sexta-feira, 22 de abril de 2016

CRÔNICA


A chuva púrpura do Caio

Era o auge do Nirvana (ops!), em cujo paraíso contemplávamos as lágrimas de Eric Clapton, onde paradoxalmente se apregoava Faith no More e o tempero ficava por conta dos infernais Red Hot Chilli Peppers, que ainda vivem, como reviveu um ressurreto B-52’s e o que restou de um apocalíptico Genesis.


1, 2, 3, os anos 90 voltaram outra vez. Da esquerda para a direita, como nas últimas duas décadas, Mr. Rogers Nelson, a filha da dona Glória e um ex-portista queridinho da Dinda.
1, 2, 3, os anos 90 voltaram outra vez. Da esquerda para a direita, como nas últimas duas décadas, Mr. Rogers Nelson, a filha da dona Glória e um ex-portista queridinho da Dinda.
por Luciano d’Miguel*
E Raul que achou serem os anos oitenta a tal charrete que perdeu seu condutor. Felizmente, o sangue excessivo em sua corrente alcoólica não o deixou viver para testemunhar o que é a aurora do século XXI. Aliás, já pararam para analisar a produção musical contemporânea, ao menos aquela contemplada pela grande mídia? Tá tranquilo? Tá favorável? Provavelmente a resposta seja um retumbante não.
Mas não para Caio, menino de 23 anos e meio que conheci esta semana enquanto divulgava seu trabalho de DJ num dos coletivos de Foz do Iguaçu, onde perguntei se estava a ganhar cachê e me respondeu negativamente. Ofereci os préstimos de um advogado trabalhista. Perguntou-me o porquê. Disse ter percebido que ele estava sendo explorado pelo consórcio que administra o transporte público, tendo que presentear gratuitamente a todos os passageiros com a música de seu celular. Obra de uma tal MC Melody, cuja versão falsete de “Metralhadora” despertaria até a ira de um morcego, caso estivesse no busão.
Claro que o título da, digamos, canção me deixou um tanto amedrontado, pois era segunda-feira pós-abertura, mas outra, diferente daquela do final dos anos 70. Ironicamente, aquele era o dia da luta antimanicomial no Brasil, mas o que presenciamos em nossos televisores na tarde e noite anteriores, tal e qual umhorrorshow de Anthony Burgess, certamente credenciaria qualquer um dos envolvidos naquela verdadeira sanha em defesa da família a dar entrada num hospício, sem previsão de ter alta. Confesso que quando o delegado Waldyr e os Bolsonaro – pai e filho – miraram em minha direção cheguei a escutar os estampidos.
Seu eco advém dos idos de 1992, época em que tivemos nossa primeira grande catarse política coletiva, pois o primeiro impeachment a gente nunca esquece. Naqueles tempos, nossos ouvidos eram contaminados pela música estadunidense, que dominava 90 por cento da programação da frequência modulada, apesar dos britânicos do The Cure e dos irlandeses do U2.
Era o auge do Nirvana (ops!), em cujo paraíso contemplávamos as lágrimas de Eric Clapton, onde paradoxalmente se apregoava Faith no More e o tempero ficava por conta dos infernais Red Hot Chilli Peppers, que ainda vivem, como reviveu um ressurreto B-52’s e o que restou de um apocalíptico Genesis.  Mesmo com estes grandes a salvar aquela pátria, em que talvez se encaixe Mr. Big (em função do nome), o que imperavam mesmo eram artistas e grupos tipo one way como Sophie Hawkins, Joe Public, London Beat e K.D. Lang, além dos quase famosos do Right Said Fred e dos hoje apagados da memória Erasure, Snap e Technotronic, os pais do “poperô”. Vale destacar que figuram na lista Jon Secada, cubano, e Richard Marx, cuja alcunha não levou ao sucesso junto aos países comunistas do leste europeu. Completam o rol da Billboard: Mariah Carey, Bryan Adams, o inacreditavelmente falecido Michael Jackson (Remember the Time) e Guns N’ Roses, com sua “November Rain”.
É favor não confundir com “Purple Rain”, que recentemente refrescara os ânimos da gigante da mídia tupiniquim um ano antes, quando seu compositor não autorizou os direitos de transmissão de seu show no Maracanã. Mas nestas plagas é mais fácil descreditar um artista por ter pedido mais de cem toalhas brancas em seu camarim, esquivando-se de sua genialidade nada pequena. Prince foi mais um dos bons que desencarnou esta semana, não sem antes nos deixar grande legado com suas “Why You Wanna Treat Me So Bad?”, “I Wanna Be Your Lover”, “When Doves Cry” e “Planet Earth”, além da trilha sonora de Batman.
Para muitos, infelizmente um ilustre desconhecido no país do esquecimento, em que o maior acontecimento político de um ano (quiçá de uma década) foi praticamente invisibilizado pelo hit “Wishing on a Star”, do grupo ianque The Cover Girls, cujo nome dispensa traduções. Não obstante o sugestivo título (pedindo a uma estrela, desejo atendido uma década depois, com a eleição de Lula), a canção marcava as cenas da gloriosa novela “De Corpo e Alma”, em que o pseudo-ator Eri Johnson, na pele de um gótico, idolatrava a imagem da quase santa Daniela Peres, dublê de atriz assassinada a tesouradas pelo também dublê de ator Guilherme de Pádua. Batata!!! A faixa foi catapultada à primeira posição nas paradas de sucesso, tudo isso enquanto Collor pedia tardiamente sua renúncia, Itamar assumia a presidência e o semi-DJ Caio nascia…
*Luciano d’Miguel é jornalista, ator, músico e produtor cultural de formação e profissão.


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