Por Luciano d'Miguel*
Tilinta, repica, repenica. O
ritmar do pingado a meiar o copo dito americano busca a batida perfeita junto
aos tique-taques do carrasco de nome relógio. Aos chiados e tuíteres, o
radialista manda avisar dos minutos, agora segundos, depois nem isso, que
faltam para a ensurdecedora sirene da fábrica, a velha cigarra do bureau,
o assovio agudo com os dedos indicador e mindinho no batente. Tantos elementos
sonoros e nenhum tempo para organizá-los. Engolido de forma abrupta, o viscoso
líquido suja a camisa comprada com dinheiro suado. O bonde já não está mais
lotado. O bonde assim o é, em estado perene. Ir ou não ir, eis a questão da
razão pelo tostão. Sobre o balcão de fórmica, muro da indecisão sem vergonha, o
artista se decide quanto à rendição ao universo regido pelo capital do qual
pensa não fazer parte.
Este bem poderia ser o cenário em
que Ataulfo Alves compôs um de seus clássicos e provavelmente reflete uma
perturbação muito comum aos que têm na afinação, melodia e harmonia não somente
sua fonte de renda, mas de vida. São Januário, não obstante sua mágica colina
onde dizem viver um gigante, é uma entre tantas outras ruas de bairros das
cidades brasileiras em que vivem trabalhadores dos mais variados segmentos
produtivos. Quase todos mal remunerados, isso desde os tempos em que nossa
república se chamava império. Entre eles, sem escape, o povo da música.
Tocar nas bandas de quartéis,
bordéis, templos e outros estabelecimentos similares requer, antes da paciência
em aguentar os que tratam instrumentistas como juke boxes desumanizadas,
a firma – mesmo sem caneta - com que o proletário admite ser mais um explorado
nesse mundão afora, sem contar os engraçadinhos que volta e meia perguntam “com
o que você trabalha de verdade”. Não se
enxerga, porém, que aqueles sobre o palco são apenas a ponta do iceberg de todo
um processo que envolve técnicos de som, roadies, iluminadores,
designers, produtores, entre outros. Tal arranjo movimenta bilhões de reais por
ano em nossa economia, um mercado ao qual a tal crise parece estar distante.
Se por um lado os medalhões das
gravadoras não recebem mais tantos discos de ouro, platina e diamante, as
facilidades de deslocamento, advindas do barateamento de passagens aéreas na
última década, bem como de divulgação midiática pela rede mundial, aliadas à
ampliação do número e da qualidade dos espaços para eventos, fez com que a
quantidade de shows (e consequentemente os valores dos contratos) crescesse em
progressão geométrica. Antes de lançar à baila a pouca profundidade
argumentativa, lembremos que a queda na venda de mídias como CD e DVD se dá
mais em função de fatores culturais, os quais levam aos downloads de
material pirata, que por falta de dinheiro. Haja vista que comumente diversos
produtos culturais são baixados livre, irrestrita e descontextualizadamente em
dispositivos com custo médio de dois salários mínimos.
Em tempo, cada um dos brasileiros
que compõem os três quartos mais pobres de nossa população tem esse mesmo valor
como teto remuneratório. Não tiveram a mesma sorte os ancestrais africanos de
muitos de nós, trazidos a “trabalhurismo” para o então novo continente. Na
bateria descompassada das velhas senhoras que quebram castanhas em Itabaiana,
no lamento dos pretos velhos que parecem ainda mais senis ao arrastar os
dantescos ramos de babaçu em Codó, no estalar precoce das costas das crianças
carregadoras de fardos de carvão em Nova Crixás ou, sem ir muito longe, de
erva-mate em Bituruna, em toda esta triste percussão ecoam hoje os passos daqueles
escravos.
Na tentativa vã de diminuir seu
sofrimento, cantavam a fim de espantar os males (como versa o ditado popular)
ou de esperar que o tempo de suas duras sinas viesse a passar. Ricas memórias
de uma absurda pobreza que não se quer lembrar, nossos cantos de lavadeiras e
sons do Urucuia possuem aí suas raízes, tal e qual em outros países
latino-americanos ainda se encontram traços estéticos das trilleras,
mineras, tarantas e cantes de fragua, isso sem contar as famosas work
songs estadunidenses, que também foram fonte de beber ao blues. Sim, aquele
mesmo que embala a noite de um outro balcão, desta vez de mármore, onde um
cinzeiro cheio de bitucas e bagas de toda ordem faz companhia a um copo cheio
de gelo com whiskey bourbon, tudo (muito bem) pago pelo jovem desocupado
caucasiano de alta estirpe que planeja sua próxima ida a Miami. “Só pra
aproveitar o feriado de 1o de maio”, pontua.
*Luciano d'Miguel é músico,
ator, jornalista e produtor cultural de formação e profissão.
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