sábado, 16 de maio de 2020

PANDEMIA DE CORONAVÍRUS





Por que os céus claros do confinamento não são uma boa notícia para o planeta

Nem as águas limpas dos canais de Veneza. Nem as fotos de animais conquistando a cidade





Irrelevante, insignificante, trivial. Esse é o efeito da redução dos gases poluidores (fundamentalmente, dos carros e da indústria) no aquecimento global. Aqueles que vociferam que o novo coronavírus deu um respiro ao planeta, como se espera que prove um céu azul claro poucas vezes visto em cidades poluídas, estão misturando conceitos, como o de qualidade do ar e mudança climática. “O primeiro tem a ver com emissões que nas cidades vêm, principalmente, do tráfego. Aí realmente veremos benefícios na saúde a curto prazo, pois caíram muito pelo confinamento. Mas, se o assunto é mudança climática, o importante é o CO2, cujas emissões quase não caíram a nível mundial”, diz Julio Díaz Jiménez, cientista titular na Escola Nacional de Saúde no Instituto de Saúde Carlos III (ISCIII).
E continua: “De fato, há somente três dias batemos um novo recorde de PPM na atmosfera [unidade que mede a concentração de dióxido de carbono]. A pandemia não mudou nada”. E mais, foi postergada, por segurança, uma importante reunião que verdadeiramente poderia ter feito algo para evitar secas, incêndios e catástrofes, a Conferências das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (COP26), em que os países se dispunham a aumentar seu compromisso contra o aquecimento global (até agora, insuficiente). No melhor dos casos só ocorrerá em novembro de 2021.
Não há copo meio cheio que chegue. Enquanto algumas previsões dizem que os estragos do coronavírus farão com que finalizemos o ano com uma queda nas emissões de CO2 de 5%, o necessário é chegar a 7,6% durante dez anos (ou, pelo menos, quedas de 10% mensais nos próximos 12 meses). As conversas para tentá-lo ―agora sepultadas pela urgência da situação― eram muito mais importantes do que essa parada forçada, concordam os especialistas. E meses de negociações foram perdidos... Também não é tão idílica essa nova imagem dos canais de Veneza com águas límpidas e transparentes (até peixes foram vistos). “Sem medições é impossível saber se é pela qualidade da água ou se, pela falta de barcos, os sedimentos não se removem e permanecem no fundo”, afirma Davide Tagliapietra, do Instituto de Ciências Marinhas da Itália.

O plástico sai de seu esconderijo

De acordo com a Bloomberg, nos EUA se passou uma semana entre o primeiro caso de covid-19 e a proibição da Starbucks de que seus clientes levem xícaras de casa para beber seus cafés. Os copos de plástico descartáveis se tornaram obrigatórios por motivos de saúde. A empresa editorial e de assessoria financeira lançou por sua vez um relatório pormenorizado no qual anuncia uma etapa dourada à indústria das embalagens do até bem pouco tempo desprezado material, “já que suas alternativas ecológicas apresentam dúvidas de higiene e segurança”.
Para não falar da altíssima demanda de máscaras, luvas, papel filme transparente e outros artigos muito procurados. O Greenpeace tem certeza de que a poluição por plásticos será um dos assuntos de sua agenda durante a gestão da crise. As corridas aos supermercados não ajudam. “Não temos dados, mas é evidente que há um aumento do consumo de produtos embalados em plásticos descartáveis”, diz a ONG.

Não está tudo perfeito aos animais

Pode parecer, pelas imagens de patos, javalis e cabras perambulando por locais até pouco tempo monopolizados pelos avarentos humanos (não acredite em todas: atenção ao fascículo, que você pode encontrar no PDF do novo número de BUENAVIDA, em espanhol, disponível grátis nesse link). São muitas as espécies, entretanto, que sofreram pela ausência de pessoas durante o confinamento (e continuarão sofrendo no que, previsivelmente, está por vir).
Como denunciou há pouco uma reportagem da revista Wired, qualquer animal com chifres na África, como é o caso dos rinocerontes, hoje corre mais riscos de ser caçado. “[Pela destruição dos empregos dos guardas florestais], se perderá todo o trabalho de conservação feito nos últimos dez anos na região”, avalia, na reportagem, um porta-voz da ONG The Nature Conservancy. É um lamento generalizado de todos os que se dedicam à conservação de espécies, de aves à fauna marina: com laboratórios fechados e fundos paralisados, seu trabalho está em perigo.
A fauna urbana, por sua vez, não está melhor. “As colônias de gatos, os patos, pavões-indianos de alguns parques e as pequenas aves que comem as sobras dos terraços estão desamparados”, afirmou Matilde Cubillo, presidenta da Federação de Associações Protetoras e de Defesa Animal da Comunidade de Madri, ao EL PAÍS. Nos abrigos de animais, não há adoções e voluntários.

Então não há esperança ao meio ambiente?

O cientista Julio Díaz, chefe do departamento de Epidemiologia e Bioestatística do ISCIII, lança uma luz sobre o momento crucial ao planeta: “Aprendemos que a saúde pode vir antes da economia. E a defesa do meio ambiente é uma defesa da saúde: não se entende um sem o outro. Mas precisamos lembrar disso após a recessão, e não continuar com o ritmo de crescimento e emissões tão selvagem que fazíamos”.
A questão mais espinhosa: a crise econômica que se espera com a pandemia pode ser uma oportunidade para realizar a transição energética ou se transformará na desculpa perfeita para deixá-la para trás? Díaz tenta, com dificuldades, ser otimista... “Já tenho certa idade. E a história nos diz que ocorrerá a segunda opção. Nos EUA, Donald Trump anunciou que relaxará as leis ambientais à indústria automotiva para diminuir a recessão. A China já emite gases poluidores pelo tráfego no mesmo nível do que antes da pandemia. Ainda assim, escolhi acreditar”. Gestos individuais? Também os espera: “Acredito que tenhamos aprendido que a bicicleta é um grande meio de transporte, e que não é preciso pegar um avião quando é possível se reunir pela Internet”.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

CRISTO E A VIOLÊNCIA




por Cesar Roberto Scheffler

            
Certa ocasião, quando questionado sobre quantas vezes se deve perdoar ao próximo, Jesus ofereceu por resposta uma cifra exata, que nos dá margem para pensarmos que realmente o perdão também cansa de perdoar. Porém, se nos dermos conta do quão improvável seria que alguém nos ofendesse uma quadringentésima nonagésima primeira vez compreenderemos que, por essa fórmula, o mestre aconselhava a perdoar sempre.
            Noutra vez admoestara a que, se alguém nos esbofeteasse em um lado do rosto, lhe voltássemos o outro. Se nos tomassem a capa, que cedêssemos também a túnica. Chegara mesmo ao extremo de afirmar que deveríamos amar aos nossos inimigos. E claro está, em tal caso, que seriam inimigos unilaterais, pois por nossa vontade, seríamos amigos. Julgo, com segurança, que todos seus ensinamentos apontam para uma doutrina de amor e não violência.
            Por que, então, a cristandade ao longo dos séculos sentiu-se, com tanta frequência, e ainda hoje se sente, justificada em certas práticas da violência? Não encontro - e creio que, até num exame mais detalhado da pregação do filho do homem, não poderia ver - alguma resposta ou máxima que realizasse o elogio da violência. Apesar disso, várias situações constantes nos evangelhos mostram-nos um messias indignado, que usa de violência verbal, e há pelo menos um exemplo do uso da violência física.
            Essa aparente incongruência no que toca à prática daquele que pregou um amor incondicional, pode se tornar coerente aos olhos de alguns, por uma certa hierarquia entre os entes amados. O amor a deus seria prioritário, podendo impor-se sobre a obrigação de amar aos outros seres humanos. Para outros, Cristo não foi violento, apenas disse a verdade. No entanto a mesma poderia ter sido dita com suavidade.
            O “Rabi” preferiu, por vezes, com seus oponentes, lançar verdades à cara como tapas. E porque a verdade, pronunciada com dureza, maltrata mais que a mentira, são violentas as palavras proferidas com rude franqueza. Me sinto muito inclinado a ver, nesses eventos, a fraqueza e vacilações de um homem, que como os outros, é imperfeito se observado à parte do todo.
            Aqui, sei que meu posicionamento levantará resistências: irão me dizer que, de um ponto de vista cristão, não se pode admitir que, sendo ele Deus, houvessem sua vontade e razão sucumbido à lassidão da carne. Pois seja, não pretendo levantar essa questão, e sei que em nada há de prejudicar meu raciocínio se fizer tal concessão. Pretendo, na medida do possível para mim, que sou leigo, conduzir meu pensamento sem maiores contradições com a fé declarada nos credos.
            Se, no entanto, nos recusarmos a admitir uma falha, e, considerando que nada em sua pregação nos esclarece a respeito de quando a violência se torna admissível ou recomendável, suponho não nos restar melhor recurso do que o estudo das ocorrências e recorrências de agressão da parte dele, para deste modo estabelecermos um padrão, extrairmos sua essência.
             E para que haja um certo método em nossa abordagem, convém que comecemos pelo início: qual, das duas formas indicadas de violência, física ou verbal, aparece primeiro nos evangelhos? Vemos que, a exceção do evangelista João, todos mostram primeiramente a forma verbal da agressão. Justo a forma mais frequentemente adotada pelo Nazareno. Se a isso acrescentamos que a violência física ocorre apenas num único episódio, o qual é relatado nos quatro evangelhos, notamos que embora tenha sido um evento relevante, por ser ímpar não nos permite determinar um padrão, descobrir por sua análise direta o que teria sido decisivo para desencadear o ocorrido. Certamente teremos de principiar pela forma verbal.
            Essa teria sido recorrente nas disputas com os escribas, intérpretes e professores da lei judaica, tanto fariseus como saduceus. Seria retaliações, segundo consta no novo testamento, às tentativas desses de levá-lo a contradizer-se ou comprometer-se perigosamente por suas palavras. Tentativas essas que são, alegadamente, fruto de inveja e de interesses contrariados. E embora a temática desses embates filosóficos seja variada, o desfecho é bastante previsível: a desconstrução dos sofismas e uma descompostura a que são submetidos seus oponentes, por meio de parábolas, silogismos e por vezes, algum insulto. Mas o que o filho do altíssimo condena com veemência, exprobações e até vitupérios é sempre o mesmo, a hipocrisia. É a falsidade que o faz perder a paciência com esses senhores.
            Poderiam citar-se vários exemplos, enumerados por capítulo e verso, muitos parágrafos de referências. Mas me parece desnecessário. Aos que demonstrarem quaisquer dúvidas, remeto-os à leitura dos evangelhos, e declaro-me francamente aberto a uma amigável discussão. Porém, para o propósito deste texto, darei por demonstrada a afirmação que fiz no tocante a ser a falsidade o único pecado combatido com a violência verbal pelo peregrino pregador. Evoco a frequência com que emprega o termo hipócritas ao referir-se ou dirigir-se aos principais sábios e guardiões da palavra, seus adversários costumeiros, que segundo ele, teriam fechado o acesso do reino de deus aos homens.         
            Certos da motivação exclusiva da primeira forma de violência, verifiquemos o nosso exemplo do segundo tipo. Falo da “purificação do templo”. De que se trata aqui, senão da expulsão, do pátio do templo, de toda uma cadeia de comerciantes ligados às práticas religiosas da época, bem como seus consumidores? São de um lado, comerciantes responsáveis pela venda de animais de várias espécies, conforme referidas na lei mosaica, cambistas que possibilitavam a troca das variadas moedas que ali se usavam, e de outro, os fiéis que vinham ao templo para ofertas de agradecimento, sacrifícios de expiação, entre outros deveres estabelecidos pela lei religiosa judaica. Aparentemente, como nos indica a referência reiterada ao profeta Oséias (misericórdia quero, e não holocaustos), o filho de Maria não julgava necessários os sacrifícios e muitas outras atividades que exigiam os préstimos dos sacerdotes e resultavam em sua opulência e influência secular. Estava certo de que aqueles comerciantes e sacerdotes lucravam com coisas dispensáveis que foram inculcadas nos que ali adoravam. E reprovava severamente a falsidade que,  tendo se apoderado da religião e das leis, explorava a boa fé para a obtenção de riqueza e poder. Daí a sua ira, à qual dá vazão sobre os lombos dos que vendiam e compravam, até dispersá-los com um azorrague de corda.
            A violência do galileu, é um caso extremo, de defesa da religião contra a mentira. Mesmo diante dessa reação brutal, subsiste o fato de que Jesus nunca elogiou nem orientou para a violência. Mesmo quando aconselhou, depois da última ceia, que levassem consigo espada, fê-lo com o único propósito de que se cumprisse a escritura. E quando, empregada a espada, cortou-se a orelha do servo do sumo sacerdote, não apenas ordenou que cessasse a ofensiva, como sarou o ferido.
            Estabelecidos assim alguns pontos sobre a relação do redentor com a violência, tais como a exaltação da mansidão e do amor, a reação violenta apenas diante da falsidade e a reprovação irada da exploração comercial da fé, e, olhando para a atualidade no Brasil, terra em que a hegemonia cristã é indiscutível, surgem algumas questões inevitáveis. Como é possível, aos cristãos brasileiros aceitarem o apelo às armas, supondo lícito e coerente com a fé cristã, matar para defender suas vidas e seus bens? Como é possível aos cristãos do nosso país considerarem aceitável que tanta coisa se venda, pelas igrejas, como itens santificados, ungidos? Como é possível que tantos sacerdotes cristãos ponham-se em aliança com César, abrindo espaço para o mesmo nos cultos, descuidando das obrigações assumidas com Deus? Como é possível que tantos cristãos prestem lealdade a quem sempre realizou a apologia da violência ao invés da mansidão e ainda assim se diz cristão? Como é possível que, sendo cristãos, aceitem a inversão da pregação de Cristo, louvando o violento e reverenciado o falso?
            E se ao final me perguntam porque decidi levantar essas questões sobre os cristãos e o cristianismo moderno, não vos respondo com as palavras do que reconhecem como salvador: “Vim para lançar fogo sobre a terra, e bem quisera que já estivesse a arder”. Até porque já está. Digo apenas que o faço no interesse destes. Pois embora seja admirável o seu ardor, creio que seria recomendável revisitarem a palavra que lhes serve de fundamento, para que não se dê o caso de, um dia, verem lançada aos seus rostos a pecha da hipocrisia.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

BRASIL X SOCIEDADE


O Jair que há em nós



O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.

*Publicado originalmente no blog do autor em 28022020

quinta-feira, 7 de maio de 2020

ISMOS E ABISMOS*


            COMUNISMO. Começo este texto justamente com essa palavra. Sei que é impossível, para a grande maioria de nós, evitar a associação com determinados regimes históricos e autores determinados, atrocidades e subversão da ordem.  Sei que muitos não podem mesmo evitar sentimentos negativos que vão do desconforto à raiva, passando, talvez, pelo medo. E é por isso que proponho a palavra como ponto de partida. E faço uma pausa para permitir ao leitor que se aperceba dos efeitos que esta causa nele próprio…
                                                                                                         …
                                                                                                                                     …
            Retomando o curso, sei que todos possuímos relações, mais ou menos subjetivas, com o vocábulo. Mas sabemos, de fato, o significado objetivo do termo?
            Comunismo: “Sistema econômico e social baseado na propriedade coletiva”. E só. Esta é a definição que consta no mini dicionário Aurélio que eu utilizava quando, nos idos dos anos oitenta, frequentava a escola primária. Sei, entretanto, que a maioria dos dicionários, impressos ou digitais, traz no lugar ou em adição a esse, uma série de significados mais ou menos pejorativos (o que dificilmente acontece quando se trata de definir capitalismo). Peço-vos que nos atenhamos à anterior, certamente a mais sucinta e objetiva, conforme convém que sejam as fornecidas por um dicionário. Pois é o que convém aos que desejam refletir racionalmente.
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            CRISTIANISMO. Uma pequena distância o separa do anterior. No dicionário, claro. Basta avançar umas poucas páginas, e lá o encontramos. Naquele citado, 16. Na nossa história recente e vida cotidiana, quão intransponível espaço, e repleto de obstáculos, interpõem-se entre ambos. Menciono esta distância por ter assistido um vídeo recente, em que um pastor pede aos fiéis que orem para não nos tornarmos comunistas. Essa postura das igrejas não é novidade, e padres já manifestaram-na, há décadas, por outros veículos. Parecem palavras irreconciliáveis…
            Mas o que nos diz o dicionário, esse concílio das palavras?
            Cristianismo: “Conjunto das religiões cristãs, i. e., baseadas nos ensinamentos, pessoa e vida de Jesus Cristo.” É o que consta no mesmo livreto. Conforme julga a grande maioria dos brasileiros, vivemos numa sociedade cristã. E todo cristão possui alguns deveres, resumidos com admirável concisão pelo seu mestre: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e o primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.” O dever do cristão é amar.
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            SOCIEDADE. Aqui damos um salto gigantesco. No pequenino dicionário, mais de trezentas páginas. Na realidade concreta, a distância é ainda maior. E tem de ser, posto que na sociedade, por paradoxal que vos pareça, cabem cristianismo, comunismo e muitos ‘ismos’ mais. A sociedade é o espaço onde praticamos nossas convicções. Onde vivemos aquilo em que de fato cremos...
            Prossigamos com nossa pesquisa. Que nos diz o coletivo das palavras?
            Sociedade: “1. Agrupamento de seres que vivem em estado gregário. 2. Grupo de indivíduos que vivem por vontade própria sob normas comuns. 3. Meio humano em que o indivíduo está integrado. 4. ...”. Aqui o dicionário nos deixa a ver navios. Obviamente uma sociedade humana é muito complexa e cheia de contradições, tão ampla que não caberia numa coleção de dicionários. E afinal, porque teríamos de nos perder por divagações intermináveis. Podem estar certos de que não pretendo abordar em poucas linhas o que não se esgota em um compêndio. Quero deixar-lhes, após breve digressão, uma questão ao encargo de suas consciências. Por isso as palavras anteriores.

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            A digressão limita-se à sociedade brasileira. Uma sociedade dita cristã. E é evidentemente necessário admitirmos que sua organização assume configuração conforme às ideias dominantes na coletividade. Porque essas, por meio de todos os atos que delas derivam, acabam por determinar a norma comum, sob a qual nos congregamos, e o meio em que estamos integrados. A forma como nos relacionamos e efetuamos nossas trocas. Se depreende daí que convivemos como cristãos. Será?
            Esta pergunta não pode ser respondida sem antes postularmos um padrão segundo o qual se desenvolvam os grupos com base na ética cristã. Poderíamos ter por resultado uma infinita querela em torno dos desdobramentos do amor na vida econômica dos indivíduos e suas consequências ao nível da sociedade. Felizmente a questão encontra uma solução bastante simples, caso nos debrucemos sobre a história da igreja primitiva.
            Refiro-me ao livro dos Atos dos Apóstolos. É lá, dentro da própria bíblia, que encontramos breves descrições, pouco detalhadas, mas claras, de como viviam os convertidos. E quem poderia fornecer um retrato mais fiel da comunidade conforme as ideias do Cristo do que aqueles que conviveram com ele, sob sua instrução?
            Assim, em Atos 2:44 temos: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum”. O versículo 45 segue, dizendo que “Vendiam suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.” O capítulo quarto, entre os versículos 32 e 35, retoma o assunto, reiterando-se o já dito: “Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das cousas que possuía; tudo, porém, lhes era COMUM”. Segue o texto, afirmando que os valores das propriedades e bens vendidos depositavam-se “aos pés dos apóstolos”, donde se pode concluir que estes eram os administradores, os responsáveis pela partilha. Logo, os bens COMUNS, eram administrados por um conjunto de pessoas, uma espécie de conselho, portanto, uma instituição.
            Será necessário que eu lhes faça notar a semelhança desta descrição com a definição de COMUNISMO?

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            Encerro essa exposição com a questão que lhes desejava propor. Realmente não quero aqui sustentar a necessidade de nos tornarmos comunistas. Venho apenas perguntar-lhes o que houve com o cristianismo, passados dois milênios, para que julgassem os cristãos, extremamente necessário, combater o que antes praticaram. 




*Texto escrito por Cesar Scheffler como contraponto a 'A Virgem do Cabaré', publicado no jornal O Presente, de autoria de Arno Kunzler.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

A VIRGEM DO CABARÉ





Controvérsia Sobre “A Virgem do Cabaré”**


            Foi anteontem que, folheando um periódico de Tão Tão Distante datado de 28 de abril de 2020, deparei-me com uma picaresca história emoldurada em azul. O relato fazia fuxicos da alta sociedade do lugar, tendo por enredo as relações de uma louvável senhorita e um senhor, seu corruptor. O autor, embora em tom um tanto jocoso, parecia interessado em defender a honra, virtude e bom nome da moça, assinando embaixo da inacreditável versão desta para os fatos. Talvez por demasiado cinismo meu, quiçá por uma pitada de malícia da parte do referido cronista, o efeito foi expor ao ridículo, como pretensa, a ingenuidade da debutante, sua indignação de rapariga traída pela má-fé de um ladino alcoviteiro. Seja qual for o caso, não me interessa no momento conjecturar a respeito das intenções implícitas ou sub-reptícias do texto.
            O caso para mim é fazer caso. Agrada-me dar aso aos comentários apócrifos, que se murmuram à boca pequena, fofocas, boatos. Ventilar versões, mesmo fantasiosas, pois podem bem ter o seu quê de verdade.
            E as versões certamente são muitas. Há quem diga, por exemplo, que o tal cabaré, em verdade é caserna. Outros juram ser convento; creem mais alguns que, não o sendo, era nisso que a moça pretendia transformá-lo, com as boas graças do proprietário. O que viria a calar a boca dos maledicentes que apressavam-se em perguntar: “Mas se era tão íntegra, tão recatada, que é que estava fazendo lá, como aceitou ser apresentada como atração principal do cabaré, garota propaganda, isca para os incautos?” Devo reconhecer que é um tanto insólito.
            Aliás, segundo o dono do estabelecimento, ela se casou com ele (casou, mas não consumou?). Casamento, aliás, polígamo e, conforme os relacionamentos anteriores deste deixavam entrever, fadado a acabar cedo e mal, caso a cônjuge não abdicasse da vontade própria e independência, o que, a donzela sempre afirmou, repudiaria com veemência. O fato é que a garota (tão resoluta e voluntariosa quanto pundonorosa e dada à leitura de biografias) tolerou por um bom tempo o relacionamento com suas truculências, aceitando ingerências no seu espetáculo e interdições em suas performances, antes de notar que tais ambientes e companhias maculavam sua própria história já um tanto puída.
            Porque dizem as más línguas - e as más línguas sempre têm o que dizer – que a beldade não era tão séria assim. Já teria sido indulgente com alguns de seus afetos. Teria também, há rumores, atentado contra a fé de um compromisso anterior, ocasião na qual teve oportunidade de, com um só golpe, ferir o interesse público e o de outros indivíduos, moças e rapazes da mais nobre estirpe, a saber Marianne, Têmis, Clístenes*…
            Enfim, insistem as viperinas matracas, seria em virtude (com o perdão da palavra) deste escândalo, que conquistara a preferência inconstante do seu consorte, visto que o mesmo, em seu ofício, capitanearia e capitalizaria  tumultos, querelas e “mis em scènes”. O dito tem de estar na boca do povo, causar sensação, “frisson” sempre.
            E dito tudo que pude reunir em minhas pesquisas do burburinho, resta muito ainda por falar. Pois há de dar o que.
            Da saborosa crônica, que não pude deixar de estragar, com duvidosa arte, na medida em que busquei emendá-la, restou-me mesclada a um certo espanto, uma dúvida. Causou-me pasmo, ver chamado abertamente dono de cabaré (pois como se percebe há muita controvérsia a respeito da natureza do estabelecimento) um cavalheiro que até pouco era honrado e enaltecido pelo nosso caro escritor. Seria sarcasmo para com a moça e consequente admissão da má fama do lugar? Ou caso de compará-lo aos pequenos mamíferos que, também conforme as más línguas, costumam ser os primeiros a abandonar o navio que afunda?



* Na ordem em que se apresentam:
-Nome popularmente dado à efígie da república na França, inspirada no quadro “A Liberdade guiando o Povo” de Delacroix. No Brasil a Efígie da República, deriva daquela e consta nas cédulas monetárias, sendo portanto associada também à ordem econômica;
-Titânide oriunda da mitologia grega, entre nós símboliza a justiça;
-Considerado o pai da democracia grega, e por isso mesmo, da democracia como tal.

** Autor: Cesar Roberto Scheffler