quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fantasmas assassinados e o silêncio da mídia do apartheid


27 fev
Há fantasmas vagando pelo Brasil. Fantasmas sujos, rotos. Fantasmas de dentes estragados, cabelos endurecidos pela poeira que também encarde sua pele. Sim, os fantasmas brasileiros têm pele, e tem olhos cuja superfície exala dor, mas cujas profundezas são de uma alegria quase infantil. Mas são fantasmas. Alguns ainda tentam tornar-se homens, outros já desistiram, e apenas vagam. Solas dos pés cansadas pelo chão, cabeça muitas vezes cansada pelos refúgios químicos mais diversos, de hora em vez os fantasmas precisam atirar-se em algum canto e respirar. É aí que, em segundos, se transformam em homens, visíveis, indesejáveis, apenas para a seguir serem transformados em cadáveres.
No último sábado mais dois fantasmas viveram essa situação. José Edson Miclos Freitas foi transformado em cadáver. Paulo César Maia escapou por pouco. O crime dos dois, que os levou à punição da fantasmagoria, é a pobreza. É a falta de um teto sob o qual tentar se defender da selvageria do individualismo e do ódio à humanidade típicos do sistema capitalista. José e Paulo moravam na rua. José já não mora em lugar algum. Os dois foram incendiados enquanto dormiam, em Santa Maria, cidade satélite de Brasília.
José, Paulo e muitos outros moradores de rua ou de favelas – o que pouca diferença faz para a mente excludente das elites – são assassinados diariamente. Assassinados pelo sistema que exclui, que oprime, que agride, e assassinados pelo setor da mídia que sustenta este sistema e silencia sobre essa violência. O silêncio sobre a existência é uma forma de assassinato das mais cruéis. Pode não matar o corpo, mas mata o sujeito, mata a mente, mata a cidadania – e como existir sem ao menos algum resquício dela?
Se a fantasmagoria não é um problema sistêmico, então vejamos: segundo informou nesta segunda-feira a Telesur, 6500 seres humanos dormem nas ruas de Washington, nos EUA. 1500 são crianças. Por outro lado, é famosa uma frase de Fidel Castro, apoiada pela UNESCO: “Hoje milhões de crianças dormirão nas ruas. Nenhuma delas é cubana”.
Voltando ao Brasil, mas sem perder de vista que as fronteiras – nacionais e sociais – não fazem uns mais ou menos humanos do que outros, não é fácil encontrar, nos grandes portais do país, notícias sobre o assassinato físico de José e o assassinato moral de Paulo. Na noite desta segunda, apenas no G1 o fato estava na capa – o Jornal Nacional também destacou o caso. Folha Online e Estadão Online, por exemplo, não viram relevância.
Como geralmente acontece em casos assim, há também enorme dificuldade em encontrar os nomes dos agredidos. São “moradores de rua”, “indigentes” ou “mendigos” muito mais do que são José e Paulo. São fantasmas sem nome, sem lenço, sem documento e sem voz. José e Paulo não estão sós. Multiplicam-se os incêndios em favelas de São Paulo, as expulsões de comunidades inteiras de suas casas por causa da Copa do Mundo ou por obra de especuladores financeiros que financiam candidaturas políticas. Multiplicam-se assassinatos, multiplica-se a limpeza social em todas as suas correntes. E, na mesma medida, cresce a nuvem de silêncio. A mídia do apartheid social evita fazer relações entre tudo isso, e, no caso mais recente, lembrou o ataque ao índio Galdino, em 1997, como se desde lá a matança houvesse parado.
Na última semana, foi em Belo Horizonte que um homem sem nome morreu. A Folha o batizou de “andarilho”. Sobre José e Paulo, o Correio Braziliense abriu assim uma matéria: “Dois moradores de rua, provavelmente homens (…)”.


Fonte: http://jornalismob.wordpress.com/ em 27/02/2012 - Autor: Alexandre Haubrich

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