Olívio Dutra: “Estamos devendo muito ao povo brasileiro”
publicado em 28 de janeiro de 2013 às 12:56
“Estamos devendo muito ao povo brasileiro”
Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma
cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais, afirma Olívio
Dutra
23/01/2013
por
Daniel Cassol
de Porto Alegre (RS), no Brasil de Fato
Desde quando criticou as “más companhias” que teriam levado o PT a
enveredar pelos caminhos ortodoxos da política, Olívio Dutra vem sendo
uma das vozes internas críticas ao processo de inflexão conservadora do
próprio partido. Fundador do partido, primeiro prefeito petista em
Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002 e
ministro das Cidades no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, Olívio Dutra faz um balanço realista dos dez anos de PT no
governo federal.
“Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma
cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais”, afirma. Em
entrevista ao Brasil de Fato, Olívio, que esteve presente no lançamento
do jornal durante o Fórum Social Mundial em janeiro de 2003, em Porto
Alegre, reconhece os limites da gestão petista, que começou naquele
mesmo mês. “Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos
conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de
milhões de brasileiros“, reconhece, defendendo que o partido e a
esquerda retomem o debate sobre as transformações necessárias na
sociedade brasileira.
Além de um balanço dos últimos dez anos, o ex-governador gaúcho
apontou os limites da experiência petista, os desafios da esquerda e não
deixou de reforçar sua posição sobre a postura do partido em relação
ao “mensalão”: “O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui
para frente, se assumir como partido da transformação e não da
conciliação”.
Brasil de Fato – O Brasil de Fato foi lançado em janeiro de
2003, logo após a posse de Lula, durante o Fórum Social Mundial. O
primeiro número do jornal trazia uma entrevista com o economista Celso
Furtado e a manchete: “É preciso coragem para mudar o Brasil”. Passados
dez anos do projeto do PT no poder, houve necessária coragem para as
mudanças profundas no Brasil?
Olívio Dutra – Lembro de um cidadão da Bossoroca (cidade gaúcha das
Missões, terra natal de Olívio) que tinha 90 e tantos anos e dizia:
“Coragem não me falta, me falta ar”. Não faltou coragem nos dois
mandatos do Lula e neste que está se desenrolando com a Dilma. Mas é bem
verdade que não rompemos com conjunturas adversas. Acabamos
contemporizando sob a alegação da governabilidade, tendo que construir
uma maioria não programática no Congresso, tanto no primeiro quanto no
segundo governo do Lula, e até mesmo agora. Mesmo havendo coragem
para enfrentar os desafios de um país tão grande e com desigualdades
imensas, esta maioria não programática sempre puxou para baixo a
execução de um pro-grama que enfrentasse com radicalidade situações de
desigualdade que penalizam milhões de brasileiros. Então, penso que
coragem não faltou.
E política evidentemente se faz com coragem, mas também com clareza
dos objetivos. Por isso, penso que ainda há muito o que fazer. Estamos
devendo muito ao povo brasileiro, mesmo que tenhamos conquistados
direitos sociais, melhor distribuição da renda, oportunidade de
emprego e trabalho regular. Mas não fizemos, por exemplo, a reforma
agrária com a radicalidade necessária. Com a maioria que constituímos,
não fizemos nenhuma das reformas fundamentais do Estado. Temos uma
grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores
condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros.
Como o senhor mesmo diz, apesar dos avanços nas áreas
econômica e social, os governos Lula e Dilma não enfrentaram questões
estruturais. Foi por causa da governabilidade ou o projeto do PT no
poder acabou sendo não enfrentar estes temas?
Sou um dos fundadores do PT e até hoje não vi nenhuma instância do
partido se decidir por um projeto que fique estacionário ou que se
condicione às conjunturas. Se isso está andando, é por conta de alguns
setores que estão se contemplando com o que já se conquistou. Se
pensamos que dialogar com amplos setores da sociedade brasileira é
suficiente, que isso abre espaços e reduz pressões, o projeto vai ficando,
na sua realização, cada vez mais longe. O horizonte vai ficando mais
distante. E isso sem ter tido uma discussão.
Qual é o papel de um partido de esquerda e do socialismo democrático
em sendo governo e tendo representação política para enfrentar um
Estado que não é o que acolhe um projeto de transformação social?
Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma
cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais. As elites se
sentem muito contrariadas em terem tido a fraqueza de deixar o povo
brasileiro eleger um metalúrgico para a Presidência da República, e
agora uma mulher que vem de uma luta que não é a luta que eles sempre
patrocinaram. Mas isso não os impede de continuar tendo poder. Porque
poder não é apenas estar no governo. O protagonismo do povo brasileiro
ainda precisa ser estimulado, provocado. Nós chegamos no governo e de
certa forma contemporizamos com as coisas.
Os movimentos sociais têm presença nos conselhos aqui e acolá, mas
isso garante força para os movimentos sociais e mobilização ampla que
um governo de transformação precisa ter na base da sociedade para poder
avançar? Isso não temos respondido como partido. Aliás, qual o
projeto que a esquerda brasileira tem para o país, não apenas para
ganhar eleições? Como a esquerda vê o Brasil e a possibilidade de
transformá-lo? E estabelecer entre si compromissos e poder alternarse
por dentro da esquerda, e não a esquerda disputar esta ou aquela
eleição e depois ter que fazer negociações em que o seu projeto se
estilhaça e o horizonte da transformação fica cada vez mais distante.
O PT é o maior partido de esquerda do país e não nasceu de
gabinetes, mas está cada vez mais dependente destes nichos de poder
dentro de um Estado que está longe de ter esse controle público e
popular efetivo. E estamos gerindo esse Estado. É uma discussão séria
que precisamos nos debruçar sobre ela. O PT tem que fazer a obrigação de
fazer isso. Não esgotou este projeto na medida em que não se tornar um
partido da acomodação e se mantiver como partido da transformação.
O senhor defende a necessidade de a esquerda, não só o PT, discutir o que quer para o Brasil.
O PT aceitou o jogo democrático, mas a democracia não é estática, é
um processo. Temos que estabelecer formas de ir desmontando a lógica do
Estado que funciona bem para poucos e mal para a maioria. Temos que
discutir como agir por dentro do Estado, em um processo democrático, mas
não perdendo o objetivo estratégico de ganhar força na base da
sociedade, semear transformações. Não temos que sair com um tijolo em
cada mão, ou dando murro em ponta de faca, mas temos que ter consciência
que o partido tem de ser uma escola política. Pode haver uma
alternância entre as figuras dos diferentes partidos de esquerda, desde
que haja um compromisso de sequência do projeto de transformação, e
não de acomodação. Nosso partido tem que tirar lições dos governos que
já exercemos, mas não ficar se autoelogiando e nem se remoendo. Há uma
realidade a ser enfrentada. E é preciso ter povo mobilizado
constantemente, não como massa de manobra, mas para for-mar uma base de
sustentação.
O senhor acredita que ainda haja espaço para isso no PT? O
senhor e outros dirigentes vêm defendo uma retomada de velhas tradições
do PT, mas não é ilusório imaginar que o partido voltar a ser algo que
já não é mais?
Eu não prego este retorno, mas também afirmo que, sem raízes, uma
árvore não tem tronco com seiva sufi ciente para sustentar a galharia lá
em cima. E essas raízes são as lutas sociais e populares, de um
período histórico importante do país, no qual se originou esse ambiente
de fundação do PT. A conjuntura mundial é desafiadora. Vamos buscar
apenas nos adaptar? Não é uma oportunidade de darmos um salto? O PT tem
que debater isso.
As instâncias partidárias afrouxaram-se de tal maneira que inclusive
tivemos pessoas importantes do PT que cometeram políticas que não se
diferenciam das políticas tradicionais que sempre condenamos, sob
alegação da governabilidade e essas coisas todas. Isso não pode ser
culpa apenas desta ou daquela figura, mas as estruturas partidárias não
estavam suficientemente atentas ou atuantes, e se criaram essas situações
em que as pessoas pensavam que podiam fazer ou desfazer coisas que
depois se justificariam pelos objetivos. E isso levou a essa situação
que estamos sofrendo, que é a Ação Penal 470, o chamado mensalão, que
não pode ser o objetivo do nosso debate ficar remoendo, acusando aqui ou
ali, mas se superando.
Achar que podemos comprar e vender opinião, comprar e vender
posições, comprar e vender votos, isso é o pior da política, que tem
desgraçado o povo brasileiro e desqualificado as instituições
políticas. O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para
frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação.
Apesar das críticas ao julgamento do mensalão, o governador
gaúcho Tarso Genro vem afirmando em artigos que o partido deve mudar de
agenda. É o que o senhor está dizendo também?
O partido não deve ficar se justificando, mas não deve também colocar a
cabeça no chão como avestruz. Tem que assumir que houve erros de
conduta política. Não é condenar Fulano ou Beltrano, mas assumir que
em uma situação tal, as instâncias do partido não foram capazes de não
se deixar aprovar por condutas assim. E ir adiante, evidentemente.
Penso que a política para nós tem que ser a construção do bem comum, com
protagonismo das pessoas. O Estado, para funcionar bem, tem que estar
sob controle público efetivo. Esse é um objetivo, colocar o Estado sob
controle da sociedade. E para isso é preciso ter espaço para os
movimentos sociais, instigá-los dentro da sua autonomia. Um governo
tem limites para executar coisas, mas não pode submeter os movimentos
sociais a esses limites que tem na institucionalidade.
O Brasil de Fato foi lançado durante o Fórum Social Mundial. O
balanço que o senhor faz do FSM e das coisas que aconteceram no Brasil e
na América Latina nestes dez anos é otimista ou pessimista?
É realista. Há avanços importantes, que não fossem as edições do FSM
não teriam acontecido. Agora, há coisas que poderiam ter ido mais longe.
O FSM também não pode ficar atrelado e dependente de governos, mesmo
que sejam governos sérios e comprometidos com as lutas sociais. O Fórum
tem que ter for-mas de fazer com que suas deliberações ecoem nas
instâncias supranacionais, nos organismos internacionais. O fato de o
FSM ter perdido um pouco do foco, porque se mundializou, passou a
acontecer em diferentes locais e depois ter encontros maiores,
continentais, para depois ter um encontro global, tem que ser revisto,
para não se perder.
E qual o balanço realista que o senhor faz da imprensa alternativa brasileira neste período?
Cresceu muito, eu penso. Temos muitos veículos alternativos, mas
qual é o conteúdo, o que estão provocando? Pen-so que esse florescimento
de uma imprensa alternativa é um caminho importante para enfrentar os
grandes grupos econômicos que lidam com a informação. É preciso ter
uma miríade de fontes alternativas de informação e comunicação. Mas
precisam ter uma visão, não é cada uma no seu território, na sua
categoria, é preciso ter uma visão de como as coisas se relacionam, se
interligam. E isso também é papel dos partidos políticos, instigar
essas relações e a qualificação da intervenção. Temos um governo com
problemas sérios na relação com os grandes grupos econômicos e a grande
mídia.
A grande mídia se alimenta das contas de publicidade do governo e das
empresas públicas. Enquanto isso, para jornais e veículos alternativos
sobram migalhas. São questões políticas e precisam ser encaradas. Isto
é uma dívida que ainda não saldamos.
FONTE: http://www.viomundo.com.br/entrevistas/olivio-dutra-estamos-devendo-muito-ao-povo-brasileiro.html