terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Mídia x Ditadura em tempos de democracia


Ao começar a pesquisa para relacionar mídia e ditadura militar — ou mídia e luta pela abertura dos arquivos da ditadura, revisão da lei de anistia e punição aos torturadores que agiram em nome do Estado brasileiro — me dou conta que a grande imprensa não encampar a luta pela revisão dos anos de chumbo e por justiça não é um fato novo, conjuntural. Esse sempre foi seu comportamento padrão, modus operandi na questão.
Primeiro pelo conluio “natural” com o poder, com quem está no poder e tem a força – não deveria ser o contrário?, não deveria ser a imprensa a grande pedra no sapato do poder instituído e dos governantes? Não no Brasil. Segundo pela defesa pura e simples do status quo e a venda de princípios por audiência, se a classe média apoia o governo militar e é ela que compra jornais é a ela que devemos satisfação. Terceiro, e último, por opção ideológica mesmo, defesa do capital em detrimento dos trabalhadores e da ampla maioria do povo brasileiro.
Mas e o papel da imprensa? No Brasil ele não é cumprido nem mesmo por disfarce. Ao pesquisar na Folha de São Paulo sobre arquivos da ditadura encontraremos matérias críticas desde o governo FHC, quando começaram os processos de indenizações dos familiares dos mortos e desaparecidos, passando pelo governo Lula e atual. Não há destaque para o tema, é fato, e nem está na capa da Folha nas bancas. Mas esse expediente de retirar matéria dos destaques para evitar constrangimentos, polêmicos, vergonha ou ainda para contentar anunciante (não importa exatamente o motivo, né?) vimos recentemente num veículo da dita imprensa alternativa, de resistência ao poder midiático no país. Critérios? Isso não isenta a FSP em nada na sua postura de apoio à ditadura e nem ameniza o famoso editorial da “ditabranda” de 2009. Ou seja, o jornal cobre os fatos relativos ao tema sem destaque e quando se posiciona editorialmente defende a ditadura.
No dia 17 de outubro passado o programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo estreia nova direção com o jornalista Mario Sergio Conti no comando e escolhe o Cabo Anselmo como o primeiro entrevistado de sua nova fase. No final de novembro a Revista Época publica uma matéria intitulada “OsInfiltrados da ditadura” onde conta casos documentados de agentes da ditadura infiltrados nos grupos de esquerda da luta armada. Depois de aprovada a Comissão da Verdade, o Estado brasileiro ignorar solenemente a condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (prazo encerrou em 14 de dezembro passado e foi igualmente ignorado pela grande imprensa) e o Congresso Brasileiro mais uma vez jogar pela janela a chance de rever a lei da anistia — com apoio da base do governo de uma ex-guerrilheira e ex-torturada – e praticamente assegurar a impunidade ad eternum dos torturadores, é como se eles tivessem perdido a vergonha de colocar a cara na janela. Mais do que isso: A imprensa brasileira perdeu de vez a vergonha na cara e passou a desfilar agentes duplos (os chamados cachorros) como estrelas em entrevistas e ex-torturadores como colunistas. Afinal são todos cidadãos de bem, até se prove o contrário.
Mas nenhum caso se assemelha a uma entrevista da Veja de 1998 (ressurgida recentemente nas redes sociais) onde um ex-torturador contacom detalhes como torturava e o que mais o divertia na tortura. Grotesco? Fica pior. Ele ainda relata com naturalidade que ao encontrar na rua ex-torturados em quem “trabalhou” faz questão de tocar no ombro, lembrar quem é para quem não o reconhece e cumprimentar. Os ex-torturados aparecem na matéria como coadjuvantes, apenas para corroborar os fatos narrados pelo torturador.
Tudo bem entrevistar torturadores (eu optaria por não), mas cadê as entrevistas com os torturados e familiares dos mortos e desaparecidos? Afinal que raios de “princípios jornalísticos” são esses da imprensa brasileira? E cadê o contraponto da chamada imprensa alternativa? A verdade não é mais um objetivo a ser buscado? Infelizmente tenho dúvidas de que algum dia tenha sido.
Não tem muito tempo li um militante governista dizer nas redes sociais que talvez fosse melhor não abrir os arquivos da ditadura, porque a imprensa (“facínora”) iria fuçar e dar destaques apenas aos casos de suposta traição entre os torturados e aqueles que não resistiram às bárbaras torturas e entregaram companheiros e conseguiram sobreviver aos porões da ditadura. Será que isso justifica deixarmos para sempre as famílias dos desaparecidos sem poderem encerrar seu luto, numa tortura infinita e sem passarmos a limpo a nossa história? Não se negocia com a história, com os fatos. É preciso revelar, contar nos livros de história o que houve de fato nos porões na ditadura. As gerações que se seguiram ao fim da ditadura permanecem na ignorância e correndo o risco de verem os fatos se repetirem por desconhecimento do passado. Não é slogan de campanha, é fato: Conhecer o passado para que ele nunca mais se repita. Ou, na pior das hipóteses, se se repetirem que seja conscientemente, por escolha e não pela falta de.
Sem entrar no mérito do embate dos “PIGs” (grande imprensa e governista) onde os militantes apoiadores do governo Lula/Dilma dizem que a grande imprensa age como um partido de oposição ao PT e está sempre planejando um “golpe”, neste ponto parece que concordam e agem como se a ditadura tivesse sido apenas um pesadelo do qual já acordamos e não precisamos mais lembrar. Ao agirem assim, condenam as reais vítimas da ditadura a viverem no eterno pesadelo da tortura e ainda expostas aos seus algozes. Nem todos estão blindados por um alto cargo e morando confortavelmente em um palácio no planalto central.
Bom lembrar que ao deixarmos os porões da ditadura fechados ajudamos a consolidar a tortura como prática do Estado brasileiro. Hoje os torturados não são mais os temíveis terroristas de esquerda, mas os pobres e negros. Tudo bem para você ser conivente com isso? A não ser por algumas poucas vozes, parece que todos estão felizes com a atual democracia. Todos iguais, mas uns sempre mais iguais que outros.

Este artigo é uma colaboração especial de Niara de Oliveira* publicado originalmente em Jornalismo B


*Niara de Oliveira é jornalista.


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