A vitória de Dilma e a crônica de uma quase tragédia eleitoral anunciada
Alexandre Haubrich em 26 out 2014
O
significado da vitória suada de Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves
(PSDB) vai muito além da mera disputa entre duas lideranças políticas de
campos distintos. É a vitória de um projeto macro sobre outro, mas uma
vitória apertada, decorrente de diversas circunstâncias político-sociais
que se complementam e que trazem novidades importantes em relação às
últimas eleições. O avanço do PSDB é, também, parte do mesmo processo
que elege um Congresso com uma cara diferente, ainda mais conservadora e
elitista do que a representação de um Brasil falsificado que já estava
lá.
O primeiro
elemento a ser considerado é o círculo que se estabelece quando um
governo consegue melhorar a qualidade de vida das pessoas, reduzir a
miséria e acrescentar consumo, mas não conduz esse processo tendo como
pano de fundo um outro processo, de politização, de fortalecimento do
trabalho de base e de transformação da consciência. Em seu livro Lulismo – Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira,
Rudá Ricci defendeu que estava emergindo uma “nova classe média”
extremante conservadora, o que agora se confirma. Essa “nova classe
média” em boa medida abandona nesse momento o projeto que em 12 anos
possibilitou a ela um importante incremento de consumo e melhorias nas
condições mais básicas de vida. Paulo Freire escreveu com precisão: “se a
Educação não é libertadora, o sonho do oprimido é transformar-se em
opressor”. Esse é o ponto fundamental do conservadorismo de boa parte
dos setores que ascenderam socialmente com o PT. Não é o caso dos que
saíram da miséria, como mostra a setorização dos votos, mas trata-se dos
que estão imediatamente acima na escala de ganhos materiais.
Existe
apenas uma forma possível de quebrar esse ciclo: politização, construída
com perspectivas de curto, médio e longo prazo, através de debate
político franco, intenso trabalho de base pelos partidos e organizações,
democratização dos meios de comunicação, e transformação do modelo de
Educação em um caminho para a autonomia e a emancipação. Nada disso foi
feito nos doze anos em que o PT esteve à frente do governo federal, o
que, embora não anule os avanços na dignidade de uma parcela importante
da população, mantém a situação de alienação – encobrimento da realidade
– que, por sua vez, alimenta o ciclo descrito anteriormente.
É como um
misto de quebra e manutenção desse ciclo e de quebra e manutenção dessa
alienação, que surge Junho de 2013. Com diversas pautas específicas,
começando pela luta por um transporte público de qualidade e se
expandindo indefinidamente, o que ficou claro foi um incômodo e um
consequente sentimento de mudança. A própria mobilização, a ida para as
ruas em bloco, o aprendizado sobre a possibilidade de movimentar-se e,
assim, sentir as correntes presas às mãos, cria um lastro de
politização. Ao mesmo tempo, dificuldades de organização e fatores
externos aos movimentos – basicamente o ciclo despolitizado e
despolitizante apontado acima – criam dificuldades importantes. Não me
aprofundarei na análise das manifestações de junho do ano passado, mas
elas precisam ser citadas e lembradas ao menos rapidamente para
chegarmos no seguinte: esse sentimento de mudança não conseguiu
encontrar eco eleitoral nem nos partidos que compõem o governo, nem na
oposição de esquerda – partidária ou de base. Com dificuldades de
compreender a complexidade da disputa política, sem aprofundamento na
análise das variáveis colocadas nessa disputa, a ideia de mudança
pode fazer com que o apoio caia no colo de qualquer um que pareça
representa-la. Foi isso o que aconteceu com Marina Silva (PSB), até que o
PT conseguiu desconstrui-la como essa representação. Depois, a
simbologia migrou para Aécio. Ao mesmo tempo, nas eleições para o
Congresso, a escolha foi por uma bancada mais à direita, por motivos
semelhantes.
Mas porquê apenas a direita – ou principalmente ela – parece ter capitalizado esse sentimento em grande medida despolitizado de mudança?
As razões têm estão em três eixos: a natureza do discurso da própria
direita; as dificuldades da esquerda; as limitações do sistema político
brasileiro / burguês.
- A natureza do discurso da própria direita: a velha direita, em parte fora do poder ou ao menos não estando diretamente com as mãos nas rédeas do Estado, constrói seu discurso através do (falso) moralismo, tendo as acusações de corrupção contra o governo como mote político fundamental. Isso porque nunca pôde, em qualquer lugar do mundo, defender abertamente os fundamentos básicos de sua linha de defesa social, pautada por interesses de cerca de talvez 5% da população, os mais ricos, proprietários dos meios de produção. Então, esconde esses preceitos, e traz o moralismo e a obviedade como estandarte. O discurso é fácil, muito mais simples do que explicações profundas sobre o funcionamento da sociedade e as disputas sociais envolvidas nessa dinâmica. Como vivemos imersos em alienação, o discurso fácil e superficial, cola. Como, ao menos em princípio, ninguém é a favor da corrupção, o discurso moralista cola. Por fim, como a mídia está nas mãos desses grupos políticos, ganha destaque a corrupção de seus adversários e apaga-se a dos aliados.
- As dificuldades da esquerda: com a chegada de um projeto de centro-esquerda ao governo federal, houve um rearranjo das forças de esquerda, rearranjo esse que segue em processo de acordo com as dinâmicas das organizações e do próprio governo. Com alguns movimentos populares perdendo protagonismo – inclusive com parte da organização sindical se tornando mais vinculada ao governo do que a sua própria base – outros emergem, mas com dificuldades de se posicionar-se no espectro político frente a um governo tão rico em contradições – ao contrário dos oito anos de governo do PSDB, quando as práticas e os discursos se estabeleciam com clareza pela direita. O trabalho de base voltado à criação de consciência política transformadora é raro, as organizações não conseguem grande inserção, e os partidos de oposição de esquerda ainda engatinham aos tropeços, com as dificuldades próprias de organização potencializadas pelo sistema político.
- As limitações do sistema político brasileiro / burguês: qualquer sistema político de corte liberal / burguês, expressão do capitalismo na política institucional é, essencialmente, tendente à conservação e, por extensão, resistente à transformação. No caso do Brasil, esse problema é claro: muda-se não mudando. A estrutura partidária é pouco democrática, as instituições de decisão popular são fracas ou inexistentes e há pouca participação na política cotidiana, tudo isso como causas e consequências de um sistema político elitizado e concentrador. De dois em dois anos, vemos com mais clareza uma face específica desse problema: um sistema eleitoral igualmente limitador, no qual os poderes econômico e midiático acabam por ser decisivos, o que faz crescer o apelo da direita e das elites – que controlam esses poderes – e enfraquece alternativas de esquerda e populares, marginalizadas da lide política cotidiana, institucional e eleitoral.
Por tudo isso, quem acaba por receber no colo o sentimento de mudança é a direita, são as elites, as oligarquias.
No caso
específico da disputa presidencial deste ano, acrescente-se aos
elementos elencados desde o início deste artigo a campanha violenta de
parte do PT contra Marina Silva, e temos a tendência de migração dos
votos que se mantiveram nela no primeiro turno diretamente para Aécio
Neves. O antipetismo, nascido do discurso das elites ainda no tempo em
que o PT era oposição, e reforçado constantemente pelo setor dominante
da mídia, aprofundou-se por conta da campanha negativa contra Marina.
A
polarização, potencializada pelas redes sociais online e sua
característica de disputa quase surda e sem ambiente controlador – ou
seja, com o sujeito mais à vontade para tornar-se agressivo, estimulado
por uma sociedade individualizante, egoísta e narcisista – é também
reflexo do que foi a campanha no primeiro turno, e traz ainda a carga de
otimismo do PSDB e de seus aliados que, desde que saíram do governo,
nunca estiveram tão próximos de retornar a ele.
Com a
vitória apertada de Dilma, mantém-se no governo o projeto do PT, e a
possibilidade de que Lula possa ser o candidato em 2018 pode trazer
certa acomodação. Por outro lado, abre-se, a partir dos últimos
movimentos da velha direita na campanha, um “terceiro turno”, e a
necessidade de garantir o respeito à decisão das urnas passa também pela
compreensão da necessidade de construir uma nova consciência social,
responsável e transformadora, permitindo que a população se sinta – e
seja – parte efetiva da política. De qualquer forma, abre-se um novo
ciclo, em que essa e outras questões deverão estar em pauta – seja
finalmente trazidas pelo governo, seja forçadas pela necessidade, ou
seja pautadas pelos movimentos populares e pela oposição de esquerda.
Fonte: http://jornalismob.com/2014/10/26/eleicoes-2014-a-vitoria-de-dilma-e-a-cronica-de-uma-quase-tragedia-eleitoral-anunciada/ acesso em 31/10/2014