“E se o sistema prisional fosse um reality show?”
Nesta terça-feira, a coluna 457, do professor e dramaturgo Rafael Cal, aborda o caos do sistema prisional brasileiro.
E se o sistema prisional fosse um reality show?
De tempos em tempos, o debate sobre o
sistema prisional brasileiro vem à tona. Quase sempre, é uma sucessão de
lugares-comuns à respeito do estado das coisas: ouve-se que as prisões
são medievais, que são universidades do crime. Ao mesmo tempo, tem
bastante gente dizendo que o Brasil é o país da impunidade, cobrando
mais prisões, mais repressão. É apresentador berrando “cadeia neles!”,
dizendo que presos têm mordomia ou que ser condenado a 30 anos é pouco
(?!). Mas, aí, o outro jornal mostra um presídio botando gente pelo
ladrão. Desculpem o trocadilho infame, mas tem alguma coisa errada, né?
Um dos grandes problemas sobre o tema, é
que essas reflexões acabando caindo na ideologização vulgar. Como se a
defesa do estado de direito, da legalidade das ações e das garantias
individuais devessem pertencer a um grupo específico ou corrente de
pensamento. Boa parte das pessoas, voluntária ou involuntariamente,
permanece alheia a esse debate, ignorando a realidade do ambiente
carcerário brasileiro e os problemas da justiça, que existem e são
graves.
Pense
no sistema prisional brasileiro como um reality show. No BBB, você já
sabe como funciona: um grupo de pessoas fica confinado em uma casa por
três meses e tem a vida vigiada por 24 horas. Até no banheiro. Durante
esse tempo, você sabe, há uma série de restrições. Ligações, e-mails,
televisão, jornais, tudo proibido. Também não pode mexer no Facebook ou
publicar um selfie no Instagram. Imagina que o sistema prisional
brasileiro é um reality show desse tipo. A base é o confinamento de
pessoas. Precisamos, então, de um lugar para essas pessoas.
Para isso, constroem-se casas pra elas,
os presídios. Ao invés de chamar Casa BBB ou Casa dos Artistas, a gente
pode chamar de Casa de Correção; ao invés de Fazenda, de Colônia
Agrícola. O discurso é o mesmo do programa: os presídios passam então a
receber pessoas de todos os tipos. Porém, sabemos que negros e pobres
são mais atingidos pelo rigor das leis. Afinal, a justiça é feita por
homens e vivemos num país estruturalmente racista, em que não há
defensores suficientes pra atender à demanda e em que contratar um
advogado custo caro.
A cada semana, ao invés de alguém ser
eliminado via internet, telefone ou mensagem de texto e abandonar a
casa, são escolhidas mais pessoas para entrar. A casa não aumenta de
tamanho, mas as pessoas passam a querer que mais pessoas entrem,
lembre-se da campanha para redução da maioridade penal que volta e meia é
levantada pelos setores mais conservadores. Os critérios para a entrada
vão diminuindo e, de repente, passa a ser muito fácil entrar. Aí,
querem que se construam mais presídios.
Atualmente,
o Brasil possui 1.478 instituições prisionais, com capacidade para
comportar 318.739 presos. Um problema: são 548.003 presos no país.
Faltam, mais ou menos, 230 mil vagas. Esquece os números. Pensa no seu
carro. Cabem cinco pessoas na parte interna dele. Coloca mais duas. “Ah,
mas já andei com o carro cheio, gente no colo e tal”. Ok. Pensa no
ônibus que você pega todo dia. Ele foi feito pra levar, em geral, 60
pessoas, 40 sentadas e a metade disso em pé. Agora, imagina colocar mais
24 pessoas ali dentro. Fica ruim? “Ah, mas pego ônibus lotado todo dia,
tem dia que é muito pior que isso, uma vez…”. Tá, tá certo. Só que é
como se você tivesse que passar 1, 2, 5, 10, 20, 30 anos desse jeito.
Não é uma viagem entre a casa da tia Rosemary e a sua no Uno Mille da
sua irmã. Voltando ao BBB, o começo, sempre cheio de gente, fica sempre
meio caótico, não é mesmo? Pensando como uma “casa”, já imaginou a fila
pro banheiro de manhã?
Acontece que esse é o menor dos
problemas. Imagina dormir nesse espaço? Não tem quarto do líder com
bombom e prosecco. Em alguns lugares, os presos têm que passar a noite
inteira em pé. Não há um carro e a liderança esperando pela manhã, é uma
questão de espaço. Mas, com sorte, ele vai conseguir deitar depois que
os que estavam dormindo levantarem. Se desmaiar, não adianta muito
gritar “produção!, produção!”, não.
E não para por aí. Falta acesso a coisas
básicas, como comida e remédios. Acreditem, falta acesso a atendimento
legal. Entendeu? O cara tá dentro de uma instituição do Estado e tem
dificuldades de conseguir o atendimento de um defensor. Hoje em dia, 42%
dos presos não possuem condenação definitiva. Ou seja, poderiam, desde
que não oferecessem riscos, estar aguardando o julgamento em liberdade,
mas parece que é uma “questão de afinidade”. Além disso, já imaginou a
reação das pessoas a essa informação? Pois é.
Se falta de tudo, por outro lado, sobram
situações concretas de violência, entre os próprios presos e entre
presos e agentes. Quer dizer, já tá tudo bem ruim. Mas não há nada que
não possa piorar. E você quer que esse cara, quando saia de lá, seja um
“brother”?
Os “paredões”, nome que a produção deu a
disputa pra continuar no programa, no sistema prisional, são diários.
Fica todo mundo numa sala, só que de audiência, os participantes
reclamam da edição, só que do processo e, no final, tem o juiz
proferindo a sentença, sem que o réu entenda nada, uma espécie de Pedro
Bial jurídico.
E qual seria o grande prêmio? Imagina
que, diante do confinamento, você merece algum prêmio. O prêmio seria
alguém ir lá te buscar. Um advogado, um defensor público, um alvará de
soltura emitido. Ao contrário do programa da TV, poderiam ser muitos
ganhadores. Acontece que é como se o programa passasse na TV Gazeta e
ninguém dá atenção. Mas continuam, talvez por isso, gritando “cadeia!” e
preenchendo de absurdos as caixas de comentários dos grandes portais.
“Isso é um jogo”. Sim, com certeza. Um
jogo muito maior do que se pode imaginar. Os índices violência
brasileiros tem que ser analisados dentro das especificidades locais e a
situação nacional, não utilizados como tem sido, ao sabor dos
acontecimentos políticos e de interesses econômicos e eleitoreiros.
Cadeia não é depósito de pessoas e não pode ser tratada como peça de
propaganda. Tem gente que lucra muito com essa situação, seja do ponto
de vista político, há candidatos que se elegem em todos os pleitos com
base na defesa da força como resposta; seja do ponto de vista econômico,
com aumento dos gastos com segurança, tanto do setor privado, quanto do
público.
Basicamente,
o que temos hoje é um modelo que desconsidera direitos básicos e
brutaliza os encarcerados. Ainda que a setores da sociedade acreditem
que é merecido, não podemos esquecer que são cidadãos brasileiros que,
um dia, deverão ser reintegrados a sociedade. Num ambiente como o que
existe no Brasil, é impossível exigir ou acreditar em recuperação e
reintegração. E no estado democrático, processo judicial e prisão não
podem ser encarados como vingança, mas como parte de um conjunto maior.
Entretanto, há muitos interesses em jogo.
Assim, ao se discutir cada vez mais
índices de violência, privatização dos presídios e aumento da repressão e
das penas no país, é urgente pensar e repensar o sistema prisional
brasileiro. É necessário que se garanta a execução do devido processo
judicial, que se estimule a adoção de penas alternativas e que se
respeite a proporcionalidade e a progressão das penas. Hoje, o Brasil
possui a quarta maior população carcerária do mundo. Essa estatística
tem que parar de aumentar. A seguir o ritmo de crescimento atual, 30%
nos últimos 15 anos, mais que a média mundial, haverá um quadro cada vez
mais insustentável nas próximas décadas.
Como em um reality show, é dever do público decidir os rumos dessa história.