uma absurda pobreza que não se quer lembrar, nossos cantos de lavadeiras e sons do Urucuia possuem aí suas raízes, tal e qual em outros países latino-americanos ainda se encontram traços estéticos das trilleras, mineras, tarantas e cantes de fragua, isso sem contar as famosas work songs estadunidenses, que também foram fonte de beber ao blues. Sim, aquele mesmo que embala a noite de um outro balcão, desta vez de mármore, onde um cinzeiro cheio de bitucas e bagas de toda ordem faz companhia a um copo cheio de gelo com whiskey bourbon, tudo (muito bem) pago pelo jovem desocupado caucasiano de alta estirpe que planeja sua próxima ida a Miami. “Só pra aproveitar o feriado de 1o de maio”, pontua.

*Luciano d'Miguel é músico, ator, jornalista e produtor cultural de formação e profissão.


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